Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Gilka Machado


 

Impressões do gesto

 

A uma bailadeira


 

A tua dança indefinida,
que me retém extática, surpresa,
guarda em si resumida
a harmonia orquestral da natureza,
a euritmia da Vida.

 

(...)

 

Danças, os membros novamente agitas,
todo teu ser parece-me tomado
por convulsões de dores infinitas...
E desse trágico crescendo
de gestos que enchem o silêncio de ais,
vais
smorzando, descendo,
como que por encanto,
presa de um místico quebranto...
Danças e cuido estar em ti me vendo.

 

Os teus meneios
são
cheios
de meus anseios;
a tua dança é a exteriorização
de tudo quanto sinto:
minha imaginação
e meu instinto
movem-se nela alternadamente;
minha volúpia, vejo-a torça, no ar,
quando teu corpo lânguido, indolente,
sensibiliza a quietação do ambiente,
ora a crescer, ora a minguar
numa flexuosidade de serpente
a se enroscar
e a se desenroscar.
Em tua dança agitada ou calma,
de adejos cheia e cheia de elastérios,
materializa-se minha alma,
pois nos teus membros leves, quase etéreos,
eu contemplo os meus gestos interiores,
meus prazeres, meus tédios, minhas dores!

 

(...)


Publicado no livro Mulher nua: poesia (1922).
In: MACHADO, Gilka. Poesias completas. Apres. Eros Volúsia Machado. Rio de Janeiro: L. Christiano: FUNARJ, 1991, p.227-230.
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Gilka Machado


 

Incenso

 

A Olavo Bilac


 

Quando, dentro de um templo, a corola de prata
do turíbulo oscila e todo o ambiente incensa,
fica pairando no ar, intangível e densa,
uma escada espiral que aos poucos se desata.

 

Enquanto bamboleia essa escada e suspensa
paira, uma ânsia de céus o meu ser arrebata,
e por ela a subir numa fuga insensata,
vai minha alma ganhando o rumo azul da crença.

 

O turíbulo é uma ave a esvoaçar, quando em quando
arde o incenso ... Um rumor ondula, no ar se espalma,
sinto no meu olfato asas brancas roçando.

 

E, sempre que de um templo o largo umbral transponho,
logo o incenso me enleva e transporta minha alma
à presença de Deus na atmosfera do sonho.


Publicado no livro Cristais partidos (1915).
In: MACHADO, Gilka. Poesias completas. Apres. Eros Volúsia Machado. Rio de Janeiro: L. Christiano: FUNARJ, 1991, p.32.
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Gilka Machado


 

Lembranças


Teus retratos — figuras esmaecidas;
mostram pouco, muito pouco do que foste.
Tuas cartas — palavras em desgaste,
dizem menos, muito menos
do que outrora me diziam
teus silêncios afagantes...
Só o espelho da minha memória
conserva nítida, imutável
a projeção de tua formosura,
só nos folhos dos meus sentidos
pairam vívidas
em relevo
as frases que teu carinho
soube nelas imprimir.

 

Sou a urna funerária de tua beleza
que a saudade
embalsamou.

 

Quando chegar o meu instante derradeiro
só então, mais do que eu,
tu morrerás
em mim.


Publicado no livro Velha poesia (1965).
In: MACHADO, Gilka. Poesias completas. Apres. Eros Volúsia Machado. Rio
de Janeiro: L. Christiano: FUNARJ, 1991, p.440.
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Gilka Machado


 

Particularidades ...


Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão torcê-los;
é incrível a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma... Os pêlos...

 

Amo as noites de luar porque são de veludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo
em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.

 

Pela fria estação, que aos mais seres eriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
às luvas de camurça, às boas, à pelica...

 

O meu tato se estende a todos os sentidos;
sou toda languidez, sonolência, preguiça,
se me quedo a fitar tapetes estendidos.


Publicado no livro Estados da Alma (1917).
In: MACHADO, Gilka. Poesias completas. Apres. Eros Volúsia Machado.
Rio de Janeiro: L. Christiano: Funarj, 1991. p.150.
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Gilka Machado


 

Pelo telefone


Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás;
amo-te pelo enigma pertinaz
que em ti me atrai e me intimida,
por essa música mendaz
de tua voz
que alvoroçou minha audição
e me vem desviando a vida
de seu destino de solidão.

 

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás...
Fala-me sempre,
mente mais;
não te posso exprimir o pavor que me invade,
as aflições que me consomem,
ao meditar na triste realidade
de que deve ser feita
essa tua alma de homem.

