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Luís Vaz de Camões




Interlocutores: Ergasto, Délio e Laureno




ERGASTO

Agora, já que o Tejo nos rodeia,
neste penedo, donde mansamente
murmurando se quebra a branda veia,

espera, Délio, até que do Ocidente
de azul deixe a ribeira matizada
o Sol, levando o dia a outra gente.

Entretanto daqui verás pintada
a praia de conchinhas de ouro e prata,
e a água dos mansos sopros encrespada.

Verás como do monte se desata
a vagarosa fonte por penedos,
que pouco a pouco cava e desbarata;

e como move os frescos arvoredos
Favónio, que de flores pinta o prado,
e como se estão rindo os campos ledos.

Ditoso o que do Céu foi tão amado
que no campo alcançou passar a vida
livre de pena, livre de cuidado;

o rouxinol na vara que, vestida
de verdes folhas, sombra faz ao rio,
lhe canta o doce verso sem medida.

Agora, ao pé de um álamo sombrio;
vê como dous carneiros se oferecem
os cornos inclinando, a desafio;

como ao que vence todos obedecem
e folgam de o ver fora de perigo,
e outros com face esquiva o aborrecem.

Ditoso aquele que, co ferro antigo,
lavra os campos do pai, e se contenta,
nos seus molhos atando o louro trigo!

Este a fúria do mar não exp'rimenta,
nem corre, por achar a pedra rica,
a outra praia, que outro sol aquenta

onde, quando a esperança o fortifica
em adquirir mais ouro e mais riqueza,
ouro, esperança e vida a muitos fica.

Este vive quieto na pobreza,
e deste confiarei que a anteponha
a quanto o mundo mais procura e preza.

Comendo em mesa vil, não se envergonha:
antes bebe nas mãos a fonte pura
que em precioso metal cruel peçonha.

Oh, feliz tempo de ouro! Inda aqui dura,
inda conversa aqui com os humanos
a justiça, fugindo à gente impura!

Quem visse bem tão claros desenganos
e quanto mal nos vícios se aparelha,
no campo gastaria bem os anos.

Ao dia a nossa vida se assemelha
porque, quando no mar o sol se banha,
se costuma tingir de cor vermelha.

Assi, se olharmos bem, sempre se ganha
lá no ocaso da mal gastada vida
rubicunda vergonha em mágoa estranha.

DÉLIO

A glória, Ergasto meu, que é possuída,
nunca sabe de nós ser tida em preço;
só despois que se perde é conhecida.

E desta vida os bens, que eu não mereço,
quando os perco, e o mal da outra já me espera,
com grandes mágoas d'alma os reconheço.

Oh! se em ditosa sorte me coubera
por favor ou destino das estrelas
que entre pastores eu, pastor, vivera,

muitas vezes te ouvira as luzes belas
cantar da linda Nise, nas quais arde
teu peito, sempre ufano de arder nelas.

Buscai pastor, ovelhas que vos guarde,
que o Céu não quer que eu mais vos guarde e conte,
e despois vos recolha sobre a tarde.

Não vos verei saltar junto da fonte,
cabras minhas, já meu querido gado,
nem da rocha pender no verde monte.

ERGASTO

Consente agora, ó Délio, que chorada
em triste verso seja apartamento,
que assi me deixa triste e magoado.

DÉLIO

Não, que se dobrará meu sentimento;
mas se queres, Ergasto, que me esqueça
partida, que lembrada é só tormento,

canta aquele soneto, que começa:
Quantas vezes do fuso se esquecia;
que digas um dos teus, não sei se o peça.

ERGASTO

Se, com me ouvir, a dor se te alivia,
eu o direi. Mas eis cá vem Laureno,
que a cantar vezes mil me desafia.

Cantando, venceu já Títiro e Almeno;
e eu, inda que sei certo ser vencido.
apostar a cantar com ele ordeno.

LAURENO

Ergasto, pois o tempo se há of'recido
celebremos Amor e formosura
enquanto o gado à sombra está acolhido.

ERGASTO

Posto que já a vitória tens segura,
não cantarei sem preço, por que saia
mais ledo quem cantar com mais brandura.

LAURENO

Eu um vaso porei de lisa faia,
divina obra de Alceu, que celebrado
será sempre por claro nesta praia.

A vide, de que em roda está cercado,
os roxos cachos cobre; e primor teve
em pôr no meio a Dama e Pã cansado.

Parece que a beijá-la o deus se atreve
e que, ainda dos beijos mal sofridos,
inclinado lhe foge o tronco leve.

ERGASTO

Outro vaso porei de hera cingido,
no qual Orfeu das aves esquecidas
e dos suspensos bosques é seguido.

Não cuido que de faia são saídas
de tal arte lavor de tal maneira;
também obra é de Alceu, das mais polidas.

Esta, das que me deu, foi a primeira;
que a dar-ma o velho Alcido enfim se abranda
ouvindo-me cantar nesta ribeira.

Ouviu-me então, estando desta banda;
e, dando-ma, dizia: «Este seja
o prémio, Ergasto, dessa Musa branda.»

LAURENO

Délio o nosso cantar pondere, e veja
qual dos dous a voz dá mais docemente;
que uma tal causa tal juiz deseja.

