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Claudio Willer


 



Encarnações da poesia


 


 

Já disse isso em outras ocasiões: São Paulo, em 1960, sendo já uma metrópole, ainda tinha, culturalmente, características de província. Sabia-se de tudo, ou do que importava, sem precisar de noticiário na imprensa. Um dos assuntos da cidade naquele momento: a palestra sobre Artaud por Dora Ferreira da Silva (onde foi? no IAB?). O que se comentava: em vez de limitar-se a expor, a falar sobre o criador do teatro da crueldade, ela o havia encarnado de um modo que espantou a platéia. Performance, diríamos hoje. Que pena então não haver vídeo para registrar momentos como aquele.

Quem me falou de Dora e Vicente Ferreira da Silva foi Roberto Piva, assim que o conheci. Lawrence! – exclamou, em seu modo entusiástico de referir-se a autores, obras e idéias. Sim – o D. H. Lawrence de A Serpente Emplumada, do poema sobre gencianas roxas – que Dora traduziu –, do texto sobre os túmulos etruscos encimados por falos, dos ensaios sobre literatura norte-americana. Passei a freqüentá-los, a Dora e Vicente. Entre Artaud e Lawrence (fui comprando sucessivos volumes de sua obra nas edições da Penguim), quanta coisa: Rilke, é claro, Mircea Eliade, Eliot, Saint-John Perse. O encantamento das descobertas. Escrevi poemas que permanecerão sempre inéditos, por não passarem de reflexos da minha leitura de Perse.

Com Vicente, participei de um grupo de leituras de Heidegger – os ensaios sobre Hölderlin, Van Gogh e a essência da arte – junto com Antonio Fernando de Franceschi e Carlos Jaquieri. Dora falava-me sobre Isis e Osíris, sobre Dionísio, sobre ritos chineses de sagração da fertilidade, sobre... Mostrei-lhe poemas. Observou onde havia rebarbas que podiam ser aparadas. Estreei em letra impressa em Diálogos: uma tradução de um conto de Lawrence que ela me propôs, Overtones, Ressonâncias, e dois poemas meus.

Como era, o que se passava, a importância daquele pólo cultural na casa normanda da Rua José Clemente em que Dora morou até o fim e onde se encontravam gerações de intelectuais e artistas, isso já foi tema de depoimentos. Um dos primeiros, o de Jorge Mautner no memorialístico Fragmentos de Sabonete. E o que foi dito por Piva e outros dos documentados em Uma outra cidade, de Ugo Giorgetti.

Transcrevo o que Rodrigo de Haro relata, de modo claro e sintético, em sua entrevista à Azougue de Sergio Cohn (republicado no Almanaque Azougue, onde também se pode ler a entrevista de Dora a Fábio Weintraub):

‘O convívio com Dora e Vicente Ferreira da Silva foi muito marcante para nossa geração. A visão panteísta de mundo, um sentimento aristocrático do ser, impregnavam o convívio na casa acolhedora da rua José Clemente. Um jasmineiro estrelado oficiava na entrada de cascalho, onde também se erguia um pinheiro. Dora estabelecera a síntese de Lawrence e San Juan de la Cruz. Havia um clima de retortas e atanores naquelas tertúlias. Em torno de Vicente se reunia um grupo muito eclético, onde até o alto clero se fazia representar. Para Vicente, o inferno podia existir, mas certamente estaria vazio. Costumava dizer: “O mal é extremamente difícil”.

O ateliê de Dora, seu recanto íntimo, ficava no sótão. Ali recebia alguns iniciados para comentar poesia, elaborar trabalhos, fazer leituras e beber chá. Sentados nas otomanas escutávamos a anfitriã que lia com voz muito plástica. Seus comentários eram precisos. Dora tinha o dom muito raro da exatidão em suas observações. Nada lhe escapava, mas uma adesão superior ao trabalho dos outros fazia dela uma ouvinte mágica.’

Depois da morte de Vicente Ferreira da Silva em 1963, Dora criou Cavalo Azul, a publicação sucessora de Diálogos. Envolveu-se, me parece, em uma prospecção poético-religiosa em companhia do poeta Celso Luís Paulini. Por um tempo, permanecia mais em sua outra casa, mais secreta, no Parque Nacional do Itatiaia. Dedicou-se às traduções de Jung – e de Saint-John Perse, de Ângelus Silesius, de... Estreou editorialmente com sua própria poesia em 1970, com mais de 50 anos de idade. E foi surpreendendo com novos livros – quem diria, a Poesia Reunida (Topbooks, 1999), as centenas de páginas de poemas tão límpidos, ao mesmo tempo densos e simples, um conjunto de tamanha consistência. Ao ler cada um dos poemas, nitidamente, ouço a voz de Dora. Ainda viria mais: ano passado, o recém-premiado Hydrias, uma viagem à Grécia onde ela ao mesmo tempo esteve e não esteve (leitores gregos certos de que ela havia visitado aquelas paisagens de sua rememoração de O Colosso de Maroussis de Henry Miller).

Encontrei-a com mais freqüência durante a Feira de Poesia e Arte em novembro de 1976, quando lançou Menina, seu mundo, e, logo em seguida, Jardins (esconderijos). Havia, continuava a haver reuniões em que se lia poesia na casa da rua José Clemente, com a participação de Mariajosé Carvalho, também poetisa e tradutora de relevo. Ganhou novos leitores-apreciadores, a exemplo de Floriano Martins e de Donizete Galvão, seu freqüentador a partir da década de 1990. Críticos manifestaram-se, ultrapassando o círculo de freqüentadores da rua José Clemente. Vieram os prêmios: ABL, Jabuti.

Dora foi minha convidada em sessões de apresentações públicas de poetas que promovi em 1996-97. Compareceu á apresentação de Rodrigo de Haro e Roberto Piva. Deu palestra sobre Saint-John Perse em um ciclo sobre a poesia e o mar, que organizei em 1998 na Biblioteca Mário de Andrade. Foi a conferencista sobre Hölderlin em outro ciclo na mesma biblioteca, em 1999, sobre poetas rebeldes e malditos. Politizou Hölderlin, perguntando que respostas ele ofereceria para o mundo dessacralizado de hoje, o mundo do qual os deuses se retiraram. Auditório lotado, uma hora de palestra, prolongados aplausos em pé ao final.

Em 2003, avisou-me que instalava em sua casa um centro cultural, também chamado Cavalo Azul, junto com Rodrigo Petrônio. Convidado, dei um curso sobre surrealismo e imagens poéticas em fevereiro de 2004. Dora dava aulas sobre Sophia, o arquétipo feminino da sabedoria. Eu já havia combinado de, este ano, dar um novo curso. Acabara de lhe passar, através de Rodrigo Petrônio, meu texto sobre gnosticismo e poesia: deixou um recado em minha secretária eletrônica, avisando que não ia poder lê-lo, pois tinha que internar-se para uma cirurgia.

Penso que deveríamos colher mais depoimentos sobre Dora. Organizar, para consulta, a coleção completa de Diálogos e Cavalo Azul. Melhor ainda seria reeditá-las. Novos leitores se surpreenderão. Partilharão esse privilégio, o acesso à informação que nós, afortunadamente, em várias ocasiões, tivemos ao vivo e em primeira mão.


[abril de 2006]
 

 



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18/04/2006