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Luís Vaz de Camões



Canto V (Parte II)



51
"Fui dos filhos aspérrimos da Terra,
Qual Encélado, Egeu e o Centimano;
Chamei-me Adamastor, e fui na guerra
Contra o que vibra os raios de Vulcano;
Não que pusesse serra sobre serra,
Mas, conquistando as ondas do Oceano,
Fui capitão do mar, por onde andava
A armada de Neptuno, que eu buscava.

52
"Amores da alta esposa de Peleu
Me fizeram tomar tamanha empresa;
Todas as Deusas desprezei do Céu,
Só por amar das Águas a Princesa.
Um dia a vi, co as filhas de Nereu,
Sair nua na praia; e logo presa
A vontade senti, de tal maneira,
Que inda não sinto cousa que mais queira.

53
"Como fosse impossíbil alcançá-la,
Pola grandeza feia de meu gesto,
Determinei por armas de tomá-la,
E a Dóris este caso manifesto.
De medo a Deusa então por mi lhe fala;
Mas ela, cum fermoso riso honesto,
Respondeu: "Qual será o amor bastante
De Ninfa, que sustente o dum Gigante?

54
"Contudo, por livrarmos o Oceano
De tanta guerra, eu buscarei maneira
Com que, com minha honra, escuse o dano."
Tal resposta me torna a mensageira.
Eu, que cair não pude neste engano
(Que é grande dos amantes a cegueira),
Encheram-me, com grandes abondanças,
O peito de desejos e esperanças.

55
"Já néscio, já da guerra desistindo,
Hüa noite, de Dóris prometida,
Me aparece de longe o gesto lindo
Da branca Thetis, única, despida.
Como doudo corri, de longe abrindo
Os braços pera aquela que era vida
Deste corpo, e começo os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.

56
"Oh! Que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei cum duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando cum penedo fronte a fronte,
Que eu polo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo
E, junto dum penedo, outro penedo!

57
"Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?
Daqui me parto, irado e quase insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro mundo, onde não visse
Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

58
"Eram já neste tempo meus Irmãos
Vencidos e em miséria extrema postos,
E, por mais segurar-se os Deuses vãos,
Alguns a vários montes sotopostos.
E, como contra o Céu não valem mãos,
Eu, que chorando andava meus desgostos,
Comecei a sentir do Fado imigo,
Por meus atrevimentos, o castigo.

59
"Converte-se-me a carne em terra dura;
Em penedos os ossos se fizeram;
Estes membros, que vês, e esta figura
Por estas longas águas se estenderam.
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto Cabo converteram
Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Me anda Thetis cercando destas águas."

60
«Assi contava; e, cum medonho choro,
Súbito de ante os olhos se apartou.
Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro
Bramido muito longe o mar soou.
Eu, levantando as mãos ao santo coro
Dos Anjos, que tão longe nos guiou,
A Deus pedi que removesse os duros
Casos, que Adamastor contou futuros.

61
«Já Flégon e Piróis vinham tirando,
Cos outros dous, o carro radiante,
Quando a terra alta se nos foi mostrando
Em que foi convertido o grão Gigante.
Ao longo desta costa, começando
Já de cortar as ondas do Levante,
Por ela abaixo um pouco navegámos,
Onde segunda vez terra tomámos.

62
«A gente que esta terra possuía,
Posto que todos Etíopes eram,
Mais humana no trato parecia
Que os outros que tão mal nos receberam.
Com bailos e com festas de alegria
Pela praia arenosa a nós vieram,
As mulheres consigo e o manso gado
Que apacentavam, gordo e bem criado.

63
«As mulheres, queimadas, vêm em cima
Dos vagarosos bois, ali sentadas,
Animais que eles têm em mais estima
Que todo o outro gado das manadas.
Cantigas pastoris, ou prosa ou rima,
Na sua língua cantam, concertadas
Co doce som das rústicas avenas,
Imitando de Títiro as Camenas.

