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Luís Vaz de Camões




Entre rústicas serras e fragosas






Entre rústicas serras e fragosas,
compostas de asperíssimos rochedos,
de salitradas lapas cavernosas,

onde gretando os húmidos penedos
orvalhados de neve branca e fria,
brotando estão de si mil arvoredos;

uma floresta fez verde e sombria
a Natureza experta, que rodeia,
como elevado muro, a serrania.

Neste fermoso sítio se recreia
o lascivo Cupido entre as boninas,
que sempre um brando Zéfiro meneia.

Da cândida cecém, das clavelinas,
da salva, manjerona e das mosquetas,
das rubicundas flores jacintinas,

muitas capelas tece, que de setas
lhe servem contra peitos de donzelas,
a quem de inveja traz sempre inquietas.

Não são de uma só cor as flores belas;
que umas esmalta verde, outras rosado,
entre as azuis crecendo as amarelas.

Dos agrestes loureiros rodeado,
faz o vale uma sombra deleitosa,
quando aparece o sol mais levantado.

E, por cima da relva bem graciosa,
as gotas de cristal quase imitando
estão do aljôfar puro a luz fermosa.

As cristalinas fontes, que brotando
por entre alvos seixinhos se derivam
das árvores os troncos vão banhando.

Entre as límpidas águas, que inda esquivam
o fermoso pastor que se perdeu,
preso das falsas mostras que o cativam,

cresce a por cuja causa se esqueceu
a linda Citereia de Vulcano,
quando presa de Amor se lhe rendeu.

Na brancura do rosto soberano,
inda as cruéis feridas aparecem
do javali cerdoso e desumano.

As rosas que de sangue resplandecem,
as cândidas boninas marchetadas,
qual roxo esmalte à vista bem se of'recem.

Do matutino orvalho rociadas,
as flores rutilantes e cheirosas
estão como por cima prateadas.

Os húmidos botões abrindo as rosas,
que os agudos espinhos vão cercando,
no prado se vêem rindo deliciosas.

A melífera abelha , sussurrando
por cima das boninas que rodeia,
está co som das águas concertando.

Do trémulo regato a branda areia
de jacintos se cobre e de vieiras,
que encrespam da corrente a branca veia.

Os álamos se abraçam coas videiras
de sorte que se enxerga escassamente
se são as cachos seus, se das parreiras:

E pendendo por cima da corrente,
outro fermoso bosque debuxando
estão no fundo dela brandamente.

Ouve-se o rouxinol aqui, lembrando
do pérfido cunhado a crueldade,
mágoas em melodias transformando.

A solitária rola com soidade
desfaz o rouco peito, já cansada
de que não move a morte a piedade.

A doméstica Progne anda banhada
no sangue de seus filhos, em vingança
da triste Filomela profanada.

De competir co merlo não descansa
o gárrulo calhandro, que enrouquece
por não perder calado a confiança.

Enquanto o pobre ninho ajunta e tece
o sonoro canário, modulando,
engana a grave pena que padece.

Alguns versos se escuta derramando
o vário pintassirgo, tão saudáveis
que produzem memórias de amor brando.

Por os direitos troncos há notáveis
epigramas; alguns de antígua história,
que contra o duro tempo são duráveis.

Uns de cruel tormento, outros de glória,
conforme a liberdade do que escreve,
estranhos casos mostram à memória.

O que neste lugar contente esteve,
contente declarou seu pensamento
e os prazeres também que nele teve.

Mas outros, declarando o sentimento
que dos olhos destila tristes águas,
deixaram mil lembranças de tormento:

Abrasando-se alguns em vivas fráguas,
escreveram do bosque em muitas partes
gostos de Amor agora, agora mágoas.

Porque, cruel Menino, o prémio partes
a quem serás tirano se lho negas,
e injusto e desigual, se lho repartes?

Porque enganas as almas que tão cegas
arrastas após ti, de error cativas?
Porque a cruéis rigores as entregas?

Para que contra um peito assi te esquivas,
que humilde se sujeita a teu cuidado,
com enganos de sombras fugitivas?

Levas, como a menino, um pobre a nado,
numa aparência falsa embevecido,
quando cos braços corta o mar inchado.

Querendo-se tornar, vê-se perdido,
já grita que se afoga; e tu zombando,
da praia entre os penedos escondido!

O triste, que conhece ir-se afogando,
no meio da arriscada zombaria
por divino socorro está clamando.

Mas eu de que me espanto, se dizia
um sábio que de enganos se temesse
o que tomasse a um cego tal por guia?

Nunca nele a firmeza permanece;
se nos dá gosto algum, muda-se logo;
já chora, já se ri, já se enfurece.

Anda cos corações sempre em um jogo:
umas vezes os faz de pedra fria;
outras os faz de neve; outras de fogo.

