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Diogo Mainardi

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

Diogo Mainardi


Eu tenho um filho

[título original: O Grande  Botão Vermelho]

 

 

 

"Neil Young é um colecionador de trens
elétricos. Como seu filho era incapaz de acionar
os trens, ele inventou um dispositivo: O Grande Botão
Vermelho. Meu filho tem um Grande Botão Vermelho
conectado a mim. Ele me liga e desliga quando quer"

 

 

Eu tenho um filho com paralisia cerebral. Neil Young tem dois.

Ele fez o hino da paralisia cerebral. É T-Bone, do disco Re-ac-tor. Neil Young repete uma mesma frase sem parar, por nove minutos e dez segundos:

Got mashed potatoes

Ain't got no T-bone

Ou:

Tenho purê de batatas

Não tenho bisteca

A paralisia cerebral é uma anomalia motora. Meu filho anda errado, pega errado, fala errado. Quando é para soltar um músculo, ele contrai. Quando é para contrair, ele solta. O cérebro dá uma ordem, o corpo desobedece. É o motim do corpo contra o cérebro. Como o doutor Strangelove que se estrangula, com aquela sua "síndrome da mão alienígena".

O tratamento da paralisia cerebral consiste em repetir em casa e na fisioterapia os movimentos que os outros meninos aprendem instintivamente. Sobe. Desce. Rola para um lado. Rola para o outro. Abre. Fecha. Perna direita para a frente. Perna esquerda para a frente.

Neil Young teve dois filhos com paralisia cerebral com duas mulheres diferentes. Por isso ele é o chefe da nossa tribo. O primeiro filho se chama Zeke. O segundo se chama Ben. T-Bone é de 1981. Na época, Ben tinha 3 anos de idade. Ele era tratado pelo método Doman, um programa de terapia intensiva desenvolvido na Filadélfia, nos Estados Unidos. Eram doze horas por dia de terapia caseira, sete dias por semana.

Neil Young falou sobre o período:

– Nosso filho não engatinhava, e diziam que, se ele não conseguisse engatinhar, a culpa era nossa, porque não tínhamos seguido o programa direito. Sofremos uma lavagem cerebral para pensar que o único jeito de salvar nosso filho era o programa. Durou dezoito meses. Dezoito meses sem sair de casa.

Neil Young só podia trabalhar entre 2 e 6 da tarde. Foi nesse intervalo de quatro horas diárias que ele gravou Re-ac-tor. O resto do tempo era dedicado à terapia de Ben, repetindo obcecadamente sua rotina de movimentos. Batata. Bisteca. Batata. Bisteca. Batata. Bisteca. Batata.

O método Doman era uma seita. Ao longo dos anos, acabou perdendo adeptos. O conceito lamarckiano de que o uso contínuo podia moldar as características dos portadores de paralisia cerebral foi posto de lado. Era muita batata para pouca bisteca.

Quando Neil Young percebeu isso, tudo mudou. Em vez de tentar adaptar Ben à realidade, ele passou a adaptar a realidade a Ben. Neil Young é um colecionador de trens elétricos. Como Ben era incapaz de acionar os trens, ele inventou um dispositivo para facilitar a operação. O dispositivo ficou conhecido como O Grande Botão Vermelho. Com O Grande Botão Vermelho, Ben podia finalmente abrir porteiras, engatar locomotivas, fazer o trem mudar de trilho, soltar fumaça e apitar.

Meu filho nunca se interessou por trens elétricos. Mas ele tem um Grande Botão Vermelho conectado a mim. Ele me liga e desliga quando quer. E me faz mudar de trilho, soltar fumaça e apitar.

 

 

[Revista VEJA, 3.3.2007, Ed. n° 1998]

 



Nota do editor:

 

O texto trabalha dois elementos fundamentais à Poesia: o distanciamento total e a absoluta proximidade. Como se nada tivesse a ver, o autor conta a história de outros dois meninos; a demonstrar que tudo tem a ver: "...E me faz mudar de trilho, soltar fumaça e apitar".