64
«Estes, como na vista prazenteiros
Fossem, humanamente nos trataram,
Trazendo-nos galinhas e carneiros
A troco doutras peças que levaram.
Mas, como nunca, enfim, meus companheiros
Palavra sua algüa lhe alcançaram
Que desse algum sinal do que buscamos,
As velas dando, as âncoras levamos.

65
«Já aqui tínhamos dado um grão rodeio
À costa negra de África, e tornava
A proa a demandar o ardente meio
Do Céu, e o Pólo Antárctico ficava.
Aquele ilhéu deixámos onde veio
Outra armada primeira, que buscava
O Tormentório Cabo, e, descoberto,
Naquele ilhéu fez seu limite certo.

66
«Daqui fomos cortando muitos dias,
Entre tormentas tristes e bonanças,
No largo mar fazendo novas vias,
Só conduzidos de árduas esperanças.
Co mar um tempo andámos em porfias,
Que, como tudo nele são mudanças,
Corrente nele achámos tão possante,
Que passar não deixava por diante.

67
«Era maior a força em demasia,
Segundo pera trás nos obrigava,
Do mar, que contra nós ali corria,
Que por nós a do vento que assoprava.
Injuriado Noto da porfia
Em que co mar (parece) tanto estava,
Os assopros esforça iradamente,
Com que nos fez vencer a grão corrente.

68
«Trazia o Sol o dia celebrado
Em que três Reis das partes do Oriente
Foram buscar um Rei, de pouco nado,
No qual Rei outros três há juntamente.
Neste dia outro porto foi tomado
Por nós, da mesma já contada gente,
Num largo rio, ao qual o nome demos
Do dia em que por ele nos metemos.

69
«Desta gente refresco algum tomámos
E do rio fresca água; mas contudo
Nenhum sinal aqui da Índia achámos
No povo, com nós outros cási mudo.
Ora vê, Rei, quamanha terra andámos,
Sem sair nunca deste povo rudo,
Sem vermos nunca nova nem sinal
Da desejada parte Oriental.

70
«Ora imagina agora quão coitados
Andaríamos todos, quão perdidos
De fomes, de tormentas quebrantados,
Por climas e por mares não sabidos;
E do esperar comprido tão cansados
Quanto a desesperar já compelidos,
Por céus não naturais, de qualidade
Inimiga de nossa humanidade.

71
«Corrupto já e danado o mantimento,
Danoso e mau ao fraco corpo humano;
E, além disso, nenhum contentamento,
Que sequer da esperança fosse engano.
Crês tu que, se este nosso ajuntamento
De soldados não fora Lusitano,
Que durara ele tanto obediente,
Porventura, a seu Rei e a seu regente?

72
«Crês tu que já não foram levantados
Contra seu Capitão, se os resistira,
Fazendo-se piratas, obrigados
De desesperação, de fome, de ira?
Grandemente, por certo, estão provados,
Pois que nenhum trabalho grande os tira
Daquela Portuguesa alta excelência
De lealdade firme e obediência.

73
«Deixando o porto, enfim, do doce rio
E tornando a cortar a água salgada,
Fizemos desta costa algum desvio,
Deitando pera o pego toda a armada;
Por que, ventando Noto, manso e frio,
Não nos apanhasse a água da enseada
Que a costa faz ali, daquela banda
Donde a rica Sofala o ouro manda.

74
«Esta passada, logo o leve leme
Encomendado ao sacro Nicolau,
Pera onde o mar na costa brada e geme,
A proa inclina dhüa e doutra nau;
Quando, indo o coração que espera e teme
E que tanto fiou dum fraco pau,
Do que esperava já desesperado,
Foi dhüa novidade alvoroçado.

75
«E foi que, estando já da costa perto,
Onde as praias e vales bem se viam,
Num rio, que ali sai ao mar aberto,
Batéis à vela entravam e saíam.
Alegria mui grande foi, por certo,
Acharmos já pessoas que sabiam
Navegar, porque entre elas esperámos
De achar novas algüas, como achámos.

