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Luís Vaz de Camões




 

Sonetos Apócrifos
 





Na margem de um ribeiro, que fendia



Na margem de um ribeiro, que fendia
com líquido cristal o verde prado,
o triste pastor Liso debruçado
sobre o tronco de um freixo assi dizia:

«Ah, Natércia cruel, quem te desvia
esse cuidado teu do meu cuidado?
Se tanto hei-de penar desenganado,
enganado de ti viver queria.

Que foi daquela fé que tu me deste?
Daquele puro amor que me mostraste?
Quem tudo trocar pôde tão asinha?

Quando esses olhos teus noutro puseste,
como te não lembrou que me juraste
por toda a sua luz que eras só minha?»
 


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Não há louvor que arribe à menor parte


Não há louvor que arribe à menor parte
de quanto em vós se vê, bela Senhora.
Vós sois vosso louvor; quem vos adora
reduz somente a este o engenho e arte.

Quanto por muitas damas se reparte
de belo e de fermoso em vós agora
se ajunta em modo tal que pouco fora
dizer que sois o todo, elas a parte.

Culpa logo não é, se vou louvar-vos,
ver incapazes todos os louvores,
pois tanto quis o Céu aventajar-vos.

Seja a culpa de vossos resplandores;
e a que eles têm vos dou, só para dar-vos
o mor louvor de todos os maiores.


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Nas cidades, nos bosques, nas florestas


Nas cidades, nos bosques, nas florestas,
nos vales e nos montes, teus louvores
sempre te cantem músicos pastores,
nas manhãs frias, nas ardentes sestas.

E neste templo, donde manifestas
e repartes agora teus favores,
com salmos, hinos e com várias flores,
sejam célebres sempre as tuas festas.

Estes te ofereçam pés, essoutros mãos;
daqueles pendam sobre os teus altares
monstros do mar, de servidão prisões;

que eu cuidados, enganos e afeições,
muito maiores monstros e milhares
te deixo aqui de pensamentos vãos.


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No bastava que Amor puro y ardiente


No bastava que Amor puro y ardiente
por terminos la vida me quitase,
sino que desamor se apresurase
con un tan deshumano accidente.

Mi alma no resiste ni consiente
que el amoroso curso se atajase
por que nunca más se experimentase
que muera a desamor quien amor siente.

Mas vuestra voluntad tan poderosa
como vuestra hermosura me ordenaron
imposible crueldad jamás oyda.

Aquel fiero desdén y la amorosa
furia, de un golpe solo, me quitaron
con dos muertes contrarias una vida.


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No regaço da Mãe Amor estava


No regaço da Mãe Amor estava
dormindo tão fermoso que movia
o coração que mais isento via,
e a sua própria mãe de amor matava.

Ela, com os olhos nele, contemplava
a quanto estrago o mundo reduzia;
ele porém sonhando lhe dizia
que todo aquele mal ela causava.

Soliso que, graduado em seus amores,
de saber de ambos mais teve a ventura,
assi soltou a dúvida aos pastores:

«Se bem me ferem sempre, sem ter cura,
do Minino os ardentes passadores
mais me fere da Mãe a fermosura».


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Novos casos de Amor, novos enganos


Novos casos de Amor, novos enganos,
envoltos em lisonjas conhecidas,
do bem promessas falsas e escondidas,
onde do mal se cumprem grandes danos:

como não tomais já por desenganos
tantos ais, tantas lágrimas perdidas,
pois em a vida não basta nem mil vidas
a tantos dias tristes, tantos anos?

Um novo coração mister havia
com outros olhos menos agravados
para tornar a crer o que eu não cria.

Andais comigo, enganos, enganados;
e se o quiserdes ver, cuidai um dia
o que se diz dos bem acutilados.


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Nunca em amor danou o atrevimento


Nunca em amor danou o atrevimento;
favorece a Fortuna a ousadia;
porque sempre a encolhida cobardia
de pedra serve ao livre pensamento.

Quem se eleva ao sublime Firmamento,
a estrela nele encontra que lhe é guia;
que o bem que encerra em si a fantesia
são üas ilusões que leva o vento.

Abrir-se deve passos à ventura;
sem si próprio ninguém será ditoso;
os princípios somente a sorte os move.

Atrever-se é valor e não loucura;
perderá por covarde o venturoso
que vos vê, se os temores não remove.


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Ó arma unicamente só triunfante


Ó arma unicamente só triunfante.
propugnáculo só de nossas vidas,
com que foram ganhadas as perdidas
com que o Tártaro horrendo andava ovante!

Siga-se esta bandeira militante,
por quem são tais vitórias conseguidas,
por quantas almas, delas divertidas,
no Ponente erram cá, lá no Levante.

ó árvore sublime e marchetada
de branco e carmezi, de ouro embutida,
dos rubis mais preciosos esmaltada,

de troféus mais claros guarnecida!
A vida à Morte vimos em ti dada,
para que em ti se desse a Morte à vida.


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O capitão romano esclarecido


O capitão romano esclarecido
Sertório, nas armas sem segundo,
tal exemplo de si deixou ao mundo
qual nunca jamais foi visto nem ouvido.

