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Luís Vaz de Camões




Vergel de Amor






Ao pé de uma alta faia vi sentado
num vale deleitoso e bem florido
a Almeno, pastor triste e namorado.

Outro no mundo pode haver nacido
tão queixoso de Amor; porém, não tanto
como este amante por amar perdido.

Já Vénus ia recolhendo o manto
escuro com que a terra se mostrava
para ajudar de Almeno o triste pranto.

Apolo sobre os montes derramava
seus dourados cabelos, que faziam
ao triste inda mais triste do que estava.

As flores por o prado se estendiam
e das que finas mais eram as cores
as brancas roxas Ninfas mais colhiam.

Já guiavam seus gados os pastores
que, deixando-os no campo deleitoso,
com elas praticavam só de amores.

Mas era esta alegria um perigoso
estado para Almeno entristecido,
e por isso a deixava pressuroso.

Buscando outro lugar, contra Cupido
claramente exclamava, e o arguia
de contrário, de astuto e fementido.

De quando em quando, a frauta que tangia
números dava ao ar tão docemente
que as aves provocava a melodia.

Cego assi desta dor, deste acidente,
com os olhos em lágrimas banhados
postos no céu, dizia tristemente:

«Se, Amor, eu te ofendi com meus cuidados,
porque mos deste tu para ofender-te,
quando livre vivia nestes prados?

Não vês quanto me negas merecer-te
o bem que me mostravas, se deixasse
ferir meu coração para sofrer-te?

Qual bem me hás dado, Amor, que me durasse?
Ou qual me hás prometido, que hajas dado?
Ou qual deste que muito não custasse?

Mostra-me quem puseste em tal estado
que pudesse viver de ti contente,
ou quem de ti não fosse lastimado.

Inimigo cruel de toda a gente,
já não quero teu bem, só meu mal quero,
se de ti nem meu mal se me consente.

Inda que de teus bens já desespero,
não desprezo dos males o tormento,
antes o prezo mais quando é mais fero».

Arrebatado deste pensamento,
ia o triste pastor com um contino
pranto, que lhe avivava o sentimento,

quando entrou num vergel de esmalte fino,
que era de Amor plantado, e parecendo
lhe está menos humano que divino.

Nele a dor sua esteve suspendendo:
porém não como cervo está, ferido,
reparo ao mal que leva pretendendo.

Aparecia o sítio tão florido
que provocava a não vulgar espanto,
entre uns altos ulmeiros escondido.

De um cristalino orvalho tinha o manto,
quando entrou nele, o mísero pastor,
e as tenções explicou neste seu canto:

«Ó belas rosas, vós, que sois Amor,
é por dita humildade ou é baixeza
o ter a par de vós murta, que é dor?

Papoulas conversais, que são tristeza?
Não desprezais o cardo, que é tormento?
Admitis a hortelã, sendo crueza?

Dos goivos longe vejo o sentimento;
dos jasmins perto estou vendo o perigo;
do malmequeres vejo o sofrimento.

Deste me temerei como inimigo.
Mas traz por armas salva, que é razão:
com ela acabará também comigo.

As minhas vêm a ser uma afeição
que são os puros cravos misturados
coa vontade sujeita, que é limão.

Ai, mosquetas, que sois de Amor cuidados!
Ai, crespa manjerona, que és prazer!
Vós sós devíeis adornar os prados.

Não podem dois opostos juntos ser,
onde se opõem giestas, que é lembrança,
junto do rosmaninho, que é crecer.

Bem pesa do leve álamo a mudança;
do roxo goivo anima o pensamento,
do cipreste odorífero a esperança.

O trevo, que é sentido apartamento,
cerca o manjericão, que se interpreta
memória a quem ofende o esquecimento.

Mais importuna que o jardim de Creta,
a ameixieira a flor está soltando;
a segurelha vejo, que é discreta.

As ervas que daqui irei tomando
são a pura cecém, que é saudade;
cravos medo de ver qual de amor ando.

E, de ter mui perdida a liberdade,
tomarei madressilva entendimento;
legação tornarei, porque é verdade.

Marmeleiro me dá arrependimento;
por a salva, que é gosto, tomarei
coentro, oposto ao meu contentamento.

Conhecimento firme nunca achei
que violetas são; e, quando o houvera,
qual meu dano então fora bem o sei.

Oh, quem, erva-cidreira, oh, quem pudera
ver-vos aqui menor, pois sois vitória,
que de mim alcançou chama severa!

Mas se quereis que tenha alguma glória
por galardão de amar e ser sujeito,
perderei de tormentos a memória.

Porém, pois mo negais, de todo enjeito
a palma, que é ventura; e na parreira,
que é esperança perdida, me deleito.

Entretanto coa flor da laranjeira,
que é desafio duro e arriscado,
posso arguir da hora derradeira.

Já não se quer deter o meu cuidado.
Com a romã descanso; a brevidade
das maravilhas só tem desejado.

E vós, ovelhas minhas, sem piedade,
vos apartai de mim, se algum desejo
tendes de ter do pasto mais vontade.

Se muita de me verdes em vós vejo,
toda a minha de ver-vos hei perdido,
à força do poder de amor sobejo.

Lograi do Tejo o plácido ruído;
sós, lograi estas veigas florecidas.
Pois se perde o pastor vosso querido,
não gosteis de com ele ser perdidas.



 


 

 

 

 

 

20/03/2006