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Luís Vaz de Camões



Canto VI (Parte I)



1
Não sabia em que modo festejasse
O Rei Pagão os fortes navegantes,
Pera que as amizades alcançasse
Do Rei Cristão, das gentes tão possantes;
Pesa-lhe que tão longe o apousentasse
Das Europeias terras abundantes
A ventura, que não no fez vizinho
Donde Hércules ao mar abriu o caminho.

2
Com jogos, danças e outras alegrias,
A segundo a polícia Melindana,
Com usadas e ledas pescarias,
Com que a Lageia António alegra e engana,
Este famoso Rei, todos os dias,
Festeja a companhia Lusitana,
Com banquetes, manjares desusados,
Com frutas, aves, carnes e pescados.

3
Mas, vendo o Capitão que se detinha
Já mais do que devia, e o fresco vento
O convida que parta e tome asinha
Os pilotos da terra e mantimento,
Não se quer mais deter, que ainda tinha
Muito pera cortar do salso argento.
Já do Pagão benigno se despede,
Que a todos amizade longa pede.

4
Pede-lhe mais que aquele porto seja
Sempre com suas frotas visitado,
Que nenhum outro bem maior deseja
Que dar a tais barões seu reino e estado;
E que, enquanto seu corpo o esprito reja,
Estará de contino aparelhado
A pôr a vida e reino totalmente
Por tão bom Rei, por tão sublime gente.

5
Outras palavras tais lhe respondia
O Capitão, e logo, as velas dando,
Pera as terras da Aurora se partia,
Que tanto tempo há já que vai buscando.
No piloto que leva não havia
Falsidade, mas antes vai mostrando
A navegação certa; e assi caminha
Já mais seguro do que dantes vinha.

6
As ondas navegavam do Oriente,
Já nos mares da Índia, e enxergavam
Os tálamos do Sol, que nace ardente;
Já quase seus desejos se acabavam.
Mas o mau de Tioneu, que na alma sente
As venturas que então se aparelhavam
À gente Lusitana, delas dina,
Arde, morre, blasfema e desatina.

7
Via estar todo o Céu determinado
De fazer de Lisboa nova Roma;
Não no pode estorvar, que destinado
Está doutro Poder que tudo doma.
Do Olimpo dece, enfim, desesperado;
Novo remédio em terra busca e toma:
Entra no húmido reino e vai-se à corte
Daquele a quem o Mar caiu em sorte.

8
No mais interno fundo das profundas
Cavernas altas, onde o mar se esconde,
Lá donde as ondas saem furibundas,
Quando às iras do vento o mar responde,
Neptuno mora e moram as jucundas
Nereidas e outros Deuses do mar, onde
As águas campo deixam às cidades
Que habitam estas húmidas Deidades.

9
Descobre o fundo nunca descoberto
As areias ali de prata fina;
Torres altas se vêem, no campo aberto,
De transparente massa cristalina;
Quanto se chegam mais os olhos perto,
Tanto menos a vista determina
Se é cristal o que vê, se diamante,
Que assi se mostra claro e radiante.

10
As portas de ouro fino, e marchetadas,
Do rico aljôfar que nas conchas nace,
De escultura fermosa estão lavradas,
Na qual do irado Baco a vista pace.
E vê primeiro, em cores variadas,
Do velho Caos a tão confusa face;
Vêem-se os quatro Elementos trasladados,
Em diversos ofícios ocupados.

11
Ali, sublime, o Fogo estava em cima,
Que em nenhüa matéria se sustinha;
Daqui as cousas vivas sempre anima,
Despois que Prometeu furtado o tinha.
Logo após ele, leve se sublima
O invisíbil Ar, que mais asinha
Tomou lugar, e, nem por quente ou frio,
Algum deixa no mundo estar vazio.

12
Estava a Terra em montes, revestida
De verdes ervas e árvores floridas
Dando pasto diverso e dando vida
Às alimárias nela produzidas.
A clara forma ali estava esculpida
Das Águas, entre a terra desparzidas,
De pescados criando vários modos,
Com seu humor mantendo os corpos todos.

13
Noutra parte, esculpida estava a guerra
Que tiveram os Deuses cos Gigantes;
Está Tifeu debaixo da alta serra
De Etna, que as flamas lança crepitantes;
Esculpido se vê, ferindo a Terra,
Neptuno, quando as gentes, ignorantes,
Dele o cavalo houveram, e a primeira
De Minerva pacífica ouliveira.

