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Luís Vaz de Camões


 




Carta III


De Lisboa, a um seu amigo
 


 

 

Üa vossa me deram, a qual, pelo descostume, me pôs em
tamanho espanto como contentamento, em saber novas de
quem tanto as desejava; mas nem com esta vos forrareis do
esquecimento que de mim tivestes em me não escreverdes
antes de vos irdes.

Entre algüas novas que mandastes, vi que me gabáveis a vida rústica, como são: águas claras, árvores altas, sombrias,
fontes que correm, aves que cantam e outras saudades de Bernardim Ribeiro, «quae vitam faciunt beatam». Não vos nego a inveja que dela vos tenho, nem o pouco conhecimento que dela tendes, pois me dizeis que vos enfada já.

A troco destas novas, vos darei outras desta terra, tão
contrárias dessas, como esta vos dirá.

Primeiramente digo que cá vivem os homens na mão do
mundo, o que não fazem os de lá; porque, se lá tendes conta
com visitar fazenda, enxertar árvores, dispor cravos, ir ver se a
lagarta rói a vinha, rir das rústicas palavras dos pastores, ouvir
uns não fingidos amores, os de cá hão-de ter conta com enxertar suas vidas de maneira que floresçam suas obras, porque a lagarta das más línguas não roa a vinha das vidas alheias, e trazer sempre aparadas as palavras para falar com
quem se preza disso, cousa que eu tenho por grande trabalho,
- andar à discrição de amores fingidos, que os pastores lá não
têm.

E, para verdes, digo que há cá dama tão dama que, pelo ser de muitos, se a um mostra bom rosto, por que lhe quer bem,
aos outros não mostra ruim, porque lhe não quer mal. Em comparação desta, digo que criou Nosso Senhor o camaleão na arte [de tomar a cor] de qualquer lugar onde o põem. Ao redor de cada üa destas vereis estar üa dúzia de parvos, tão confiados que cada um jurara que é mais favorecido que todos. Uns vereis encostados sobre as espadas, os chapéus até os olhos e a parvoíce até os artelhos, cabeça entre os ombros, capa curta, pernas compridas; nunca lhes falta üa conteira dourada, que luz ao longe. Estes, quando vão pelo sol, miram-se à sombra; e, se se vêem bem dispostos, dizem que teve muita razão Narciso de se namorar de si mesmo. Estes, no andar, carregam as pernas para fora, torcem os sapatos para dentro, trazem sempre Boscão na manga, falam pouco, e tudo saudades, enfadonhos na conversação pelo que cumpre à gravidade de amor. Nestes fazem alcoviteiras seus ofícios, como são: palavras doces, esperanças longas, recados falsos. Ou vos
falam pela greta da porta: como vos não falou, estava mal disposta, sentiu-a sua mãe. Porque esta é a isca com que Celestina apanhava las cien monedas a Calisto, com sua sobrenfusa.

Outras damas há cá que, ainda que não sejam tão formosas como Helena, são altivas, como são üas beatas de
São Domingos e outras que conversam os Apóstolos. Estas se geraram de viúvas honestas e de casadas que têm os maridos no Cabo Verde; assim que, üas por casar e outras por lhes Deus trazer os maridos, de cuja vinda elas fogem, nunca lhes escapam as quartas-feiras em Santa Bárbara, as sextas em Nossa Sennhora do Monte, os sábados em Nossa Senhora da Graça, dias do Espírito Santo.

Üas dizem que jejuam a pão e água, outras que não comem cousa que padeça morte, e destas há algüas de estofo que fazem ir üa nau à Índia em três dias. Grandes capelos e hábitos de sarja, contas na mão e o olho ladrão; e haja eu perdão, porque debaixo lhe achareis mantéus debruados, gravins lavrados, jubões de holanda, alvos e justos.

Estas não se servem com músicas suaves nem vestidos
lustrosos, mas com grossas peitas, cruzados amarelos, que por «dinero baila el perro»; porque palavras sem mais «in vanum laboraverunt».