Porque, por um soldado fementido
fazer um feito torpe e um caso imundo,
usou de um castigo tão profundo
que foi dos seus por ele mui temido.

Porque dizimou aquela legião?
Por não guardar a honesta disciplina
do cru, horrendo, duro e fero Marte.

Ó claro exemplo, ó fero, nobre capitão,
que não deixaste Roma sem doutrina
da militar e invencível arte!


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O cesse ya, Señor, tu dura mano


O cesse ya, Señor, tu dura mano!
No llegues tanto al cabo con mi vida.
Baste el estar por ti tan consumida
que ya no se halla en ella lugar sano.

Ay, estraña hermosura! Ay, deshumano
hado, a que nunca puedo hallar salida!
Si tu de tu piedad no eres movida,
roto el hilo vital verás temprano.

Un blando desamor, un amor blando
bien basta para un hombre tan perdido,
que de su mal ningun remedio espera.

Y si estimas en poco el ver qual ando,
aqui me tienes ante ti rendido.
Viva tu gusto, mi esperança muera.


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Ó claras águas deste blando rio


Ó claras águas deste blando rio,
que en vos al natural estays pintando
el frondifero adorno con que alzando
se va a los Cielos este bosque umbrio.

Assi las lluvias, assi el Austro frio
ja mas puedan veniros enturbiando,
que os vays del seco estio preservando
con socorreros deste llanto mio.

Y, quando en vos Marfira se mirare,
mi figura, qual veys desfalecida,
ante sus claros ojos puesta sea.

Y si por mi de vos los apartare,
de verme assi mostrandose ofendida,
en pena de no verme no se vea.


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O dia, hora ou o último momento


O dia, hora ou o último momento
üa vida, em que meus fados me puseram!
Já minhas esperanças se perderam,
já me não enganará meu pensamento.

Triste mudança, duro apartamento,
que perder em tão breve me fizeram
tudo o que meus serviços mereceram!
Oh, quantas cousas muda o mudamento!

Não espero já ver cousa passada,
porque vejo que tem longa partida,
e não consente esperanças da tornada.

Minha fábula breve é já comprida,
porque bem sei que tenho averiguada
do longo apartamento curta vida.
 


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Ó fortuna cruel, ó dura sorte


Ó fortuna cruel, ó dura sorte,
trabalho que me pôs em tal estado
que não quero já ser desenganado
nem tem cura meu mal senão a morte.

És cego, dize, Amor? Porque tão forte
te mostras contra quem tão maltratado
anda de te servir, e magoado
traz o coração ferido de teu corte?

Mas já que não quer mal senão tratar-me
a cruel fortuna minha, ó Amor,
deixa-me sequer poder queixar-me.

Porque, em tanto trabalho e tanta dor,
mal poderei sem isto consolar-me,
já que de ti não quero outro favor.


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Ó rigorosa ausência receada


Ó rigorosa ausência receada
de mim sempre, mas nunca conhecida,
saudade outro tempo tão temida,
quanto em meu dano agora experimentada:

já rigorosamente começada
tendes vossa aspereza em minha vida
tanto que temo já que, de oprimida,
sejais com ela mui cedo acabada.

Os dias mais alegres me entristecem;
as noites em cuidados as desconto
em que, sem vós, sem conto me parecem.

Em desejo e esperança as horas conto;
mas com a vida enfim eles falecem.
Não me posso valer de assistir pronto


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O tempo está vingado à custa minha


O tempo está vingado à custa minha
do tempo que no tempo não hei olhado;
triste quem do tempo em tal estado
que o tempo e todo o tempo não temia!

Bem me castigou o tempo e a porfia
de haver-me com só o tempo descuidado;
pois tão sem tempo o tempo me há deixado
que já não espero tempo de alegria.

Passaram horas, tempo e momentos
em que pudera do tempo aproveitar-me
para escusar com tempo meu tormento.

Mas pois quis do tempo confiar-me,
sendo o tempo de desvarios e movimento,
de mim, que não do tempo, posso queixar-me.


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Oh! quanto melhor é o supremo dia


Oh! quanto melhor é o supremo dia
da mansa morte que o do nascimento!
Oh! quanto melhor é um só momento
que livra de anos tantos de agonia!

De alcançar outro bem cesse a porfia;
cesse todo aplicado pensamento
de tudo quanto dá contentamento,
pois só contenta ao corpo a terra fria.

O que do seu fez Deus seu despenseiro
tem mais estreita conta que lhe dar:
então parece rico o ovelheiro.

Triste de quem no dia derradeiro
tem o suor alheio por pagar,
pois a alma há-de vender pelo dinheiro!


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Oh, quem dizer pudesse quanto sente


Oh, quem dizer pudesse quanto sente
ou se não magoassse do que entende!
Entenda a dor do mal quem o entende;
conheça o bem quem dele se contente.

Vida de pouco gosto e descontente
pretende quem saber muito pretende,
que com obrigações caras se vende
o muito entendimento comummente.