14
Pouca tardança faz Lieu irado
Na vista destas cousas, mas entrando
Nos paços de Neptuno, que, avisado
Da vinda sua, o estava já aguardando,
Às portas o recebe, acompanhado
Das Ninfas, que se estão maravilhando
De ver que, cometendo tal caminho,
Entre no reino da água o Rei do vinho.

15
«Ó Neptuno (lhe disse), não te espantes
De Baco nos teus reinos receberes,
Porque também cos grandes e possantes
Mostra a Fortuna injusta seus poderes.
Manda chamar os Deuses do mar, antes
Que fale mais, se ouvir-me o mais quiseres.
Verão da desventura grandes modos:
Ouçam todos o mal que toca a todos!»

16
Julgando já Neptuno que seria
Estranho caso aquele, logo manda
Tritão, que chame os Deuses da água fria,
Que o Mar habitam dhüa e doutra banda.
Tritão, que de ser filho se gloria
Do Rei e de Salácia veneranda,
Era mancebo grande, negro e feio,
Trombeta de seu pai e seu correio.

17
Os cabelos da barba e os que decem
Da cabeça nos ombros, todos eram
Uns limos prenhes de água, e bem parecem
Que nunca brando pêntem conheceram.
Nas pontas, pendurados, não falecem
Os negros mexilhões, que ali se geram.
Na cabeça, por gorra, tinha posta
Hüa mui grande casca de lagosta.

18
O corpo nu e os membros genitais,
Por não ter ao nadar impedimento,
Mas porém de pequenos animais
Do mar todos cobertos, cento e cento;
Camarões e cangrejos e outros mais,
Que recebem de Febe crecimento.
Ostras e camarões, do musco sujos,
Às costas co a casca, os caramujos.

19
Na mão a grande concha retorcida
Que trazia, com força já tocava;
A voz grande, canora, foi ouvida
Por todo o mar, que longe retumbava.
Já toda a companhia, apercebida,
Dos Deuses pera os paços caminhava
Do Deus que fez os muros de Dardânia,
Destruídos despois da Grega insânia.

20
Vinha o padre Oceano, acompanhado
Dos filhos e das filhas que gerara;
Vem Nereu, que com Dóris foi casado,
Que todo o mar de Ninfas povoara.
O profeta Proteu, deixando o gado
Marítimo pacer pela água amara,
Ali veio também, mas já sabia
O que o padre Lieu no mar queria.

21
Vinha por outra parte a linda esposa
De Neptuno, de Celo e Vesta filha,
Grave e leda no gesto, e tão fermosa,
Que se amansava o mar, de maravilha.
Vestida hüa camisa preciosa
Trazia, de delgada beatilha,
Que o corpo cristalino deixa ver-se,
Que tanto bem não é pera esconder-se.

22
Anfitrite, fermosa como as flores,
Neste caso não quis que falecesse;
O delfim traz consigo que aos amores
Do Rei lhe aconselhou que obedecesse.
Cos olhos, que de tudo são senhores,
Qualquer parecerá que o Sol vencesse.
Ambas vêm pela mão, igual partido,
Pois ambas são esposas dum marido.

23
Aquela que, das fúrias de Atamante
Fugindo, veio a ter divino estado,
Consigo traz o filho, belo infante,
No número dos Deuses relatado.
Pela praia brincando vem, diante,
Com as lindas conchinhas, que o salgado
Mar sempre cria; e às vezes pela areia
No colo o toma a bela Panopeia.

24
E o Deus que foi num tempo corpo humano
E, por virtude da erva poderosa,
Foi convertido em pexe, e deste dano
Lhe resultou deidade gloriosa,
Inda vinha chorando o feio engano
Que Circe tinha usado co a fermosa
Cila que ele ama, desta sendo amado,
Que a mais obriga amor mal empregado.

25
Já finalmente todos assentados
Na grande sala, nobre e divinal,
As Deusas em riquíssimos estrados,
Os Deuses em cadeiras de cristal,
Foram todos do Padre agasalhados,
Que co Tebano tinha assento igual.
De fumos enche a casa a rica massa
Que no mar nace e Arábia em cheiro passa.

