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Luís Vaz de Camões




O POETA SIMÓNIDES, FALANDO




O Poeta Simónides, falando
co capitão Temístocles, um dia,
em cousas de ciência praticando,

üa arte singular lhe prometia,
que então compunha, com que lhe ensinasse
a se lembrar de tudo o que fazia;

onde tão sutis regras lhe mostrasse
que nunca lhe passasse da memória
em nenhum tempo as cousas que passasse.

Bem merecia, certo, fama e glória
quem dava regra contra o esquecimento
que enterra em si qualquer antiga história.

Mas o capitão claro, cujo intento
bem diferente estava, porque havia
as passadas lembranças por tormento,

«o ilustre Simónides – dizia –
pois tanto em teu engenho te confias
que mostras à memória nova via?

Se me desses üa arte que em meus dias
me não lembrasse nada do passado,
oh! quanto milhor obra me farias!»

Se este excelente dito ponderado
fosse por quem se visse estar ausente,
em longas esperanças degradado,

oh! como bradaria justamente:
«Simónides, inventa novas artes;
não meças o passado co presente!»

Que, se e forçado andar por várias partes
buscando e vida algum descanso honesto,
que tu, Fortuna injusta, mal repartes;

e se o duro trabalho e manifesto
que, por grave que seja, há-de passar-se
com animoso esprito e ledo gesto;

de que serve às pessoas alembrar-se
do que se passou já, pois tudo passa,
senão de entristecer-se e magoar-se?

Se noutro corpo üa alma se traspassa,
– não, como quis Pitágoras, na morte
mas, como manda Amor, na vida escassa –;

e se este Amor no mundo está de sorte
que na virtude só dum lindo objecto
tem um corpo sem alma, vivo e forte;

onde este objecto falta, que é defecto
tamanho para a vida, que já nela
me está chamando à pena a dura Alecto;

porque me não criara minha estrela
selvático no mundo, e habitante
na dura Cítia, ou na aspereza dela?

Ou no Cáucaso horrendo, fraco infante,
criado ao peito dalgüa tigre hircana?
Homem fora formado de diamante,

porque a cerviz ferina e inumana
não sometera ao jugo e dura lei
daquele que de vida quando engana.

Ou, em pago das águas que estilei,
as que do mar passei foram de Lete,
para que me esquecera o que passei.

Que o bem que a esperança vã promete,
ou a morte o estorva, ou a mudança,
que e mal que üa alma em lágrimas derrete.

Já, Senhor, cairá como a lembrança,
no mal, do bem passado é triste e dura,
pois nace aonde morre a esperança.

E se quiser saber como se apura
nüa alma saudosa, não se enfade
de ler tão longa e mísera escritura.

Soltava Eolo a rédea e liberdade
ao manso Favónio brandamente,
e eu já tinha solta a saudade.

Neptuno tinha posto o seu tridente;
a proa a branca escuma dividia,
co a gente marítima contente.

O coro das Nereidas nos seguia;
os ventos, namorada Galateia
consigo, sossegados, os movia.

Das argênteas conchinhas, Panopeia
andava pelo mar fazendo molhe,
Melaneto, Dinamene, com Ligeia.

Eu, trazendo lembranças por antolhos
trazia os olhos na água sossegada,
e a água sem sossego nos meus olhos.

A bem-aventurança já passada
diante de mim tinha tão presente
como se não mudasse o tempo nada.

E com o gesto imoto e descontente
cum suspiro profundo e mal ouvido
por não mostrar meu mal a toda a gente,

dizia: ó claras Ninfas! Se o sentido
em puro amor tivestes, e inda agora
da memória o não tendes esquecido;

se, porventura, fordes algüa hora
aonde entra o grão Tejo a dar tributo
a Tétis, que vos tendes por Senhora;

ou por verdes o prado verde enxuto,
ou por colherdes ouro rutilante,
das tágicas areias rico fruto;

nelas em verso heróico e elegante,
escrevei cüa concha o que em mim vistes:
pode ser que algum peito se quebrante.

E contando de mim memórias tristes,
os pastores do Tejo, que me ouviam,
ouçam de vós as mágoas que me ouvistes.

Elas, que já no gesto me entendiam
nos meneios das ondas me mostravam
que em quanto lhes pedia consentiam.

Estas lembranças, que me acompanhavam
pola tranquilidade da bonança,
nem na tormenta grave me deixavam.

