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Luís Vaz de Camões




Despois que a clara Aurora a noite escura





Despois que a clara Aurora a noite escura
com novo resplandor foi desfazendo,
e Febo por os montes e espessura
os seus dourados raios estendendo;
se buscava nos vales a verdura
o manso gado a luz serena vendo,
quando a férvida sesta já abrasava,
todo o animal da calma repousava.

Já por fugir do sol o fogo ardente,
as sombras os rebanhos vão buscando;
os tenros cabritinhos juntamente
após as mansas mães iam saltando;
tangendo as suas frautas docemente,
os pastores estavam enganando
a grã chama solar que então ardia;
só Liso o ardor dela não sentia.

Tristes lembranças tanto o traspassavam,
que a dura sesta nelas só passava.
O tempo, que em prazer outros gastavam,
em celebrar seu mal ele o gastava:
as festas, que com jogos celebravam,
ele com suspirar as celebrava.
Nada buscava mais, mais não queria
que o repouso do fogo em que ele ardia.

Os repetidos jogos dos pastores,
as lutas entre a rama repetidas,
em nada lhe divertem suas dores;
mas antes n'alegria as vê crescidas.
Como o repouso roubam os amores
às almas que para eles são nascidas,
ele, todo o repouso que esperava,
consistia na Ninfa que buscava.

Com o choro, que já corria em fio
por o pálido rosto, aumenta as fontes,
que levam água estranha ao claro rio
que os vales vai regando entre altos montes.
Com suspiros a quem o eco pio
responde de apartados horizontes,
os ventos parecia que enfreava,
os montes parecia que abalava.

Que às queixas de seus doces pensamentos
se movessem os montes mais constantes,
se parassem os mais veloces ventos,
que estavam, que corriam circunstantes,
bem se devia à dor de seus tormentos,
e inda que fosse em peitos de diamantes;
que um peito de diamante abrandaria
o triste som das mágoas que dizia.

Porém ele as dizia a outro peito,
mais que diamante inexpugnável, duro;
a fé lhe encarecia, a que sujeito
o tinha em pena eterna o amor puro;
mostrava-lhe este n'alma mais perfeito
quanto mais ofendido, mais seguro:
a Ninfa mais segura tudo ouvia,
mas nada o duro peito comovia.

As lástimas aqui tanto cresceram
que se em montes de Hircânia se escuitaram,
tigres nos seios seus mover puderam,
e pedras nos seus cumes abrandaram.
Mas, se no peito as tristes vozes deram
daquela fera humana que buscaram,
ele de as admitir se retirava;
que na vontade de outro posto estava.

Desenganado já da triste sorte,
de que mal fino amor se desengana,
com a desesperança só de sua morte
aquelas penas últimas engana;
deixando na espessura o claro Norte,
para ele de outra luz mais soberana,
a um vale aberto então sair procura,
cansado já de andar por a espessura.

Deixando as suas cabras que pascessem
naquele verde prado as frescas flores,
por que os Sátiros leves o soubessem
e os silvestres Faunos amadores,
também por que os pastores o entendessem,
todo o processo e fim de seus amores
escreveu – sem em nada haver mudança -,
no tronco de uma faia por lembrança.

Por lembrança no tronco de uma faia,
que vai saindo ao céu de puro altiva,
na verde, prateada e áurea praia,
por onde o claro Tejo se deriva;
por que também ao Céu sua dor saia
sobre aquela corrente fugitiva,
escrita no papel da natureza,
escreve estas palavras de tristeza:

«Natércia, Ninfa bela, por quem vivo
em tal tormento, tempo algum me olhou;
mas dês que em mi sentiu que era cativo
daquele brando olhar que me enganou,
o amor tornava em desamor esquivo;
e dum tormento tal a outro passou.
Em cousas tão sujeitas a mudança
nunca ponha ninguém sua esperança.

Para dar proveitosos desenganos
dos enganos que são de Amor efeitos,
e dos dous sexos publicar, humanos,
a origem das mudanças de seus peitos;
estas letras aqui por longos anos
digam a corações a amar sujeitos
em peito varonil, que de ventura,
em peito feminil, que da natura...»

Faltou-lhe aqui o alento e, já cansado
caiu ao pé da faia em que escrevia,
não podendo seguir o começado,
porque a alma já do corpo lhe saía;
três vezes, com acento mal formado
para exemplo futuro repetia:
«Amantes, entendei que a mor beleza
somente em ser mudável tem firmeza.»



 


 

 

 

 

 

20/03/2006