26
Estando sossegado já o tumulto
Dos Deuses e de seus recebimentos,
Começa a descobrir do peito oculto
A causa o Tioneu de seus tormentos.
Um pouco carregando-se no vulto,
Dando mostra de grandes sentimentos,
Só por dar aos de Luso triste morte
Co ferro alheio, fala desta sorte:

27
«Príncipe, que de juro senhoreias,
Dum Pólo ao outro Pólo, o mar irado,
Tu, que as gentes da Terra toda enfreias,
Que não passem o termo limitado;
E tu, padre Oceano, que rodeias
O Mundo universal e o tens cercado,
E com justo decreto assi permites
Que dentro vivam só de seus limites;

28
«E vós, Deuses do Mar, que não sofreis
Injúria algüa em vosso reino grande,
Que com castigo igual vos não vingueis
De quem quer que por ele corra e ande:
Que descuido foi este em que viveis?
Quem pode ser que tanto vos abrande
Os peitos, com razão endurecidos
Contra os humanos, fracos e atrevidos?

29
«Vistes que, com grandíssima ousadia,
Foram já cometer o Céu supremo;
Vistes aquela insana fantasia
De tentarem o mar com vela e remo;
Vistes, e ainda vemos cada dia,
Soberbas e insolências tais, que temo
Que do Mar e do Céu, em poucos anos,
Venham Deuses a ser, e nós, humanos.

30
«Vedes agora a fraca geração
Que dum vassalo meu o nome toma,
Com soberbo e altivo coração
A vós e a mi e o mundo todo doma.
Vedes, o vosso mar cortando vão,
Mais do que fez a gente alta de Roma;
Vedes, o vosso reino devassando,
Os vossos estatutos vão quebrando.

31
«Eu vi que contra os Mínias, que primeiro
No vosso reino este caminho abriram,
Bóreas, injuriado, e o companheiro
Áquilo e os outros todos resistiram.
Pois se do ajuntamento aventureiro
Os ventos esta injúria assi sentiram,
Vós, a quem mais compete esta vingança,
Que esperais? Porque a pondes em tardança?

32
«E não consinto, Deuses, que cuideis
Que por amor de vós do Céu deci,
Nem da mágoa da injúria que sofreis,
Mas da que se me faz também a mi;
Que aquelas grandes honras que sabeis
Que no mundo ganhei, quando venci
As terras Indianas do Oriente,
Todas vejo abatidas desta gente.

33
«Que o grão Senhor e Fados, que destinam,
Como lhe bem parece, o baxo mundo,
Famas mores que nunca determinam
De dar a estes barões no mar profundo.
Aqui vereis, ó Deuses, como insinam
O mal também a Deuses; que, a segundo
Se vê, ninguém já tem menos valia
Que quem com mais razão valer devia.

34
«E por isso do Olimpo já fugi,
Buscando algum remédio a meus pesares,
Por ver o preço que no Céu perdi,
Se por dita acharei nos vossos mares.»
Mais quis dizer, e não passou daqui,
Porque as lágrimas já, correndo a pares,
Lhe saltaram dos olhos, com que logo
Se acendem as Deidades da água em fogo.

35
A ira com que súbito alterado
O coração dos Deuses foi num ponto,
Não sofreu mais conselho bem cuidado
Nem dilação nem outro algum desconto:
Ao grande Eolo mandam já recado,
Da parte de Neptuno, que sem conto
Solte as fúrias dos ventos repugnantes,
Que não haja no mar mais navegantes!

36
Bem quisera primeiro ali Proteu
Dizer, neste negócio, o que sentia;
E, segundo o que a todos pareceu,
Era algüa profunda profecia.
Porém tanto o tumulto se moveu,
Súbito, na divina companhia,
Que Tétis indinada, lhe bradou:
«Neptuno sabe bem o que mandou!»

37
Já lá o soberbo Hipótades soltava
Do cárcere fechado os furiosos
Ventos, que com palavras animava
Contra os barões audaces e animosos.
Súbito, o céu sereno se obumbrava,
Que os ventos, mais que nunca impetuosos,
Começam novas forças a ir tomando,
Torres, montes e casas derribando.

38
Enquanto este conselho se fazia
No fundo aquoso, a leda, lassa frota
Com vento sossegado prosseguia,
Pelo tranquilo mar, a longa rota.
Era no tempo quando a luz do dia
Do Eoo Hemispério está remota;
Os do quarto da prima se deitavam,
Pera o segundo os outros despertavam.