Não há merecimento que mereça,
nem culpa que ninguém faça culpado:
a ventura é nas cousas geralmente

descostume tão cru desordenado
que, sem que o bem falte e o mal creça,
quem sente menos é quem menos sente.


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Olhos de cristal puro que vertendo


Olhos de cristal puro que vertendo
estão lágrimas tristes, saudosas,
regando as brancas faces tão fermosas
que a luz do sol estão escurecendo.

Espelhos claros, onde se estão vendo
de contino boninas, lírios, rosas:
não são lágrimas, não, mas preciosas
pérolas, que de vós estão correndo.

Se em vós consiste meu contentamento,
e é glória de meu bem minha alegria
tomar em vós, meus olhos, mantimento,

como consente Amor que noite e dia,
movidos de um ausente sentimento,
façais sempre à tristeza companhia?


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Olhos, adonde o Céu com luz mais pura


Olhos, adonde o Céu com luz mais pura
quis dar de seu poder claros sinais,
se quiserdes ver bem quanto possais,
vede-me a mi, que sou vossa feitura.

Em mi, viva vereis vossa figura
mais própria que em puríssimos cristais:
porque nesta alma é certo que vejais
melhor que num cristal tal fermosura.

De meu não quero mais que o meu desejo,
se acaso por querer-vos mais mereço,
por que o vosso poder em mi se assele.

Do mundo outra memória em mi não vejo:
com lembrar-me de vós, dele me esqueço
com triunfardes de mi, triunfarei dele.


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Ondados fios de ouro, onde enlaçado


Ondados fios de ouro, onde enlaçado
continuamente tenho o pensamento;
que, quanto mais vos solta o fresco vento,
mais preso fico então de meu cuidado.

Amor, de uns belos olhos sempre armado,
me combate co'as forças do tormento,
provando da minha alma o sofrimento
que à justa lei da paz trago obrigado.

Assi que em vosso gesto mais que humano
amo a paz juntamente e o perigo,
e em amar um e outro não me engano.

Muitas vezes dizendo estou comigo
que pois é tal a causa de meu dano,
é justa a guerra, é justa a paz que sigo.


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Ondas que por el mundo caminando


Ondas que por el mundo caminando
contino vais llevadas por el viento,
llevad embuelto en vos mi pensamiento,
do está la que do está lo está causando.

Dizilde que os estoy acrescentando,
dizilde que de vida no hay momento,
dizilde que no muere mi tormento,
dizilde que no vivo ya esperando.

Dizilde quan perdido me hallastes,
dizilde quan garrado me perdistes
dizilde quan sin vida me matastes.

Dizilde quan llagado me feristes,
dizilde quan sin mi que me dexastes,
dizilde quan con ella que me vistes!


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Onde acharei lugar tão apartado


Onde acharei lugar tão apartado
e tão isento em tudo da ventura,
que, não digo eu de humana criatura,
mas nem de feras seja frequentado?

Algum bosque medonho e carregado,
ou selva solitária, triste e escura,
sem fonte clara ou plácida verdura,
enfim, lugar conforme a meu cuidado?

Porque ali, nas entranhas dos penedos,
em vida morto, sepultado em vida,
me queixe copiosa e livremente;

que pois a minha pena é sem medida,
ali triste serei em dias ledos
e dias tristes me farão contente.


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Onde porei meus olhos que não veja


Onde porei meus olhos que não veja
a causa donde nace meu tormento?
Ou a que parte irei co pensamento
que, para descansar, parte me seja?

Engana-se quem busca ou quem deseja
em vão a mor firmeza no contento;
que todo seu prazer é névoa ao vento,
onde sempre o bem falta e o mal sobeja.

Anda minha alma cega, anda enganada.
A luz não busco; nem me desengano,
nem curo de razão. Busco o desejo.

Após um não sei quê, após um nada,
onde é certo o perigo e certo o dano;
que quanto mais me chego, menos vejo.


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Os meus alegres, venturosos dias


Os meus alegres, venturosos dias
passaram como raio, brevemente;
movem-se os tristes mais pesadamente
após das fugitivas alegrias.

Ah, falsas pretensões, vãs fantasias,
que me podeis já dar que me contente?
Já de meu triste peito a chama ardente
o Tempo reduziu a cinzas frias.

Nelas revolvo agora erros passados,
que outro fruto não deu a mocidade,
a quem vergonha e dor minha alma deve.

Revolvo mais de toda a mais idade
desejos vãos, vãos choros, vãos cuidados,
para que leve tudo o Tempo leve.


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Os olhos onde o casto Amor ardia


Os olhos onde o casto Amor ardia
ledo de se ver neles abrasado;
o rosto onde, com lustre desusado,
purpúrea rosa sobre neve ardia;

o cabelo, que inveja ao sol fazia,
porque fazia o seu menos dourado;
a branca mão, o corpo bem talhado,
tudo aqui se reduz a terra fria.

Perfeita fermosura em tenra idade,
qual flor que, antecipada, foi colhida,
murchada está da mão da Morte dura.

Como não morre Amor de piedade,
não dela, que se foi à clara vida,
mas de si, que ficou em noite escura?


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29/03/2006