DÉLIO

Se o meu juízo cada qual consente,
tu, Ergasto, ao doce canto dá começo;
tu responde, Laureno, juntamente;
e eu fico que nenhum perca o seu preço.

ERGASTO

Alcida, que na cor o leite puro
e a rosa da manhã deixas vencida,
culpa é dos olhos teus, neles o juro,
este amor de que estás tão ofendida.
Castiga-os com me verem, que eu seguro
que a vingança será deles sentida.
Nem temas tu de os meus alegres serem,
vendo tristes tais olhos por me verem.

LAURENO

Violante minha, cuja cor iguala,
mas antes vence os cravos, vence a neve:
desta dor, que até aqui minha alma cala,
teu amoroso riso a culpa teve.
Se só por viver dela e por amá-la,
julgas que algum castigo se me deve,
a ver-te sempre rindo me condena
pois, crescendo n amor mais, mais cresce a pena.

ERGASTO

Com a mãe, que maçãs colhendo andava,
inda pequena, a bela Alcida vinha.
Eu os ramos da terra já tocava,
já fácil para amar o tempo tinha.
Não sei que fogo ou neve se passava
daqueles olhos seus a esta alma minha,
que me deixaram posto em tal extremo
que até de cuidar neles ardo e tremo.

LAURENO

No bosque a Violante vi um dia,
doce princípio destas doces dores.
A flor caía nela e parecia
dizer, caindo: «Aqui reinam amores.»
Humilde em tanta glória, ela se ria,
e errando iam sobre ela as várias flores;
eu, que vencido fui de um error cego,
àquele honesto riso a alma entrego.

ERGASTO

Pastores deste bosque, que buscais,
anoitecendo, o lume por costume:
chegai a mi, que eu fico, se chegais,
que destes meus suspiros leveis lume.
Acesos saem d'alma os doces ais
no ardor, que pouco a pouco me consume;
mas nem as chamas, que em suspiros deito,
acenderão jamais um frio peito.

LAURENO

Pastores, que buscais na sombra amada
a fonte, por fugir o ardor do Estio:
vinde a mi, porque d'água destilada
por meus olhos se solta um largo rio
tal que a sede d'Amor, nunca apagada,
fartá-la já de lágrimas confio.
Mas com choro de tanta quantidade
não movo aqueles olhos a piedade.

ERGASTO

Se quando a minha Alcida esta alma visse
nos meus olhos, d'Amor tão maltratada;
se quando a grave dor fora saísse,
entre suspiros mil, rota e quebrada,
sequer com brandos olhos me admitisse,
ficando de vergonha mais corada;
ditoso fora vendo-a, juntamente
com ser a mais bela, deste amor contente.

LAURENO

Se à vista de Violante derramadas
as lágrimas de amor, que vive nelas,
tal força lhe fizessem que orvalhadas
lhe ficassem de dor ambas estrelas,
e as rosas entre a neve semeadas,
co piedoso orvalho, inda mais belas,
ditoso me fizera. Hora ditosa,
se a vira ser mais bela e ser piedosa!

ERGASTO

Claros olhos, que ao sol fazeis inveja,
que brandos vos mostreis já vos não peço;
mas que poder-vos ver paga me seja,
se por tamanho amor tanto mereço.
Armados de esquivança então vos veja,
cheios de um não sei quê, com que pereço,
que doce me será tal esquivança;
doce o morrer que em olhos tais se alcança.

LAURENO

Olhos, que vos moveis tão docemente
que trás vós todo o mundo ides levando:
eu não sei se tomais do céu luzente
o movimento seu, se lho estais dando;
sei certo – e não me engano -, sei somente
que a vós de mi minha alma ides passando;
mas não posso entender como deixais
ao cuidado o que vós em vós levais.

ERGASTO

Por mais que a minha soberana Alcida
- minha não, porque só sua beleza
vem a ser minha em ser de mi querida -
me trate vezes mil com aspereza;
uma só vez que dela acho admitida
minha pequena vista na grandeza
da luz do rosto seu, sinto tal glória
que de todo o penar perco a memória.

LAURENO

Quando a minha mais que única Violante
- se minha pode ser a que é tão sua -
aquela santa luz um breve instante
me deixa ver, por mais que a veja crua;
a vista tanto em mi vejo adiante
que não é muito, não, que me atribua
a soberba de ser uma águia nova,
que do céu no olho claro a vista prova.

DÉLIO

Pastores, que alcançar pudestes tanto,
com vossa branda Musa, que já nesta
idade renovais o antigo canto:

Para vosso louvor, que verso presta?
Que hera dina será? Que louro dino,
que em prémio a cada qual adorne a testa?

Em parte paga Amor, se de contino
por dentro a cada um gasta os espritos,
pois co divino canto o faz divino.

Nós veremos por anos infinitos
nos altos troncos destas faias belas
os nomes vossos por memória escritos.

De únicas flores mereceis capelas:
têm Alcida e Violante sós tais flores;
e pois elas as têm, dêem-vo-las elas.
Os vossos prémios recolhei, pastores:

cada qual igualmente o seu merece,
e ambos de Apolo os mereceis maiores.
Recolhamos o gado, que anoitece.


 


 

 

 

 

 

17/03/2006