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Luís Vaz de Camões




O SULMONENSE OVÍDIO, DESTERRADO




O sulmonense Ovídio, desterrado
na aspereza do Ponto, imaginando
ver-se de seus parentes apartado,

sua cara mulher desamparando,
seus doces filhos, seu contentamento,
de sua pátria os olhos apartando;

não podendo encobrir o sentimento,
aos montes e às águas se queixava
de seu escuro e triste nacimento.

O curso das estrelas contemplava
e como, por sua ordem, discorria
o céu, o ar e a terra adonde estava.

Os peixes pelo mar nadando via,
as feras pelo monte, procedendo
como seu natural lhes permitia.

De suas fontes via estar nascendo
os saudosos rios de cristal,
à sua natureza obedecendo.

Assi só, de seu próprio natural
apartado, se via em terra estranha,
a cuja triste dor não acha igual.

Só sua doce Musa o acompanha,
nos versos saudosos que escrevia,
e lágrimas com que ali o campo banha.

Destarte me afigura a fantasia
a vida com que vivo, desterrado
do bem que noutro tempo possuía.

Ali contemplo o gosto já passado,
que nunca passará pola memória
de quem o tem na mente debuxado.

Ali vejo a caduca e débil glória
desenganar meu erro, coa mudança
que faz a frágil vida transitória.

Ali me representa esta lembrança
quão pouca culpa tenho; e me entristece
ver sem razão a pena que me alcança.

Que a pena que com causa se padece,
a causa tira o sentimento dela;
mas muito dói a que se não merece.

Quando a roxa manhã, fermosa e bela,
abre as portas ao Sol, e cai o orvalho,
e torna a seus queixumes Filomela;

este cuidado, que co sono atalho,
em sonhos me parece; que o que a gente
para descanso tem, me dá trabalho.

E depois de acordado, cegamente
– ou, por melhor dizer, desacordado,
que pouco acordo tem um descontente –

dali me vou, com passo carregado,
a um outeiro erguido, e ali me assento,
soltando a rédea toda a meu cuidado.

Depois de farto já de meu tormento,
dali estendo os olhos saudosos
à parte aonde tenho o pensamento.

Não vejo senão montes pedregosos;
e os campos sem graça e secos vejo
que já floridos vira e graciosos.

Vejo o puro, suave e brando Tejo,
com as côncavas barcas que, nadando,
vão pondo em doce efeito seu desejo:

üas co brando vento navegando,
outras cos leves remos, brandamente
as cristalinas águas apartando.

Dali falo co a água, que não sente,
com cujo sentimento a alma sai
em lágrimas desfeita claramente.

Ó fugitivas ondas, esperai!
que pois me não levais em companhia,
ao menos estas lágrimas levai;

até que venha aquele alegre dia
que eu vá onde vós is, contente e ledo.
Mas tanto tempo quem o passaria?

Não pode tanto bem chegar tão cedo,
porque primeiro a vida acabará
que se acabe tão áspero degredo.

Mas esta triste morte que virá,
se em tão contrário estado me acabasse,
a alma impaciente adonde ira?

Que, se às portas tartáreas chegasse,
temo que tanto mal pola memória
nem ao passar de Lete lhe passasse.

Que, se a Tântalo e Tício for notória
a pena com que vai, que a atormenta,
a pena que lá tem terão por glória.

Esta imaginação me acrecenta
mil mágoas no sentido, porque a vida
de imaginações tristes se sustenta.

Que pois de todo vive consumida,
por que o mal que possui se resuma,
imagina na glória possuída,

até que a noite eterna me consuma,
ou veja aquele dia desejado,
em que Fortuna faça o que costuma;
se nela há i mudar um triste estado.

 

 

 

 

 

08/12/2005