Sim, na minha conta, poético (e Poesia) de alta qualidade.

Não está sob estrofes e rimas?!

Nada a ver. De fato, um texto rimado e sob o formato de linhas quebradinhas, se não trouxer, dentre outras, estas duas qualidades, o distanciamento e o proximal, isto é, o humano como gênero e o Humano como espécie... Bom — aliás, mal — será qualquer coisa, menos poesia. O olhar por sobre... olhar sobre si no olhar sobre o filh.../

Sabem quem escrevia assim, do simples ao mais profundo? Manuel Bandeira.

Parabéns, Mainardi!

Soares Feitosa, leitor. [Sim, leitor! E por favor, prezado leitor, mande a sua opinião.]

soaresfeitosa@uol.com.br


 

 

Dos Leitores

Ana Guimarães

Luiz Paulo Santana

Luís Antonio Cajazeira Ramos

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos

 

Sent: March 05, 2007 2:39 PM
Subject: Diogo Mainardi


 

Tosa,

Li o artigo de Diogo Mainardi ontem (domingo). Meu primeiro impulso foi Luís Antonio Cajazeira Ramosmandar um e-mail para a Veja, mas terminei desistindo, não sou de participar da coluna do leitor.

Fiquei muito emocionado durante a leitura, maravilhado. O artigo é muito tocante. Agora, sabendo que você também reagiu de forma comovida, alegro-me sobremaneira. Continuamos sintonizados.

Um abração,

L.A.
 

 

Ana Guimarães

Sent: Tuesday, March 06, 2007 7:24 PM
Subject: comentário ao texto "Eu tenho um filho", de Diogo Mainardi

 
Caro Soares Feitosa
 
O BOTÃO VERMELHO
 

O poeta tem um botão vermelho que o conecta a poesia, só não sabe quem inventou o dispositivo: uns dizem que foram as musas inspiradoras, outros, que é o inconsciente, sempre ele, e outros ainda atribuem a Deus esse ligar e desligar quando bem entende. Mas o que importa é o resultado, como Lacan dizia: "não me interessa por que sua filha é muda, trata-se de fazê-la falar": o que há é que quando esse botão vermelho é acionado nos faz "abrir porteiras, engatar locomotivas, mudar de trilho, soltar fumaça e [até] apitar".

Abraços, extensivos a Diogo Mainardi,

Ana Guimarães

 
 

Luiz Paulo Santana

 

Sent: Wednesday, March 28, 2007 7:33 PM
Subject: Diogo Mainardi: "Eu tenho um filho"

 
Caríssimo Amigo e Poeta Soares Feitosa;Luiz Paulo Santana
 
Abraço forte deste que há muito não lhe escreve, mas continua "ligado".
 
Primeiro contato com Mainardi foi de encontro ao aço ferino de suas (dele) palavras: as ácidas (estas, sim) crônicas políticas em "Veja". Soube, então, que havia um filho e que, por canalhice de alguém, fora citado numa querela. Isso NUNCA se faz! Com quem quer que seja!
 
Depois, como tradutor de "As Cidades Invisíveis", de Ítalo Calvino. Não posso negar: uma ponte nos ligava naquele momento.
 
E agora, esta prosa poética. É preciso estar muito bem consigo mesmo, para distanciar-se assim, de algo tão avassalador. Ele certamente não pediria a menor piedade ou compaixão. Parece orgulhoso, "de ferro", como diria Drummond.
 
Não, ninguém é assim tão duro, que não possa ser humano, e assim o sendo, doar-se ao filho que "...anda errado, pega errado, fala errado." Ao mesmo tempo em que confessa seu (nosso) aturdimento: Mas ele tem um grande botão vermelho conectado a mim. Ele me liga e desliga quando quer. E me faz mudar de trilho, soltar fumaça e apitar."
 
Mais que poético, mais que comovente.
 
Abraço forte,
 
LPSantana
BH/MG
 

 

 

 

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