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Luís Vaz de Camões




Bem-aventurado aquele que ausente




Bem-aventurado aquele que ausente
do reboliço, tráfego e tumulto,
vê de longe as perdas e insultos,
que faz o mundo vil da nécia gente.
Aos cuidados tem posto freio,
mui alheio
do perigo
que consigo
traz a vida
que, embebida
no peçonhento gosto da cobiça,
o fogo com que arde assim atiça.

Não se mantém no gosto dos favores,
enlevado em falsas esperanças;
vis lhe parecem e baixas as privanças
dos Príncipes, dos Reis e dos Senhores;
por abundância tem e por riqueza
a pobreza;
que, imiga
da fadiga,
não contente,
descontente
por ver o coração que, por viver
sem cuidado e temor, quis pobre ser;

pisa, com peito forte e animoso,
as ambições que os olhos de alma cegam;
despreza as vãs promessas que enlevam
ao vão pensamento cuidadoso
- este por mau e por perverso sempre tive -;
e assim vive,
porque a vida
consumida
com cuidados
escusados,
e sujeita a desconcertos da Ventura,
não é vida vital, mas morte pura.

Não tiram o doce sono as lembranças
importunas do bem ou mal futuro;
os várias sucessos vê seguro,
livre de medo, isento de mudanças.
E posto que a vida breve seja,
não deseja
entendê-la;
goza dela,
que parece
que enriquece.
Porque a vida ocupada em buscar vida,
acha-se mal gastada e não crecida.

Não anda entre amigos encobertos,
a perigos imensos avisado;
mas, com ânimo constante e sossegado,
goza dos corações leais e certos.
Quando o bravo mar furioso
belicoso
fogo acende,
e pretende
com estranha
ira e sanha
roubar a cara paz cá na terra,
com sossego está-se rindo da guerra.

Não ouve da trombeta temerosa
o rouco som que assombra o esforçado;
não teme do cruel e vão soldado
a espada de sangue cobiçosa;
nem o pelouro da espingarda saindo,
retinindo,
pelo ar voa
ledo e soa;
mas descendo,
não se vendo
vai ferir entre muitos o coitado,
que tal caso está bem descuidado.

E posto que o livre entendimento
cativa a vista, e regra a lei que segue,
e a outra vontade a sua entregue,
refreando o errado pensamento;
contudo, tem mais certa liberdade
a vontade
que aceita
ser sujeita,
porque os danos
e enganos
que procedem do próprio parecer,
senhor de si a um não deixa ser.

Ora da baixa terra alevanta
o esperto pensamento ao céu fermoso,
e da vida e de si mesmo queixoso,
morre por possuir riqueza tanta;
ora com doces ais o céu rompendo,
e gemendo
diz a morte:
dura sorte,
se vieras
e me deras
um golpe tão esquivo que morrera,
por verdadeira vida te tivera.


 


 

 

 

 

 

16/03/2006