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Luís Vaz de Camões




ALMENO e AGRÁRIO, pastores




Ao longo do sereno
Tejo, suave e brando,
num vale de altas árvores sombrio,
estava o triste Almeno
suspiros espalhando
ao vento e doces lágrimas ao rio.
No derradeiro fio
o tinha a esperança
que, com doces enganos,
lhe sustentara a vida tantos anos
nüa amorosa e branda confiança;
que, quem tanto queria,
parece que não erra, se confia.

A noite escura dava
repouso aos cansados
animais, esquecidos da verdura;
o vale triste estava
cuns ramos carregados
que a noite faziam mais escura.
Mostrava a espessura
um temeroso espanto;
as roucas rãs soavam
num charco de água negra, e ajudavam
do pássaro nocturno o triste canto;
o Tejo, com som grave,
corria mais medonho que suave.

Como toda a tristeza
no silêncio consiste,
parecia que o vale estava mudo;
e, com esta graveza,
estava tudo triste.
Porém o triste Almeno mais que tudo;
tomando por escudo
de sua doce pena,
para poder sofrê-la,
estar imaginando a causa dela;
que, em tanto mal, e cura bem pequena.
Maior é o tormento
que toma por alívio um pensamento.

Ao rio se queixava,
com lágrimas em fio,
com que creciam as ondas outro tanto.
Seu doce canto dava
tristes águas ao rio,
e o rio triste som ao doce canto.
Co cansado pranto,
que as águas refreava,
responde o vale umbroso.
Da mansa voz o acento temeroso
na outra parte do rio retumbava,
quando, da fantasia,
o silêncio rompendo, assi dizia:

«Corre suave e brando
com tuas claras águas,
saídas de meus olhos, doce Tejo,
fé de meus males dando,
para que minhas mágoas
sejam castigo igual de meu desejo;
que pois em mim não vejo
remédio, nem o espero,
e a morte se despreza
de me matar, deixando-me a crueza
daquela por quem meu tormento quero,
saiba o mundo meu dano,
por que se desengane em meu engano.

Já que minha ventura
- ou quem me a causa ordena -
quer por paga da dor tome sofrê-la,
será mais certa cura
para tamanha pena
desesperar de haver já cura nela.
Porque, se minha estrela
causou tal esquivança,
consinta meu cuidado
que me farte de ser desesperado,
para desenganar minha esperança,
que para isso naci:
para viver na morte, e ela em mi.

Não cesse meu tormento
de fazer seu ofício,
que aqui tem üa alma ao jugo atada;
nem falte o sofrimento,
porque parece vício
para tão doce mal faltar-me nada.
Ó Ninfa delicada,
honra da Natureza!
Como pode isto ser;
que de tão peregrino parecer
pudesse proceder tanta crueza?
Não vem de nenhum jeito
de causa divinal contrário efeito.

Pois como pena tanta
é contra a causa dela?
Fora é de natural minha tristeza.
Mas a mim que me espanta?
Não basta, ó Ninfa bela,
que podes perverter a Natureza?
Não é a gentileza
de teu gesto celeste
fora do natural?
Não pode a Natureza fazer tal;
tu mesma, bela Ninfa, te fizeste.
Porém porque tomaste
tão dura condição, se te formaste?

Por ti, o alegre prado
me é pesado e duro;
abrolhos me parecem suas flores.
Por ti, do manso gado,
como de mim, não curo,
por não fazer ofensa a teus amores.
Os jogos dos pastores,
as lutas entre a rama,
nada me faz contente;
e sou já do que fui tão diferente
que, quando por meu nome alguém me chama,
pasmo, quando conheço
que inda comigo mesmo me pareço.

O gado que apacento
são n'alma meus cuidados;
e as flores, que no campo sempre vejo,
são no meu pensamento
teus olhos debuxados,
com que estou enganando meu desejo.
As águas frias do Tejo,
de doces, se tornaram
ardentes e salgadas,
despois que minhas lágrimas cansadas
com seu puro licor se misturaram,
como quando mistura
Hípanis co Exampeu sua água pura.

Se aí no mundo houvesse
ouvires-me algüa hora,
assentada na praia deste rio,
e de arte te dissesse
o mal que passo agora,
que pudesse mover-te o peito frio...
Oh, quanto desvario
que estou afigurando!
Já agora meu tormento
não pode pedir mais ao pensamento
que este fantasiar que, imaginando,
a vida me reserva.
Querer mais de meu mal será soberba.