39
Vencidos vêm do sono e mal despertos;
Bocejando, a miúdo se encostavam
Pelas antenas, todos mal cobertos
Contra os agudos ares que assopravam;
Os olhos contra seu querer abertos;
Mas esfregando os membros estiravam.
Remédios contra o sono buscar querem,
Histórias contam, casos mil referem.

40
«Com que milhor podemos (um dizia)
Este tempo passar, que é tão pesado,
Senão com algum conto de alegria,
Com que nos deixe o sono carregado?»
Responde Lionardo, que trazia
Pensamentos de firme namorado:
«Que contos poderemos ter milhores,
Pera passar o tempo, que de amores?»

41
«Não é (disse Veloso) cousa justa
Tratar branduras em tanta aspereza,
Que o trabalho do mar, que tanto custa,
Não sofre amores nem delicadeza;
Antes de guerra férvida e robusta
A nossa história seja, pois dureza
Nossa vida há-de ser, segundo entendo,
Que o trabalho por vir mo está dizendo.»

42
Consentem nisto todos, e encomendam
A Veloso que conte isto que aprova.
«Contarei (disse) sem que me reprendam
De contar cousa fabulosa ou nova.
E, por que os que me ouvirem daqui aprendam
A fazer feitos grandes de alta prova,
Dos nacidos direi na nossa terra,
E estes sejam os Doze de Inglaterra.

43
«No tempo que do Reino a rédea leve,
João, filho de Pedro, moderava,
Despois que sossegado e livre o teve
Do vizinho poder, que o molestava,
Lá na grande Inglaterra, que da neve
Boreal sempre abunda, semeava
A fera Erínis dura e má cizânia,
Que lustre fosse a nossa Lusitânia.

44
«Entre as damas gentis da corte Inglesa
E nobres cortesãos, acaso um dia
Se levantou discórdia, em ira acesa
(Ou foi opinião, ou foi porfia).
Os cortesãos, a quem tão pouco pesa
Soltar palavras graves de ousadia,
Dizem que provarão que honras e famas
Em tais damas não há pera ser damas;

45
«E que, se houver alguém, com lança e espada,
Que queira sustentar a parte sua,
Que eles, em campo raso ou estacada,
Lhe darão feia infâmia ou morte crua.
A feminil fraqueza, pouco usada,
Ou nunca, a opróbrios tais, vendo-se nua
De forças naturais convenientes,
Socorro pede a amigos e parentes.

46
«Mas, como fossem grandes e possantes
No reino os inimigos, não se atrevem
Nem parentes, nem férvidos amantes,
A sustentar as damas, como devem.
Com lágrimas fermosas e bastantes
A fazer que em socorro os Deuses levem
De todo o Céu, por rostos de alabastro,
Se vão todas ao Duque de Alencastro.

47
«Era este Ingrês potente e militara
Cos Portugueses já contra Castela,
Onde as forças magnânimas provara
Dos companheiros, e benigna estrela.
Não menos nesta terra exprimentara
Namorados afeitos, quando nela
A filha viu, que tanto o peito doma
Do forte Rei, que por mulher a toma.

48
«Este, que socorrer-lhe não queria
Por não causar discórdias intestinas,
Lhe diz: "Quando o direito pretendia
Do Reino lá das terras Iberinas,
Nos Lusitanos vi tanta ousadia,
Tanto primor e partes tão divinas,
Que eles sós poderiam, se não erro,
Sustentar vossa parte a fogo e ferro.

49
"E se, agravadas damas, sois servidas,
Por vós lhe mandarei embaixadores,
Que, por cartas discretas e polidas,
De vosso agravo os façam sabedores.
Também, por vossa parte, encarecidas
Com palavras de afagos e de amores
Lhe sejam vossas lágrimas, que eu creio
Que ali tereis socorro e forte esteio."

50
«Destarte as aconselha o Duque experto
E logo lhe nomeia doze fortes;
E, por que cada dama um tenha certo,
Lhe manda que sobre eles lancem sortes,
Que elas só doze são; e descoberto
Qual a qual tem caído das consortes,
Cada hüa escreve ao seu, por vários modos,
E todas a seu Rei e o Duque a todos.


 

 

 

 

 

28/11/2005