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			Ferreira Gullar 
			  
  
			
			São Paulo, domingo, 30 de abril de 
      2006   
			
			Folha 
			Ilustrada 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
			
			O feitiço do Bruxo 
			 
 
			
			Uma rápida escaramuça encrespou o meio 
			literário quando alguém afirmou que o romance "Dom Casmurro", de 
			Machado de Assis, não era lá essa obra-prima que se diz que é. Ao 
			ler alguma coisa a respeito, perguntei-me se não poderia essa 
			crítica ter algum fundamento -e fui conferir. 
			
			Fazia quase 20 anos que não relia o 
			romance e, muito embora minha opinião sobre ele fosse a consagrada, 
			alimentava, machadianamente, a hipótese de vê-la desmentida. Não é 
			que eu tenha restrições ao Bruxo do Cosme Velho, mas é que, a 
			exemplo dele, não gosto de mistificações, a verdade deve ser dita, 
			ainda que doa um pouco. Assim, investido de total isenção, iniciei a 
			minha releitura e, logo no primeiro parágrafo, já estava de novo 
			enfeitiçado por sua irreverência bem-humorada. Depois de contar como 
			ganhara o apelido de dom Casmurro, que decidira usar como título do 
			livro, alude à hipótese de que o autor do apelido venha a julgar-se 
			também autor do livro, e arremata: "Há livros que apenas terão isso 
			de seus autores; alguns, nem tanto".
			
			Como não pretendo meter-me em 
			polêmicas alheias nem fazer uma reavaliação crítica do famoso 
			romance, vou tentar dividir com você, leitor, as alegrias que a dita 
			releitura me proporcionou. Mesmo que já tenha lido o romance -o que 
			é bem provável-, não deixará de reler com prazer trechos como este: 
			"Ia entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e 
			escondi-me atrás da porta. A casa era a da rua de Mata-cavalos, o 
			mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas não hei de trocar 
			as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam 
			histórias velhas; o ano era de 1857".
			
			Como o leitor bem sabe, Bentinho, já 
			então velho e casmurro, imaginou preencher sua solidão escrevendo 
			talvez sobre jurisprudência, filosofia e política, mas logo desistiu 
			e pensou em escrever uma "História dos Subúrbios", de que abriu mão 
			por lhe faltarem documentos e datas. Restou-lhe, então, escrever 
			sobre sua própria vida, o que implicaria contar a história de um 
			amor nascido na adolescência, quando conheceu a menina Capitu e os 
			dois se apaixonaram; um puro amor de crianças, que começou no 
			quintal da casa e se alimentou dos sorrisos e olhares da menina que, 
			segundo o agregado da família, José Dias, tinha "uns olhos de 
			cigana, oblíqua e dissimulada". 
			
			Mas a Bentinho era difícil encontrar a 
			definição para aqueles olhos: "Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o 
			que me dá a idéia daquela feição nova. Traziam um não sei que fluido 
			misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro como a 
			vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser 
			arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos 
			braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa 
			buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e 
			escura, ameaçando envolver-me, puxar-me, tragar-me".
			
			E, de fato, tragou-o. Tanto que tudo 
			fez para se livrar do seminário e se entregar definitivamente à 
			paixão de sua vida. Os ciúmes que ela lhe despertava desvaneceram-se 
			quando os dois juraram que haveriam de se casar e viver juntos o 
			resto de sua vida. Casaram-se e lhes nasceu um filho a que deram o 
			nome de Ezequiel, em homenagem a Ezequiel Escobar, o melhor amigo do 
			casal. Só que, à medida que o menino crescia, mais se parecia com o 
			amigo e não com o pai. Bem, todo mundo já conhece essa história e, 
			se a relembro aqui, é por ser ela a matéria amarga com que Machado 
			inocula seu pessimismo.
			
			"Dom Casmurro" é um livro triste que 
			nos faz rir de nossa própria fragilidade e nos encanta por sua 
			qualidade literária. Se é verdade que toda a obra de Machado está 
			marcada pelo ceticismo e pela ironia, neste romance, o desencanto 
			parece atingir seu ápice. A traição de Capitu não é uma traição 
			qualquer: ela trai o puro amor de sua vida, a que jurara fidelidade. 
			Aqui, o ceticismo de Machado revela-se implacável e irremissível. 
			Que Marcela traia Brás Cubas, é compreensível; que Virgília traia 
			Lobo Neves, é corriqueiro, mas, ao levar Capitu a trair Bentinho, 
			Machado nos deixa em total desamparo. Não obstante, depois de tudo, 
			nenhuma mulher levou Bentinho a esquecer Capitu, segundo ele, "a 
			primeira amada" de seu coração. E por que? "Talvez porque nenhuma 
			tinha olhos de ressaca e de cigana oblíqua e dissimulada." À 
			pergunta de se a Capitu que o traiu já estava na menina da rua de 
			Mata-cavalos, responde que sim, estava, como a fruta na casca. E 
			conclui o livro com estas palavras ressentidas, mas desabusadas: "A 
			minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão 
			queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e 
			enganando-me... A terra lhes seja leve. Vamos à "História dos 
			Subúrbios". 
			
			A releitura de "Dom Casmurro" levou-me 
			a reler "Memórias Póstumas de Brás Cubas", não menos amargas, mas 
			das quais tiro para o leitor uma frase que o faça rir: "E eu, 
			atraído pelo chocalho de lata que minha mãe agitava diante de mim, 
			lá ia para a frente, cai aqui, cai acolá; e andava, provavelmente 
			andava mal, mas andava, e fiquei andando".
			
			Pessimismos à parte, poucos escritores 
			alcançaram, como Machado, tanta graça e mestria na arte de escrever. 
 
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