Já a esmaltada Aurora
descobre o negro manto
da sombra, que as montanhas encobria.
Descansa, frauta, agora,
que meu cansado canto
não merece que veja o claro dia.
Não canse a fantasia
de estar em si pintando
o gesto delicado,
enquanto traz ao pasto o manso gado
este pastor que lá só vem falando;
calar-me-ei somente,
que meu mal nem ouvir-se me consente.»

AGRÁRIO pastor

Fermosa manha clara e deleitosa
que, como fresca rosa na verdura,
te mostras bela e pura, marchetando
as Ninfas, espalhando seus cabelos
nos verdes montes belos; tu só fazes,
quando a sombra desfazes triste e escura,
fermosa a espessura e fresca a fonte,
fermoso o alto monte e o rochedo,
fermoso o arvoredo e deleitoso;
enfim, tudo fermoso. Co teu rosto,
de ouro e rosas composto e claridade,
trazes a saudade ao pensamento,
mostrando num momento o roxo dia,
coa doce harmonia nos cantares
dos pássaros a pares que, voando,
seu pasto andam buscando nos caminhos,
para os amados ninhos, que mantêm.
Ó grande e sumo bem de Natureza!
Estranha subtileza de pintora,
que matiza, nüa hora, de mil cores
o céu, a terra, as flores, monte e prado!
Ó tempo já passado, quão presente
te vejo abertamente na vontade!
Quamanha saudade tenho agora
do tempo que a pastora minha amava,
e de quanto prezava minha dor!
Então tinha o amor maior poder;
então num só querer nos igualava,
porque, quando um chamava a quem queria,
o eco respondia da afeição
no brando coração da doce imiga.
Nesta amorosa liga concertavam
os tempos, que passavam com prazeres.
Mostrava a flava Ceres polas eiras
das brancas sementeiras ledo fruto,
pagando seu tributo aos lavradores;
e enchia aos pastores todo o prado
Pales, do manso gado guardadora.
Zéfiro e a fresca Flora passeando,
os campos esmaltando de boninas;
nas águas cristalinas triste estava
Narciso, que inda olhava n'água pura
sua linda figura delicada;
mas Eco, namorada de seu gesto,
com pranto manifesto, seu tormento
no derradeiro acento lamentava.
Ali também se achava o sangue tinto
do purpúreo Jacinto, e o destroço
de Adónis, lindo moço, morte feia,
da bela Citereia tão chorada;
toda a terra esmaltada destas rosas!
Ali as Ninfas fermosas pelos prados,
os Faunos namorados após elas,
mostrando-lhe capelas de mil cores,
que faziam das flores que colhiam;
as Ninfas lhe fugiam, amedrontadas,
as fraldas levantadas, pelos montes.
A fresca água das fontes espalhar-se,
Vertuno transformar-se ali se via;
Pomona, que trazia os doces fruitos;
ali pastores muitos, que tangiam
as gaitas que traziam e, cantando,
estavam enganando suas penas,
tomando das Sirenas o exercício.
Ouvia-se Salício lamentar-se,
da mudança queixar-se crua e feia
da dura Galateia, tão fermosa;
e da morte envejosa Nemoroso
ao monte cavernoso se querela,
que sua Elisa bela, em pouco espaço,
cortara inda em agraço a dura sorte.
Ó imatura morte, que a ninguém,
de quantos vida têm, nunca perdoas!
Mas tu, Tempo, que voas apressado,
um deleitoso estado quão asinha
nesta vida mesquinha transfiguras
em mil desaventuras, e a lembrança
nos deixas por herança do que levas!
Assi que se nos cevas com prazeres,
á para nos comeres no milhor.
Cada vez em pior te vás mudando;
quanto vens inventando, que hoje aprovas,
logo amanhã reprovas com instância!
Ó estranha inconstância e tão profana
de toda a cousa humana inferior,
a quem o cego error sempre anda anexo!
Mas eu de que me queixo? ou que digo?
Vive o tempo comigo, ou ele tem
culpa no mal que vem da cega gente?
Porventura ele sente ou ele entende
aquilo que defende o Ser Divino?
Ele usa de contino seu ofício,
que já por exercício lhe é devido:
dá-nos fruto colhido na sazão
de fermoso Verão; e, no Inverno,
com seu humor eterno congelado,
do vapor levantado coa quentura
do sol, a terra dura lhe dá alento,
para que o mantimento produzindo
estê sempre cumprindo seu costume;
assi que não consume de si nada,
nem muda da passada vida um dedo;
antes sempre está quedo no devido,
porque este é seu partido e sua usança;
e nele está mudança e mais firmeza.
Mas quem a lei despreza e pouco estima
de Quem de lá de cima está movendo
o Céu sublime e horrendo, o mundo puro,
este muda o seguro e firme estado
do tempo, não mudado da verdade.
Não foi naquela idade de ouro claro
o firme tempo caro e excelente?
Vivia então a gente moderada;
sem ser a terra arada, dava pão;
sem ser cavado, o chão as frutas dava;
nem chuva desejava, nem quentura;
supria então Natura o necessário.
Pois quem foi tão contrário a esta vida?
Saturno que, perdida a luz serena,
causou que, em dura pena desterrado,
fosse do Céu deitado, onde vivia,
porque os filhos comia, que gerava.
Por isso se mudava o tempo igual
em mais baixo metal e, assi decendo,
nos veio assi trazendo a este estado.
Mas eu, desatinado, adonde vou?
Para onde me levou a fantasia,
que estou gastando o dia em vãs palavras?
Quero ora minhas cabras ir levando
ao manso Tejo brando, porque achar
no mundo que emendar não e de agora;
basta que a vida fora dele tenho.
Com meu gado me avenho, e estou contente.
Porém, se me não mente a vista, eu vejo
nesta praia do Tejo estar deitado
Almeno que, enlevado em pensamentos,
as horas e momentos vai gastando;
para ele vou chegando, só por ver
se poderei fazer que o mal, que sente,
um pouco se lhe ausente da memória.

