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			Luís Vaz de Camões 
 
 Piscatória
 
 
 PALEMO
 
 Despois que o leve barco ao duro remo,
 onde menos das ondas se temia,
 atou o pescador pobre Palemo;
 enquanto as negras redes estendia
 seu companheiro Alcão na branca areia,
 e Lico as longas cordas envolvia;
 de cima duma rocha, a qual rodeia
 o mar, quebrando nela de contino,
 começou a chamar por Galateia.
 «Deixa o mole licor e cristalino
 - dizia -, ó Ninfa, já que o sol deseja
 enxugar teu cabelo de ouro fino.
 Inda que tem de ti tão grande inveja,
 não temas que te queime o rosto brando:
 basta para abrandar-se que te veja.
 Não te detenhas mais, vem já cortando
 com teu cândido peito as brancas ondas,
 escumas menos brancas levantando.
 Dar-te-ei – com condição que não te escondas
 de mi lá nessas húmidas moradas,
 e que alguma hora, branda, me respondas -
 mil conchas num cordão verde enfiadas,
 todas de uma feição; não de uma cor,
 pois delas são azuis, delas rosadas.
 Inda que seja pobre pescador,
 não sei se em desprezar-me muito acertas,
 pois rico do amor teu me fez Amor.
 Para ti noutras praias mais desertas
 irei pescar por entre pedras duras,
 que sempre verde musgo tem cobertas,
 as pardas ostras onde gotas puras
 de fresco orvalho, dentro endurecidas,
 não podem da cobiça estar seguras.
 Porque deixas de vir? Porque duvidas
 porventura de algum meu companheiro?
 Inda as redes ao sol têm estendidas.
 Toda a noite pescaram; e primeiro
 querem dormir a sesta nesta praia
 que o barco polo mar levem ligeiro.
 Eu, vigiando aqui como atalaia,
 te chamarei até que, de cansado,
 um dia desta rocha abaixo caia,
 deixando este lugar tão infamado
 com minha morte que dos marinheiros
 com o dedo, de lá, será mostrado.
 Dirão os naturais e os estrangeiros:
 "Ali morreu Palemo. Ai, triste história!
 Guardai a nau dali, ventos ligeiros,
 antes que tal suceda!" Vê que glória
 alcanças com deixar aos navegantes
 da tua ingratidão esta memória.
 Da nossa diferença não te espantes:
 tu Ninfa, eu pescador; Glauco, deus vosso,
 qual eu agora sou, tal era dantes.
 Também eu entre as ervas achar posso
 aquela, a quem o Céu deu tal virtude
 que muda noutro ser este ser nosso.
 Mas este amor, que eu cá mudar não pude,
 inda que vá a morar lá nessas águas,
 não temas que a mudança em mi o mude.
 Serão as vivas ondas vivas frágoas,
 em que estarei ardendo noite e dia,
 se não tiveres dó de tantas mágoas.
 As horas naturais da pescaria
 não vês que vão passando? Como as passas?
 Quem deste passatempo te desvia?
 Ah, rigorosa Ninfa! Ah! não me faças
 dar em vão tantos gritos. Vem; iremos
 ambos a levantar as verdes naças.
 Ambos os anzóis curvos cobriremos
 de mentirosas iscas, com que os peixes
 a todo prazer nosso prenderemos.
 Assi de Amor cruel nunca te queixes,
 e dessa formosura as mais formosas
 ninfas do mar azul vencidas deixes.
 Que venhas – pois por ti com saudosas
 lágrimas vou gastando a vida e alma -
 a tirar-me esperanças duvidosas.
 A praia está calada, o mar em calma;
 por cima desta rocha brandamente
 Zéfiro respirando a desencalma.
 Aqui não sinto cousa certamente
 por que deixes de vir, como soías,
 senão que não és tu disso contente.
 Se desgostas das grossas pescarias,
 marisco apetitoso aqui não falta,
 já sejam luas cheias, já vazias.
 Polos pés desta rocha dura e alta
 irei eu despegando uns como pés
 de um pequeno animal, que nela salta,
 e vivos te darei – se deles és
 amiga – mil cangrejos vagarosos,
 que verás ir andando de revés.
 Não te darei ouriços espinhosos,
 porque te quero tanto que receio
 que esses teus dedos piquem tão mimosos.
 Faz daqui perto o mar um largo seio,
 onde de amêijoas lisas, sem trabalho,
 podemos apanhar um cesto cheio.
 Mas além de tudo isto um crespo galho
 de vermelho coral te darei logo,
 que por dita arrastou o meu tresmalho.
 Mas ai! que em vão te chamo, em vão te rogo;
 que nem tu a meus rogos tens respeito,
 nem eu, por mais que grite, desafogo.
 Um coração em lágrimas desfeito
 como já não te abranda? Quem encerra
 crueza tal em tão formoso peito?
 Não reina Amor no mar, como na terra?
 Bem sabes que mil vezes já venceu
 a Neptuno, teu Rei, em clara guerra.
 Sua formosa mãe onde nasceu
 senão no próprio mar em que te banhas?
 Onde Thétis por Peleu em fogo ardeu?
 Se das pedras nascesses nas montanhas,
 se com leite de tigres te criaras,
 mais duras não tiveras as entranhas.
 Apareceras tu e então tornaras
 lago a esconder-te, logo, se quiseras,
 nas ondas, que de ti me são avaras.
 Com üa mostra só que de ti deras,
 a vida, que me foge em não te vendo,
 cos teus formosos olhos detiveras.
 Então viras os meus donde, correndo,
 de lágrimas se vêm dous largos rios,
 que o mar também em si vai recolhendo.
 Ah, néscio pescador, que desvarios
 me deixo aqui dizer! A quem os digo!
 A surdas ondas já, já a ventos frios.
 Eles e elas já crescem: já em p'rigo
 o barco vejo. Ai! ei-lo combatido.
 Elas e eles o levam já consigo.
 Olhos, que lá me tendes o sentido,
 a culpa é nossa só, que me não vedes.
 Mas, pois o pescador anda perdido,
 perca-se o barco seu, percam-se as redes.»
 
 
 
 
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