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Carlos Felipe Moisés


 

Coração endurecido (II)

 

Porém meu coração endurecido
não duvidou mil vezes ser culpado.
Marquesa de Alorna

 


Se eu pudesse dizer,
se eu pudesse deixar de perguntar
o que pode amor
contra a fúria de amar;
se eu pudesse impedir
que a noite chegasse;
se este dia azul,
se minhas mãos pudessem --
do fundo do coração endurecido
talvez brotasse a palavra alada que dorme
em mim e voasse
liberta,
para te dizer (se eu pudesse).


(Círculo imperfeito, Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978)
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

Cavalo alado


Foi como ervas e arrancaram-no.
Hoje pasta absorto em campo sombrio
(perdido vôo, exílio nefasto) e
lambe cicatrizes de ferida nenhuma.
 


Às vezes relincha, reclina
o dorso à procura de um rasto,
resto de fome clandestina,
mas não rasteja: ergue a fronte
e sopra dardos de fogo no horizonte.
 


O pouco do nada que lhe coube
é muito. O peito chora sem lágrimas
enquanto a cauda e a mansa crina
ondulam (brisa leve, pranto
alheio), rolando nas dunas
e nas ervas que foi, entre urzes.
 


Arrancaram-no mal raiou a madrugada.
Hoje pasta absorto entre sombras,
se alimenta da noite e sabe
que eterno dura. Mais nada.
 


(Subsolo, São Paulo, Massao Ohno, 1989)
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

Lagartixa

 

para Margarida

 

 

O peito é de vidro.
Os olhos, porcelana
delicada e astuta.
Da língua escorre
o néctar sutil.
As patas são de estanho,
mas sabem se mover
imóveis: mal flutuam.
O ventre é quase nada,
pura transparência
onde se escondem
o dorso e seus andaimes.
Não tem entranhas.
A pele
de tão fina já não é:
         limita
semovente
o nada de fora
e o quase nada de dentro.

O peito é de vidro
mas às vezes se desmancha
em pétalas.
Dentro
pulsa um coração
que imobiliza tudo em torno.
O rabo, sim,
é feito de algo insuspeitado:
       nuvem
        algas
milhares de roldanas
      e desejos
enrodilhados na engrenagem
que espaneja o chão
       e foge
para o céu aberto.
 


(Subsolo, São Paulo, Massao Ohno, 1989)
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

Minotauro


Abrasado em sonho, uma vez foi rei
de um reino sem refúgio nem fronteira.
Reinou além do seu país e sua grei,
enquanto ruminava a hora derradeira.
 


Seu coração de lava incendiou
a memória de dálias e jacintos
e o segredo que o vento lhe negou
se converteu em treva e labirinto.
 


Estrelas e nuvens teve a seus pés
(o sonho azul de toda criatura)
e tudo recusou. Um trono fez
do nada em que abrigou sua loucura.
 


Hoje devora gafanhotos e o mel
destila do seu flanco sem idade.
Reino em ruínas, seu manto é o céu,
onde pasta serena majestade.
 


(Subsolo, São Paulo, Massao Ohno, 1989)
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

A paixão segundo Camões


Transforma-se o amador em coisa alguma,
sem dolo, sem virtude, sem razão.
Por muito amar, dispersa o coração
e rói daquilo que é a alma nenhuma.
 


As esperanças perde, uma a uma,
de decifrar o rosto da paixão.
Sem rumo, ilhado entre o sim e o não,
perde-se no amor de um mar sem espuma.
 


Transforma-se o amador em coisa errante,
atira ao vento um grito enrouquecido,
buscando encontrar-se na coisa amada.
 


A pele rota, o gesto vacilante,
transforma-se, de amar como um perdido,
em sombra de si mesmo, ausência, nada.
 


(Subsolo, São Paulo, Massao Ohno, 1989)
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

Fausto


O dedo em riste
aponta o horizonte
e o ódio persiste
no rosto bifronte.
 


Morde e remorde
a própria língua,
mal ouve o acorde
esvaído à míngua.
 


A sanha incontida
arde e devora,
em dura lida,
o peito que chora.
 


O próprio sangue
escorre, incapaz
de aplacar, exangue,
a sede voraz.
 


O acorde a cantar.
O corpo é uma chama
e espalha no ar
o ódio que ama.
 


(Subsolo, São Paulo, Massao Ohno, 1989)
 

 

 

 

 

26.3.2017