ALMENO, sonhando

Ó doce pensamento, ó doce glória!
São estes porventura os olhos belos
que tem de meus sentidos a vitória?

São estas, Ninfa, as tranças dos cabelos
que fazem de seu preço o ouro alheio,
e a mim de mim mesmo, só com vê-los?

É esta a alva coluna, o lindo esteio,
sustentador das obras mais que humanas,
que eu nos braços tenho, e não no creio?

Ah! falso pensamento, que me enganas!
Fazes-me pôr a boca onde não devo,
com palavras de doudo, e quase insanas!

Como alçar-te tão alto assi me atrevo?
Tais asas dou-tas eu, ou tu mas dás?
Levas-me tu a mim, ou eu te levo?

Não poderei eu ir onde tu vás?
Porém, pois ir não posso onde tu fores,
quando fores, não tornes donde estás.

Ó que triste sucesso foi de amores
o que a este pastor aconteceu,
segundo ouvi contar a outros pastores!

Que tanto por seu dano se perdeu
que o longo imaginar em seu tormento
em desatino Amor lho converteu.

Ó furioso vigor do pensamento,
que pode noutra cousa estar mudando
a forma, a vida, o siso, o entendimento!

Está-se um triste amante transformando
na vontade daquela que tanto ama,
de si sua própria essência transportando;

e nenhüa outra cousa mais desama
que a si, se vê que em si há algum sentido
que deste fogo insano não se inflama.

Almeno, que aqui está tão influído
no fantástico sonho, que o cuidado
lhe traz sempre ante os olhos esculpido,

está-se-lhe pintando, de enlevado,
que tem já da fantástica pastora
o peito diamantino mitigado.

Em este doce engano estava agora
falando como em sonhos; mas achando
ser vento o que sonhava, grita e chora.

Destarte andavam sonhos enganando
o pastor sonolento, que a Diana
andava entre as ovelhas celebrando;

destarte a nuvem falsa em forma humana
o vão pai dos Centauros enganava,
que Amor, quando contenta, sempre engana;

como a este que consigo só falava
cuidando que falava, de enlevado,
com quem lhe o pensamento figurava.

Não pode quem quer muito ser culpado
em nenhum erro, quando vem a ser
o amor em doudice transformado.

Não é amor, se não vier
com doudices, desonras, dissenções,
pazes, guerras, prazer e desprazer,

perigos, línguas más, murmurações,
ciúmes, arruídos, competências,
temores, mortes, nojos, perdições.

Estas são verdadeiras experiências
de quem põe o desejo onde não deve,
de quem engana alheias inocências.

Mas isto tem Amor, que não se escreve
senão onde é ilícito e custoso;
e onde é mor o perigo mais se atreve.

Passava alegre tempo, deleitoso,
o troiano pastor, enquanto andava
sem ter alto desejo e perigoso.

