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Luís Vaz de Camões




Se de meu pensamento




Se de meu pensamento
tanta razão tivera de alegrar-me
quanta de meu tormento
a tenho de queixar-me,
puderas, triste lira, consolar-me.

E minha voz cansada,
que noutro tempo foi alegre e pura,
não fora assi tornada,
com tanta desventura,
tão rouca, tão pesada, nem tão dura.

A ser como soía,
pudera levantar vossos louvores;
vós, minha Hierarquia,
ouvíreis meus amores,
que exemplo são ao mundo, já, de dores.

Alegres meus cuidados,
contentes dias, horas e momentos,
oh! quão bem alembrados
sois de meus pensamentos,
reinando agora em mim, duros tormentos!

Ai, gostos fugitivos
ai, glória já acabada e consumida,
cruéis males esquivos,
que me deixais a vida
quão cheia de pesar, quão destruída!

Mas como não é morta
a triste vida já, que tanto dura?
Como não abre a porta
a tanta desventura,
que em vão, co seu poder, o tempo cura?

Mas, para padecê-la,
se esforça meu sujeito e convalece;
que, só para dizê-la,
a força me falece
e de todo me cansa e me enfraquece.

Oh! bem-afortunado
tu, que alcançaste com lira toante,
Orfeu, ser escutado
do fero Radamante,
e cos teus olhos ver a doce amante!

As infernais figuras
moveste com teu canto docemente;
as três Fúrias escuras,
implacáveis à gente,
quietas se tornaram, de repente.

Ficou como pasmado
todo o estígio reino co teu canto;
e, quase descansado,
de teu eterno pranto
cessou de alçar Sísifo o grave canto.

A ordem se mudava
das penas que ordenava ali Plutão,
em descanso tornava
a roda de Ixião,
e em glória quantas penas ali são.

Pelo qual, admirada
a Rainha infernal e comovida,
te deu a desejada
esposa que, perdida,
de tantos dias já tivera a vida.

Pois minha desventura
como já não abranda üa alma humana
que é contra mim mais dura
e mui mais desumana
que o furor de Calírroe profana?

Ó crua, esquiva e fera,
duro peito, cruel, empedernido,
de algüa tigre fera
da Hircânia nacido,
ou dantre as duras rochas produzido!

Mas que digo, coitado,
e de quem fio em voo minhas querelas?
Só vós, ó do salgado,
húmido reino belas
e claras Ninfas, condoei-vos delas

e, de ouro guarnecidas,
vossas louras cabeças levantando
sôbol' água erguidas,
as tranças gotejando,
saí alegres todas ver qual ando.

Saí em companhia
cantando e colhendo as lindas flores;
vereis minha agonia,
ouvireis meus amores,
assentareis meus prantos, meus clamores.

Vereis o mais perdido
e mais mofino corpo que é gerado;
que está já convertido
em choro, e neste estado
somente vive nele o seu cuidado.

 

 

 

 

 

16/03/2006