Tornando ao bosque meu que descrevia,
despois de ter contado da frescura
que nele tão pomposa aparecia,

referir quero agora uma aventura
que nele ao vão Narciso aconteceu,
digna de se chorar com mágoa pura.

Castigo foi que o moço mereceu
por se mostrar esquivo com aquela,
que em viva pedra Juno converteu.

Ardia em fogo d'alma a vã donzela
sofrendo um duro peito; que a Narciso,
quando ela mais se abrasa, mais congela.

E quando a fraca Ninfa mais de siso
mostrava um sinal certo de firmeza,
então se provocava o moço a riso.

Já de uma profundíssima tristeza
a descora o rigor que a consumia.
Como diz desfavor mal com beleza!

O gelado pastor folgava e ria;
mas vendo-a de seu gosto andar contente,
por não a contentar se entristecia.

É tal o seu rigor que não consente
que seja o gosto próprio festejado;
antes disso se mostra descontente.

Mas o cego Cupido, de afrontado,
em vingança da fé que desprezou,
fez que fosse de si mesmo enganado.

Casualmente um dia se chegou
a beber numa fonte cristalina,
que de si nova sede lhe causou.

Vendo a sua figura peregrina,
que a fonte dentro em si representava,
se perdeu por imagem tão divina.

Como já, de enlevado, não cuidava
nos enganos que a sombra lhe fazia,
vendo o formoso rosto, suspirava.

Por as avaras águas se metia;
e, quanto mais molhava os tenros braços,
então mais vivamente o fogo ardia.

Vendo-se assi prender em duros laços,
ao sentimento obriga a paciência,
dando, fora de si, ao vento abraços.

Embevecido todo na aparência,
sem saber do cuidado o que sentia,
não fez ao doce engano resistência.

Ao ver-se longe mais, mais perto via
o peregrino gesto; e se chegava,
então para mais longe lhe fugia.

Vendo enfim como em tudo o remedava,
caiu no torpe engano que tivera,
a tempo que de si já preso estava.

A beleza que a tantas morte dera,
de si mesma se abrasa e se cativa.
Quão longe então de si ver-se quisera!

Ela se abranda própria; ela se esquiva;
e sendo ela somente a que se amava,
ela se chama ingrata e fugitiva.

A formosura, pois, que namorava,
com tal dificuldade era seguida
que estando dentro em si, mui longe estava.

A solitária Ninfa, que escondida
já nas cavernas côncavas se via,
dos males que lhe ouviu foi comovida.

Das namoradas mágoas que dizia
o namorado moço, ela somente
os últimos acentos repetia.

Ele vendo-se estar ali presente,
as cristalinas águas acusava
de que elas o faziam descontente.

Outras vezes à fonte, quando a olhava,
já cego e sem juízo, agradecia
a figura que dentro lhe mostrava.

Mas vendo que ela em nada se doía
de seu grave tormento, grita e chora.
Quanto erra quem de sombras se confia!

Já lhe pede que saia para fora,
ignorando que sempre fora esteve
a beleza que nele próprio mora.

Despois que longo espaço se deteve
nestes queixumes seus tão lastimosos
que, com tão longo ser, julgou por breve,

cos olhos, belos si, mas lagrimosos,
do vale se despede e da espessura,
dando soluços da alma vagarosos.

Entregue na vontade da ventura
ou, por melhor dizer, de seus enganos,
ao centro se arrojou da fonte pura.

Destarte feneceu em tenros anos
Narciso, dando exemplo à fermosura
de que tema, se é tal, também seus danos.

Sentimento mostrou da sorte dura
o namorado Júpiter, mudando
ao moço em flor purpúrea, que inda dura.

Aquelas claras águas rodeando,
onde por seus amores se perdeu,
está despois da morte acompanhando.

Tanto no seu engano procedeu
que não sabe na morte inda apartar-se
dos erros que na vida cometeu.

Bem pode o coração desenganar-se,
que o fogo de um querer, na alma inflamado,
não costuma na morte resfriar-se.

Porque despois do corpo sepultado,
prisão onde se encerra o fraco esprito,
eternamente chora o seu cuidado

e, das escuras águas do Cocito
a rápida corrente refreando,
celebra o lindo gesto na alma escrito.

Lá se está cos favores recreando;
e, se foi desprezado, lá padece,
as duras esquivanças lamentando.

Nem dos avaros olhos lá se esquece,
que de fermoso verde a terra esmaltam,
por não ver os do triste que endoudece.

Assi que os desfavores nunca faltam,
até despois da morte perseguindo
um triste coração que desbaratam.
Triste de quem em vão lhe vai fugindo!



 


 

 

 

 

 

20/03/2006