Seus furiosos touros coroava,
e nos álamos altos escrevia
teu nome, Enone, quando a ti só amava.

Creciam os altos álamos, crecia
o amor que te tinha; sem perigo
e sem temor contente te servia.

Mas despois que deixou entrar consigo
ilícito desejo e pensamento,
de sua quietação tão inimigo,

a toda a pátria pôs em detrimento,
com morte de parentes e de irmãos,
com cru incêndio e grande perdimento.

Nisto fenecem pensamentos vãos,
tristes serviços mal galardoados,
cuja glória se passa dantre as mãos.

Lágrimas e suspiros arrancados
d'alma, todos se pagam com enganos,
e oxalá fossem muitos enganados.

Andam com seu tormento tão ufanos,
gastando na doçura de um cuidado
após üa esperança, tantos anos!

E tal há tão perdido namorado,
tão contente co pouco, que daria
por um só mover d'olhos, todo o gado.

E em todo o povoado e companhia,
sendo ausentes de si, estão presentes
com quem lhe pinta sempre a fantasia.

Cum certo não sei quê andam contentes,
e logo um nada os torna ao contrário,
de todo o ser humano diferentes.

Ó tirânico Amor, ó caso vário,
que obrigas um querer que sempre seja
de si contino e áspero adversário!

E outr' hora nenhüa alegre esteja,
senão quando do seu despojo amado
sua imiga estar triunfando veja!

Quero falar com este, que enredado
nesta cegueira está sem nenhum tento.
Acorda já, pastor desacordado!

ALMENO

Oh! porque me tiraste um pensamento
que agora estava os olhos debuxando,
de quem aos meus foi doce mantimento?

AGRÁRIO

Nessa imaginação estás gastando
o tempo e a vida, Almeno? Oh, perda grande!
Não vês quão mal os dias vais passando?

ALMENO

Fermosos olhos, ande a gente e ande,
que nunca vos ireis desta alma minha,
por mais que o tempo corra e a morte o mande.

AGRÁRIO

Quem poderá cuidar que tão asinha
se perca o curso assi do siso humano,
que corre por direita e justa linha?

Que sejas tão perdido por teu dano,
Almeno irmão, não é, por certo, aviso,
mas mui grande doudice e grande engano.

ALMENO

Ó Agrário, que vendo o doce riso
e o rosto tão fermoso como esquivo,
o menos que perdi foi todo o siso.

E não entendo, dês que fui cativo,
outra cousa de mim, senão que mouro;
nem isto entendo bem, pois inda vivo.

À sombra deste umbroso e verde louro
passo a vida, ora em lágrimas cansadas,
ora em louvores dos cabelos de ouro.

Se perguntares porque são choradas,
ou porque tanta pena me consume,
revolvendo memórias magoadas:

dês que perdi da vista o claro lume,
e perdi a esperança e a causa dela,
não choro por razão, mas por costume.

Jamais soube co Fado ter cautela;
nem nunca houve em mi contentamento
que não fosse trocado em dura estrela.

Que bem livre vivia e bem isento,
sem nunca ser ao jugo sometido
de nenhum amoroso pensamento!

Lembra-me, Agrário amigo, que o sentido
tão fora de amor tinha que me ria
de quem por ele via andar perdido.

De várias cores sempre me vestia,
de boninas a fronte coroava;
nenhum pastor, cantando, me vencia.

A barba então nas faces me apontava;
na luta, no correr e em qualquer manha
sempre a palma antre todos alcançava.

Da minha idade tenra, em tudo estranha,
vendo, como acontece, afeiçoadas
muitas Ninfas do rio e da montanha,

com palavras mimosas e forjadas
da solta liberdade e livre peito,
as trazia contentes e enganadas.

Mas não querendo Amor que, deste jeito,
dos corações andasse triunfando
em quem ele criou tão pouco efeito,

pouco e pouco me foi de mim levando
dissimuladamente as mãos de quem
toda esta injúria agora esta vingando.

AGRÁRIO

Deste teu caso, Almeno, eu sei mui bem
o princípio e o fim, que Nemoroso
contado tudo isso, e mais, me tem.

Mas quero-te dizer: se o enganoso
Amor é costumado a desconcertos
que nunca, amando, fez pastor ditoso,

já que nele estes casos são tão certos,
porque os estranhas tanto que, de mágoa,
te choram as montanhas e os desertos?

Vejo-te estar gastando em viva frágoa
e, juntamente, em lágrimas vencendo
a grã Sicília em fogo, o Nilo em água.