76
«Etíopes são todos, mas parece
Que com gente milhor comunicavam;
Palavra algüa Arábia se conhece
Entre a linguagem sua que falavam;
E com pano delgado, que se tece
De algodão, as cabeças apertavam;
Com outro, que de tinta azul se tinge,
Cada um as vergonhosas partes cinge.

77
«Pela Arábica língua, que mal falam
E que Fernão Martins mui bem entende,
Dizem que, por naus, que em grandeza igualam
As nossas, o seu mar se corta e fende;
Mas que, lá donde sai o Sol, se abalam
Pera onde a costa ao Sul se alarga e estende,
E do Sul pera o Sol, terra onde havia
Gente, assi como nós, da cor do dia.

78
«Mui grandemente aqui nos alegrámos
Co a gente, e com as novas muito mais.
Pelos sinais que neste rio achámos
O nome lhe ficou dos Bons Sinais.
Um padrão nesta terra alevantámos,
Que, pera assinalar lugares tais,
Trazia alguns; o nome tem do belo
Guiador de Tobias a Gabelo.

79
«Aqui de limos, cascas e de ostrinhos,
Nojosa criação das águas fundas,
Alimpámos as naus, que dos caminhos
Longos do mar vêm sórdidas e imundas.
Dos hóspedes que tínhamos vizinhos,
Com mostras aprazíveis e jocundas,
Houvemos sempre o usado mantimento,
Limpos de todo o falso pensamento.

80
«Mas não foi, da esperança grande e imensa
Que nesta terra houvemos, limpa e pura
A alegria; mas logo a recompensa
A Ramnúsia com nova desventura:
Assi no Céu sereno se dispensa;
Co esta condição, pesada e dura,
Nacemos: o pesar terá firmeza,
Mas o bem logo muda a natureza.

81
«E foi que, de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi, desempararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos pera sempre sepultaram.
Quem haverá que, sem o ver, o creia,
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gingivas na boca, que crecia
A carne e juntamente apodrecia?

82
«Apodrecia cum fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava.
Não tínhamos ali médico astuto,
Cirurgião sutil menos se achava;
Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,
Pela carne já podre assi cortava
Como se fora morta, e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha.

83
«Enfim que, nesta incógnita espessura,
Deixámos pera sempre os companheiros
Que, em tal caminho e em tanta desventura,
Foram sempre connosco aventureiros.
Quão fácil é ao corpo a sepultura!
Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros
Estranhos, assi mesmo como aos nossos,
Receberão de todo o Ilustre os ossos.

84
«Assi que, deste porto nos partimos
Com maior esperança e mor tristeza,
E pela costa abaixo o mar abrimos,
Buscando algum sinal de mais firmeza.
Na dura Moçambique, enfim, surgimos,
De cuja falsidade, e má vileza
Já serás sabedor, e dos enganos
Dos povos de Mombaça, pouco humanos.

85
«Até que aqui, no teu seguro porto,
Cuja brandura e doce tratamento
Dará saúde a um vivo e vida a um morto,
Nos trouxe a piedade do alto Assento.
Aqui repouso, aqui doce conforto,
Nova quietação do pensamento,
Nos deste. E vês aqui, se atento ouviste,
Te contei tudo quanto me pediste.

86
«Julgas agora, Rei, se houve no mundo
Gentes que tais caminhos cometessem?
Crês tu que tanto Eneias e o facundo
Ulisses pelo mundo se estendessem?
Ousou algum a ver do mar profundo,
Por mais versos que dele se escrevessem,
Do que eu vi a poder de esforço e de arte,
E do que inda hei-de ver, a oitava parte?

87
«Esse que bebeu tanto da água Aónia,
Sobre quem têm contenda peregrina,
Entre si, Rodes, Smirna e Colofónia,
Atenas, Ios, Argo e Salamina;
Essoutro que esclarece toda Ausónia,
A cuja voz, altíssona e divina,
Ouvindo o pátrio Míncio se adormece,
Mas o Tibre co som se ensoberbece:

88
«Cantem, louvem e escrevam sempre extremos
Desses seus Semideuses e encareçam,
Fingindo magas Circes, Polifemos,
Sirenas que co canto os adormeçam;
Dêem-lhe mais navegar à vela e remos,
Os Cícones e a terra onde se esqueçam
Os companheiros, em gostando o loto;
Dêem-lhe perder nas águas o piloto;

89
«Ventos soltos lhe finjam e imaginem
Dos odres e Calipsos namoradas;
Harpias que o manjar lhe contaminem;
Decer às sombras nuas já passadas:
Que, por muito e por muito que se afinem
Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,
A verdade que eu conto, nua e pura,
Vence toda grandíloca escritura!»