Os Cupidos destas não são dos bem vestidos, que namoram com palavras, mas uns de capuzes frisados e de
pelotes de petrina ao olivel do umbigo, sem pantufos. Estes
medram por sisudos e dissimulados, afora as contas. Também cozem neste forno frades de São Francisco, que andam com as calças desatacadas e os lombos recheados, e assim os de Santo Elói, que têm que dar, ainda que o Dr. Martim Vaz do Casal diz que são anexos a mulheres fidalgas, pela comunicação e conversação das confissões, e eu digo que jogam de tôdalas armas, porque «todos somos del merino».

Quanto é ao que toca a estoutras damas de aluguer, há
muito que escrever delas. Alguns dirão que, como quer que
nestas não há aí mais que pagar e andar, não pode haver
engano. Neste jogo digo que é ao contrário, porque vereis
estar um rosto que é a castidade de Lucrécia luxuriosa, üa
testa de alabastro, uns olhos de mordifuge, um nariz de
manteiga crua, üa boca de pucarinho de Estremoz; mas, «o
pueri, latet...» E se vos disserem que estas pelam os que as
têm, assentai que é fábula, porque eu vi muitos não ter nada
de seu, e agora os vejo com mulas e cavalos.

De algüas conseguintes vossas amigas vos darei novas.
Maria Caldeira matou-a o marido. Grande perda para o povo,
porque reparava muitas órfãs e adubava os pagodes de
Lisboa, afora outras obras de grandes respeitos. E, por que
esta senhora não vivesse muito tempo no outro mundo só, se
partiu para lá Beatriz da Mota, vossa amiga.

Deste dilúvio houveram algüas destas damas medo e
edificaram üa torre de Babilónia, onde se acolheram; e vos
certifico que são já as línguas tantas, que cedo cairá, porque
ali vereis mouros, judeus, castelhanos, leoneses, frades,
clérigos, casados, solteiros, moços e velhos.

A esta torre chamaram Acolheita, pela fortaleza dela. Mas o filósofo João de Melo lhe pôs nome o Rompeu, porque é de
três paus, a saber: de Francisca Gomes, a Tarifa, e Antónia
Brás, afora a bola, que é Maria da Rosa . Eu o crismei há poucos dias e lhe pus o nome de Mal-Cozinhado, porque sempre achareis nele que comer, quer bem, quer mal. E tudo o destas senhoras é brando, rostos novos e canos velhos. São boas para ninfas de água, porque não deitam mais que a cabeça de fora.

A razão por que se comem estas mais que as outras em
Lisboa, é que, afora seus rostinhos, servem de foliões, que
cantam e bailam tão bem que não hão inveja aos que El-Rei
mandou chamar.

E o pagode que se faz sem estas é da seita dos Epicuros, que punham a bem-aventurança em comer e beber; mas eu
digo que o faziam, porque estas não foram em esse tempo.
Nestas casas acharão continuamente muitos Cupidos valentes, dos quais suas alcunhas são Matadores, Matistas, Matarins, Matantes e outros nomes derivados destes, porque sempre os achareis com cascos e rodelas – «cum gladiis et fustibus» – como se Nosso Senhor houvesse de padecer outra
vez.

Confesso-vos que estes me fazem fazer o mesmo. Estes,
na prática, dir-vos-ão que

Sus arreos son las armas,
Su descanso es pelear.

Mas sei-vos dizer que, se

Na paz mostram coração,
Na guerra rnostram as costas,
Porque aqui torce a porca o rabo.
 

Como vos parece, Senhor, que se pode viver entre estes,
que não seja melhor essa vida que vos enfada, essa quietação
branda, com um dormir à sombra de üa árvore e ao tom de um
ribeiro, ouvindo a harmonia dos passarinhos, em braço com os
Sonetos de Petrarca, Arcádia de Sannazzaro, Éclogas de
Vergílio, onde vedes aquilo que vedes?

Se a vós, Senhor, essa vida vos não contenta, vinde trocar pela minha, que eu vos tornarei o que for bem. E não vos esqueçais de escrever mais, porque ainda me fica que responder. Cujas mãos beijo.

 

 

 

 

 

29/03/2006