Vejo que as tuas cabras não querendo
gostar as verdes ervas, se emagrecem,
as tetas aos cabritos encolhendo.

Os campos que co tempo reverdecem
os olhos alegrando, descontentes
em te vendo, parece que entristecem.

Todos os teus amigos e parentes,
que lá da serra vêm por consolar-te,
sentindo n' alma a pena que tu sentes,

se querem de teus males apartar-te.
Deixando a casa e gado vais fugindo,
como cervo ferido, a outra parte.

Não vês que Amor, as vidas consumindo,
vive só de vontades enlevadas
no falso parecer dum gesto lindo?

Nem as ervas das águas desejadas
se fartam; nem de flores as abelhas;
nem este amor de lágrimas cansadas.

Quantas vezes, perdido entre as ovelhas,
chorou Febo de Dafne as esquivanças,
regando as flores brancas e vermelhas?

Quantas vezes as ásperas mudanças
o namorado Galo tem chorado
de quem o tinha envolto em esperanças?

Estava o triste amante recostado,
chorando ao pé dum freixo o triste caso
que o falso Amor lhe tinha destinado;

por ele o sacro Pindo e o grão Parnaso
na fonte de Aganipe distilando,
o faziam de lágrimas um vaso.

Vinha o intenso Apolo ali culpando
a sobeja tristeza perigosa
com ásperas palavras reprovando:

«Galo, porque endoudeces, que a fermosa
Ninfa que tanto amaste, descobrindo
por falsa a fé que dava e mentirosa,

pelas alpinas neves vai seguindo
outro amor, outro bem, outro desejo,
como inimiga, enfim, de ti fugindo?»

Mas o mísero amante, que o sobejo
mal empregado amor lhe defendia
ter de tamanha fé vergonha ou pejo,

da falsífica Ninfa não sentia
senão que o frio do gelado Reno
os delicados pés lhe ofenderia.

Ora se tu vês claro, amigo Almeno,
que de Amor os desastres são de sorte
que para matar basta o mais pequeno,

porque não pões um freio a mal tão forte
que em estado te põe que, sendo vivo,
já não se entende em ti vida nem morte?

ALMENO

Agrário, se do gesto fugitivo
por caso da fortuna desastrado,
algüa hora deixar de ser cativo;

ou sendo para as Ursas degradado,
aonde Bóreas tem o Oceano
cos frios Hiperbóreos congelado;

ou onde o filho de Climene insano,
mudando a cor das gentes totalmente,
as terras apartou do trato humano;

ou, se por qualquer outro acidente,
deixar este cuidado tão ditoso,
por quem sou de ser triste tão contente:

este rio, que passa deleitoso,
tornando por detrás, irá negando
a natureza o curso pressuroso;

as feras pelo mar irão buscando
seu pasto e andar-se-ão pola espessura
das ervas os delfins apacentando.

Ora, se tu vês n'alma quão segura
tenho esta fé e amor, para que insistes
nesse conselho e prática tão dura?

Se de tua perfia não desistes,
vai repastar teu gado a outra parte;
que é dura a companhia para os tristes.

Üa só cousa quero encomendar-te,
para repouso algum de meu engano,
antes que o tempo, enfim, de mim te aparte:

que, se esta fera que anda em trajo humano
vires pela montanha andar vagando,
de meu despojo rica e de meu dano,

com os espritos vivos inflamando
o ar, o monte e a serra, que consigo
continuamente leva namorando;

se queres contentar-me como amigo,
passando, lhe dirás: «Gentil pastora,
não há no mundo vício sem castigo.

Tornada em duro mármore não fora
a fera Anaxarete, se amoroso
mostrara o rosto angélico algüa hora.

Foi bem justo o castigo rigoroso;
porém quem te ama, Ninfa, não queria
noda tão feia em gesto tão fermoso».

AGRÁRIO

Tudo farei, Almeno, e mais faria
por te ver algüa hora descansado,
se se acabam trabalhos algum dia.

Mas bem vês como Febo, já empinado,
me manda que da calma iníqua e crua
recolha em algum vale o manso gado.

Tu, nessa fantasia falsa tua,
para engano maior de teu perigo,
não queres companhia senão a sua.

Vou-me daqui e fique Deus contigo;
e ficarás melhor acompanhado.

ALMENO

Ele contigo vá, como comigo
me fica acompanhando meu cuidado.

 

 

 

 

 

08/12/2005