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Luís Vaz de Camões




Belisa, único bem desta alma triste






Belisa, único bem desta alma triste,
descanso singular de minha vida,
trono donde o poder de Amor consiste;

formosa fera, a quem está rendida
de Amor a que é mais livre liberdade,
ganhada mais, se mais por ti perdida:

Quão contrário parece na beldade,
que os corações cativa com brandura,
alguma nódoa haver de crueldade;

quão contrário parece em formosura,
que deixa muito atrás quanto é humano,
esquiva condição ou alma dura;

quão mal parece em quem só cum engano
pode dar vida ao coração sujeito,
dar-lhe, em lugar de vida, um mortal dano;

quão mal parece que um amor perfeita
não seja de outro igual remunerado,
inda que seja, acaso, contrafeito;

quão mal parece estar desesperado
quem tanto por ti sofre e tem sofrido,
devendo estar de penas aliviado!

Porém pior parece quem rendido
não for a um parecer que tudo rende,
por mais que em seu rigor viva ofendido.

E inda pior parece quem defende
o ser essa beleza sempre amada,
por mais que em vão se canse o que a pretende.

Se quem te mostra amor te desagrada,
só podes pretender o não ser vista;
mas não, despois de vista, o ser deixada.

Quão mal sabe o valor de tua vista
quem cuida que o que dela acaso alcança
pode achar coração que lhe resista!

Quão bem pareceria uma esperança
já concedida a meu amor ardente,
não sempre uma mortal desconfiança!

Se um padecer por ti constantemente
pudesse ser reparo a quem mais te ama,
inda esperar pudera o ser contente.

Mas eu terno que aquela imensa chama
com que a teu belo império me levaste,
te enfrie tanto a ti, quanto me inflama.

Se a olímpica beleza assi imitaste,
que brandamente move um amor puro,
porque tão dura condição tomaste?

Qual elevado, qual soberbo muro
este mal, que me ocupa o pensamento,
contado, não tornara menos duro?

Tu, que és a causa só de meu tormento,
tu, que somente podes gloriar-me,
queres que as minhas queixas leve o vento?

Tu, que me pagarias com matar-me,
inda a morte me negas vezes tantas?
Ai, que me deras vida em morte dar-me!

Usa piedade, tu, que o mundo espantas
cos belos olhos, com que o douras tanto,
se acaso a vê-lo brandos os levantas.

Estende-se na terra o negro manto,
e à noute dá alegria a luz alheia;
mas nos meus olhos tristes dura o pranto.

Torna a manhã despois alegre e cheia
da luz que o choro enxuga à bela Aurora;
mas do meu choro nunca enxuga a veia.

Lágrimas já não são que esta alma chora,
mas amor é vital que dentro arde,
e por a luz dos olhos salta fora.

Como inda a morte quer que mais aguarde?
Não tarda já mas corra a mal tão fero.
Mas já por mais que corra virá tarde.

Nem no supremo trance de ti espero
que inda, com ver o estado em que me hás posto,
queiras, crua, entender quanto te quero.

Ai! se volveres esse belo rosto
ao lugar triste em que morrer me vires,
não por desgosto teu, mas por teu gosto,

não quero de ti, não, que ali suspires,
nem que de dar-me a morte te arrependas,
mas que os olhos de ver-me então não tires.

Assi nunca pastor a quem te rendas
te faça conhecer o que me fazes,
para que com teu mal meu mal entendas!

Como já agora não te satisfazes
das penas deste amor que, por querer-te,
de teu merecimento são capazes?

Pois quem com outro mérito render-te
presume – ó raro monstro de beleza! -
muito mais longe está de merecer-te.

Este si, que merece a grã crueza
com que tu de acabar-me a vida tratas,
pois diante de ti, de si se preza.

Se cuidas que com isto desbaratas
o meu constante amor, por que não viva,
ele mais vive quando mais me matas.

Se o dar-me morte tens por glória altiva,
eu me inclino a que mates; tu te inclina
a matar mais de branda que de esquiva.

Se esta alma tua julgas por indina
daquele grande bem que em ti se esconde,
do descoberto mal a faze dina.

Onde – ai! – voz acharei que baste – ai! – onde,
a poder reduzir-te a ser piedosa?
Ou me acaba de todo, ou me responde.

Mas por mais que te mostres rigorosa,
deixar meu pensamento me é impossível,
igualmente que a ti não ser formosa.

E por mais que esta dor seja terrível,
somente o contemplar a causa dela,
inda que a faz maior, a faz sofrível.

Porém chegando a não poder sofrê-la,
perdendo a vida; quando a morte chame,
não perderei o gosto de perdê-la.

É justo que eu por ti mil mortes ame:
mas vê tu se te ilustra, quando ofensa
minha mortal o teu valor se chame.

Bem vês que uma beldade tão imensa
de vencer-me tem glória bem pequena,
pois só render-me tomo por defensa.

Mas já que amor tão puro me condena,
contente fico assaz desta vitória;
que não me dão meus males tanta pena
quanto o serem por ti me dá de glória.



 


 

 

 

 

 

20/03/2006