 

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás,
audaz
desconhecido;
tua palavra mente ao meu ouvido,
mas não mente essa voz que me treslouca!
— Ela é o amor que me chama por tua boca,
num apelo tristonho,
de saudade;
é a exortação do sonho
à minha rara sensibilidade.
Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás:
amo a ilusão que tua voz me traz.
a falsidade em que procuro crer.

 

Fala-me sempre, mente mais,
que de mim só mereces tanto apreço,
ó nebuloso, porque desconheço
as humanas misérias de teu ser!

 

Mas nesta solidão a que me imponho,
quando quedo em silêncio
a te aguardar a voz,
como se torna teu enigma atroz,
que ânsia de estrangular este formoso sonho,
de transpor os espaços,
de bem te conhecer,
de me atirar depressa,
inteira,
nos teus braços,
de te possuir só para te esquecer!...


Publicado no livro Sublimação (1938).
In: MACHADO, Gilka. Poesias completas. Apres. Eros Volúsia Machado. Rio de Janeiro: L. Christiano: FUNARJ, 1991, P. 328-
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Gilka Machado


 

Ser Mulher ...


Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...

 

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor...

 

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...

 

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!


Publicado no livro Cristais partidos (1915).
In: MACHADO, Gilka. Poesias completas. Apres. Eros Volúsia Machado. Rio de Janeiro: L. Christiano: FUNARJ, 1991, p. 106.
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Gilka Machado


 

Troversando


Do sucesso na subida
nunca te orgulhes demais
muito difícil na vida
é conservar o cartaz

 

(...)

 

Eu não explico a ninguém
pois ainda não compreendi
porque te chamo meu bem
se sofro tanto por ti.

 

(...)

 

Entre nuvens no infinito,
sofro a prisão mais prisão...
Sinto-me pássaro aflito
na gaiola de um avião.

 

Não rias do que te digo
mas sempre na nossa alcova
eu quisera estar contigo
como escova sobre escova.

 

(...)

 

Do meu coração me espanto!
O amor só me deu pesar,
como tendo amado tanto
tenho ainda amor para dar?!...

 

(...)


Publicado no livro Velha poesia (1965).
In: MACHADO, Gilka. Poesias completas. Apres. Eros Volúsia Machado. Rio de Janeiro: L. Christiano: FUNARJ, 1991, p.429-
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Gilka Machado


 

Verão


A Primavera veio
e se foi, mas deixou tremendo em cada seio
um rebento de amor. O Verão se acentua,
e, de manhã, bem cedo,
vêm dos silêncios amplos e sombrios
dos versudos moitais,
vêm do arvoredo,
murmúrios
macios
de cicios...
Há um mistério, um segredo
que sai dos íntimos refolhos
da alma dos animais,
das plantas, do minério,
– amoroso mistério
que as mulheres relatam pelos olhos.

 

Parece mais redonda
a curva da montanha, a curva da onda...
Por onde quer que a luz dos olhos entre
estranha tumescência encontra em cada ventre;
o claro e escampo céu, sobre as coisas aberto
da terra está mais perto
e está mais lindo,
como que pesado, como que caindo,
das entranhas contendo nos profundos
desvãos a gravidez de novos mundos.

 

Verão!
Que maravilha!
– a luz fervilha
em tudo:
nota-se do silêncio no veludo
uma palpitação
de existência no embrião;
partículas de Sol a água envolve, rolando,
partículas de Sol tremem, de quando em quando,
na fronderia, no ar;
partículas de Sol pululam pela estrada
que trilho, iluminada...
Creio que a luz esteja a desovar,
sinto-a vivendo, sinto-a vibrando
na minha pele, em cada membro, a cada
instante, e vago contaminada,
pelo gérmens vitais da procriação solar.

 

O dia lembra uma exaustão de amor...
Verão! Que acídia, que langor!...
Quem me dera também me desdobrar assim
como esse azul etéreo
que paira sobre mim
num lírico elastério!...
Por ti, Verão, todo meu corpo sente
ânsia de se expandir indefinidamente,
ânsia de se esticar, de se esticar
como as montanhas, como o mar,
em curvas lentas, no semiústo ambiente;
ânsia de distender
uma serpente
que carrego enroscada no meu ser.

 

Quero amor, quero ardência! A ti me exponho.
Verão, sou toda fecundidade!
– O calor me penetra, o Sol me invade
o senso,
e tudo em torno a mim se torna mais extenso,
tudo em que os olhos ponho:
o céu, o oceano, a mata...
E enquanto em gestação a Terra se dilata,
Dilata-se minha alma à gestação do Sonho.


Publicado no livro Mulher Nua (1922).
In: MACHADO, Gilka. Poesias completas. Rio de Janeiro: L. Christiano, 1992.
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

Início desta página

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)