90
Da boca do facundo Capitão
Pendendo estavam todos, embebidos,
Quando deu fim à longa narração
Dos altos feitos, grandes e subidos.
Louva o Rei o sublime coração
Dos Reis, em tantas guerras conhecidos;
Da gente louva a antiga fortaleza,
A lealdade de ânimo e nobreza.

91
Vai recontando o povo, que se admira,
O caso cada qual que mais notou.
Nenhum deles da gente os olhos tira
Que tão longos caminhos rodeou.
Mas já o mancebo Délio as rédeas vira,
Que o irmão de Lampécia mal guiou,
Por vir a descansar nos Tétios braços;
E el-rei se vai do mar aos nobres paços.

92
Quão doce é o louvor e a justa glória
Dos próprios feitos, quando são soados!
Qualquer nobre trabalha que em memória
Vença ou iguale os grandes já passados.
As envejas da ilustre e alheia história
Fazem mil vezes feitos sublimados.
Quem valerosas obras exercita,
Louvor alheio muito o esperta e incita.

93
Não tinha em tanto os feitos gloriosos
De Aquiles, Alexandro, na peleja,
Quanto de quem o canta os numerosos
Versos: isso só louva, isso deseja.
Os troféus de Melcíades, famosos,
Temístocles despertam só de enveja;
E diz que nada tanto o deleitava
Como a voz que seus feitos celebrava.

94
Trabalha por mostrar Vasco da Gama
Que essas navegações que o mundo canta
Não merecem tamanha glória e fama
Como a sua, que o Céu e a Terra espanta.
Si; mas aquele Herói que estima e ama
Com dões, mercês, favores e honra tanta
A lira Mantuana, faz que soe
Eneias, e a Romana glória voe.

95
Dá a terra Lusitana Cipiões,
Césares, Alexandros, e dá Augustos;
Mas não lhe dá, contudo, aqueles dões
Cuja falta os faz duros e robustos.
Octávio, entre as maiores opressões,
Compunha versos doutos e venustos
(Não dirá Fúlvia, certo, que é mentira,
Quando a deixava António por Glafira).

96
Vai César sojugando toda França
E as armas não lhe impedem a ciência;
Mas, nüa mão a pena e noutra a lança,
Igualava de Cícero a eloquência.
O que de Cipião se sabe e alcança
É nas comédias grande experiência.
Lia Alexandro a Homero de maneira
Que sempre se lhe sabe à cabeceira.

97
Enfim, não houve forte Capitão
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão-somente.
Sem vergonha o não digo, que a rezão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque quem não sabe arte, não na estima.

98
Por isso, e não por falta de natura,
Não há também Virgílios nem Homeros;
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Eneias nem Aquiles feros.
Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez e tão austeros,
Tão rudos e de ingenho tão remisso,
Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso.

99
Às Musas agardeça o nosso Gama
O muito amor da pátria, que as obriga
A dar aos seus, na lira, nome e fama
De toda a ilustre e bélica fadiga;
Que ele, nem quem, na estirpe, seu se chama,
Calíope não tem por tão amiga,
Nem as Filhas do Tejo, que deixassem
As telas de ouro fino e que o cantassem.

100
Porque o amor fraterno e puro gosto
De dar a todo o Lusitano feito
Seu louvor, é somente o prossuposto
Das Tágides gentis, e seu respeito.
Porém não deixe, enfim, de ter disposto
Ninguém a grandes obras sempre o peito;
Que, por esta ou por outra qualquer via,
Não perderá seu preço e sua valia.

 

 

 

 

 

28/11/2005