Porque, chegado ao Cabo da Esperança,
começo da saudade que renova,
lembrando a longa e áspera mudança;

debaixo estando já da estrela nova,
que no novo hemisfério resplandece,
dando do segundo axe certa prova;

eis a noite com nuvens escurece,
do ar supitamente foge o dia,
e o largo oceano se embravece.

A máquina do mundo parecia
que em tormenta se vinha desfazendo,
em serras todo o mar se convertia.

Lutando, Bóreas fero e Noto horrendo
sonoras tempestades levantavam,
das naus as velas côncavas rompendo.

As cordas, co ruído, assoviavam;
os marinheiros, já, desesperados,
com gritos para o Céu o ar coalhavam.

Os raios por Vulcano fabricados
vibrava o fero e áspero Tonante,
tremendo os Pólos ambos, de assombrados!

Ali Amor mostrando-se possante
e que por nenhum modo não fugia,
– mas quanto mais trabalho, mais constante –

vendo a morte diante em mim, dizia:
«Se algüa hora, Senhora, vos lembrasse,
nada do que passei me lembraria».

Enfim, nunca houve cousa que mudasse
o firme Amor do intrínseco daquele
em cujo peito üa vez de siso entrasse.

Üa cousa, Senhor, por certo assele:
que nunca Amor se afina nem se apura,
enquanto está presente a causa dele.

Destarte me chegou minha ventura
a esta desejada e longa terra,
de todo o pobre honrado sepultura.

Vi quanta vaidade em nós se encerra,
e dos próprios quão pouca; contra quem
foi logo necessário termos guerra:

que üa ilha que o rei de Porcá tem,
que o rei da Pimenta lhe tomara,
fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem.

Com üa armada grossa, que ajuntara
o viso-rei de Goa, nos partimos
com toda a gente de armas que se achara,

e com pouco trabalho destruímos
a gente no curvo arco exercitada;
com mortes, com incêndios, os punimos.

Era a ilha com águas alagada,
de modo que se andava em almadias;
enfim, outra Veneza trasladada.

Nela nos detivemos sós dous dias,
que foram para alguns os derradeiros,
que passaram de Estige as águas frias.

Que estes são os remédios verdadeiros
que para a vida estão aparelhados
aos que a querem ter por cavaleiros.

Oh! lavradores, bem-aventuradas
se conhecessem seu contentamento!
Como vivem no campo sossegados!

Dá-lhes a justa terra o mantimento,
dá-lhes a fonte clara a água pura,
mungem suas ovelhas cento a cento.

Não vêem o mar irado, a noite escura,
por ir buscar a pedra do Oriente;
não temem o furor da guerra dura.

Vive um com suas árvores contente,
sem lhe quebrar o sono sossegado
o cuidado do ouro reluzente.

Se lhe falta o vestido perfumado,
e da fermosa cor assíria tinto,
e dos torçais atálicos lavrado;

se não têm as delícias de Corinto,
e se de Pário os mármores lhe faltam,
o piropo, a esmeralda, e o jacinto;

se suas casas de ouro não se esmaltam,
esmalta-se-lhe o campo de mil flores,
onde os cabritos seus, comendo, saltam.

Ali amostra o campo várias cores,
vêem-se os ramos pender co fruto ameno,
ali se afina o campo dos pastores;

ali cantara Títiro e Sileno.
Enfim, por estas partes caminhou
a sã Justiça para e Céu sereno.

Ditoso seja aquele que alcançou
poder viver na doce companhia
das mansas ovelhinhas que criou!

Este, bem facilmente alcançaria
as causas naturais de toda a cousa:
como se gera a chuva e neve fria;

os trabalhos do Sol, que não repousa;
e porque nos dá a Lüa a luz alheia,
se tolher-nos de Febo os raios ousa;

e como tão depressa o Céu rodeia;
e como um só os outros traz consigo;
e se é benina ou dura Citereia.

Bem mal pode entender isto que digo
quem há-de andar seguindo o fero Marte,
que traz os olhos sempre em seu perigo.

Porém seja, senhor, de qualquer arte,
que, posto que a Fortuna possa tanto
que tão longe de todo o bem me aparte,

não poderá apartar meu duro canto
desta obrigação sua, enquanto a morte
me não entrega ao duro Radamanto,
se para tristes há tão leda sorte.

 

 

 

 

 

08/12/2005