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Luís Vaz de Camões




CORRENTES ÁGUAS FRIAS DO MONDEGO




Correntes águas frias do Mondego,
dignas de ser somente celebradas
de outro engenho, menos que o meu cego:

correi agora, claras e apressadas,
por esses campos verdes saudosos,
banhando-lhe as flores prateadas;

e por desertos montes cavernosos,
vosso natural curso repugnando,
segui novos caminhos espantosos.

Deixai de ir docemente murmurando
pelos troncos dos freixos e salgueiros,
que o Zéfiro move, fresco e brando;

e as fontes de cristal, frescos ribeiros,
refúgio pola sesta dos pastores,
que de vós correm mansos e ligeiros,

todos tornem atrás; sequem-se as flores
que nos alegres prados floreciam
com mil diversidades de lavores.

As mui fermosas Ninfas que saíam
caçar ligeiras feras na montanha.
que em vão achar guarida pretendiam,

da terra a melhor vão da nossa Espanha
buscar novo apascento e novo rio
em triste sítio e entre gente estranha.

O líquido elemento claro e frio
que, retratando suas fermosuras,
refreia o seco ardor do seco estio,

das teias de ouro e sedas que em figuras
vivas ao parecer fazem presente
o passado melhor que as escrituras;

a morada quieta e reluzente
de preciosas pedras fabricada,
no mais fundo do rio e mor corrente;

o retorcido arreio e mui dourada
Frecha de ouro, temida e poderosa,
armas da casta deusa venerada;

o branco lírio e a purpúrea rosa
que, entre outras várias flores, coroava
a branca fronte pura e graciosa;

o bosque, vale ou selva, que gozava
da doce fala e amoroso canto,
que aos mais duros penedos abrandava;

tudo triste, cruel, cheio de espanto
mostre perpétuo inverno e aspereza,
onde jamais se viu seu negro manto.

Os campos se revistam de tristeza;
jamais se veja neles primavera;
em tudo lhe falte arte e natureza.

Nada do que dá o Céu, que a gente espera
se possa achar aqui, nem ache abrigo
Ninfa, gado, pastor, nem ave ou fera.

Tudo, como a mi foi, lhe seja imigo;
que, por força de estrela ou de costume,
fujo do melhor sempre e o pior sigo.

Aquele dos meus olhos doce lume,
por quem alegre fui, por quem sou triste,
e a vida em largas queixas se consume,

donde está, cego Amor? Onde encobriste
um bem de tanto tempo, em um momento,
depois que tão sujeito a ti me viste?

Coa vista, co desejo e pensamento
ver o angélico rosto em vão procuro,
que excede todo o humano entendimento.

Ah, tempo avaro! Ah, Fado esquivo e duro,
que partiste a minha alma, e ma roubaste,
quando eu tinha meu bem por mais seguro!

Ah! Para que o grão preço me tiraste
da vida, num desterro aborrecido,
pois o gosto de o ter, tu mo deixaste?

Ah! Quem se vira dele despedido,
quando se despediu uma confiança,
que lhe fazia glória o ser perdido!

Quantas cousas mudou uma esperança,
quanto prazer já vi, quanto mal vejo.
quanto engano naceu de uma confiança!

Deixem o celebrado e rico Tejo
os coros das Nereidas que cantavam,
que é princípio e fim de meu desejo;

as peregrinas aves, que alternavam
cantigas aprazíveis nos sombrios
vales que amanhecendo retumbavam.

Tornai-vos, olhos meus, tornai-vos rios,
até que a imortal Parca, ou tarde ou cedo,
atalhe tanto mal com duros fios.

Que ainda falar de estado ou tempo ledo
co alívio me tolha meu destino
para que viva de contino em medo.

Mas tão longe do bem, de que era indino,
que pode arrecear que já não visse
o vago pensamento peregrino?

Se a meu ânimo crera, ele me disse,
antes de anoutecer com mil receios
da dor que adivinhou sem que a sentisse.

Fortuna me tirou todos os meios
de ser contente, e mais com apartar-me
destes campos de erva e prazer cheios.

E pois que neles só posso alegrar-me,
jamais quero ver neles alegria,
que só pode servir de magoar-me.

Vai crecendo coa dor, de dia em dia,
o grão temor, tristeza e saudade.
Faça à cansada vida companhia
a perdida esperança e liberdade.

 

 

 

 

 

08/12/2005