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Luís Vaz de Camões




Nunca um apetite mostra o dano






Nunca um apetite mostra o dano
antes de ser de todo efeituado,
mas no fim vem mostrar o desengano.

Dureza a causa; e eu, desesperado
pelo que imaginou o pensamento,
ando por esta serra desterrado,

espalhando a voz ao leve vento,
dele só consolado, dele ouvido,
o faço sabedor de meu tormento.

Que monte há, que não tenha já movido,
que áspera montanha ou roca dura,
a força de meu mal não merecido?

Nas duras pedras acha-se brandura;
falta nesse cruel humano peito.
quem viu nunca maior desaventura?

Pouco pode em ti amor perfeito,
quando de um movimento vive indigno
que jamais se negou a um sujeito.

Da ventura, de vós, de meu destino
pois todos contra mim são conjurados
este vale farei de meu mal dino.

Com ele a noite e o dia meus cuidados
passarei em acerba e longa vida,
em queixas e em suspiros desusados.

Porque sei que serás disso servida,
não deixarei dos montes a dureza,
até tua vontade ser movida.

Aqui me subirei na mor alteza
da serra, onde logo contemplada
será tua perfeição, tua crueza.

A alma em ti só pronta e ocupada
estando de tormento esquivo e duro,
oprimida será de ti levada.

Discorrendo um passo e outro escuro,
de mal em mal, de um em outro dano,
a paga tal verá de um Amor puro.

E vendo aqui tão claro o desengano,
cos olhos feitos fontes, mudará
lugar tão infelice e desumano.

E o que mór tormento lhe dará
a lembrança de algum contentamento,
que, inda que pequeno, magoará;

fará por divertir o pensamento
desta parte tristíssima mudando
üa lembrança cheia de tormento.

Ali algum espaço porfiando,
tendo por impossível esquecer-te,
ficará ao vento vozes dando.

Ali se queixará de conhecer-te:
ali dura, cruel, despiedosa
dirá: Dize que podes já mover-te,

mais que Vénus – dirá -, dize, fermosa.
Quando nessa beleza pura e rara
se verá üa hora piedosa?

Ali dirá, cruel, e quem cuidara
de um espírito tão resplandecente
tão fera condição, e tão avara?

Ali viverá triste, ali ausente,
o costumado mal por si sofrendo
de o quereres tu tanto contente,
como o mundo está já conhecendo.



 


 

 

 

 

 

20/03/2006