| 
            
            Álvares de Azevedo 
   II     Morreu um trovador 
            - morreu de fome.Acharam-no deitado no caminho:
 Tão doce era o semblante! Sobre os lábios
 Flutuava-lhe um riso esperançoso.
 E o morto parecia adormecido.
 
 Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
 Nas horas da agonia! Nem um beijo
 Em boca de mulher! nem mão amiga
 Fechou ao trovador os tristes olhos!
 Ninguém chorou por ele... No seu peito
 Não havia colar nem bolsa d'oiro;
 Tinha até seu punhal um férreo punho...
 Pobretão! não valia a sepultura!
 
 Todos o viam e passavam todos.
 Contudo era bem morto desde a aurora.
 Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel
 Um ceitil para a cova!... nem sudário!
 
 O mundo tem razão, sisudo pensa,
 E a turba tem um cérebro sublime!
 De que vale um poeta - um pobre louco
 Que leva os dias a sonhar - insano
 Amante de utopias e virtudes
 E, num tempo sem Deus, ainda crente?
 
 A poesia é de cerco uma loucura,
 Sêneca o disse, um homem de renome.
 É um defeito no cérebro... Que doudos!
 É um grande favor, é muita esmola
 Dizer-lhes bravo! à inspiração divina,
 E, quando tremem de miséria e fome,
 Dar-lhes um leito no hospital dos loucos...
 Quando é gelada a fronte sonhadora,
 Por que há de o vivo que despreza rimas
 Cansar os braços arrastando um morto,
 Ou pagar os salários do coveiro?
 A bolsa esvazia por um misérrimo
 Quando a emprega melhor em lodo e vício!
 
 E que venham aí falar-me em Tasso!
 Culpar Afonso d'Este - um soberano! -
 Por que não lhe dar a mão da irmã fidalga!
 Um poeta é um poeta - apenas isso:
 Procure para amar as poetisas!
 Se na França a princesa Margarida,
 De Francisco Primeiro irmã formosa,
 Ao poeta Alain Chartier adormecido
 Deu nos lábios um beijo, é que esta moça,
 Apesar de princesa, era uma douda,
 
 E a prova é que também rondós fazia.
 Se Riccio o trovador obteve amores
 - Novela até bastante duvidosa -
 Dessa Maria Stuart formosíssima,
 É que ela - sabe-o Deus! - fez tanta asneira,
 Que não admira que um poeta amasse!
 
 Por isso adoro o libertino Horácio.
 Namorou algum dia uma parenta
 Do patrono Mecenas? Parasita,
 Só pedia dinheiro - no triclínio
 Bebia vinho bom - e não vivia
 Fazendo versos às irmãs de Augusto.
 
 E quem era Camões? Por ter perdido
 Um olho na batalha e ser valente,
 As esmolas valeu. Mas quanto ao resto,
 Por fazer umas trovas de vadio,
 Deveriam lhe dar, além de glória
 - E essa deram-lhe à farta - algum bispado,
 Alguma dessas gordas sinecuras
 Que se davam a idiotas fidalguias?
 
 Deixem-se de visões, queimem-se os versos.
 O mundo não avança por cantigas.
 Creiam do poviléu os trovadores
 Que um poeta não val meia princesa.
 
 Um poema contudo, bem escrito,
 Bem limado e bem cheio de tetéias,
 Nas horas do café lido fumando,
 
 Ou no campo, na sombra do arvoredo,
 Quando se quer dormir e não há sono,
 Tem o mesmo valor que a dormideira.
 
 Mas não passe dali do vate a mente.
 Tudo o mais são orgulhos, são loucuras!
 Fabulas tem mais leitores do que Homero...
 
 Um poeta no mundo tem apenas
 O valor de um canário de gaiola...
 É prazer de um momento, é mero luxo.
 Contente-se em traçar nas folhas brancas
 De um Álbum da moda umas quadrinhas.
 Nem faça apelações para o futuro.
 O homem é sempre o homem. Tem juízo:
 Desde que o mundo é mundo assim cogita.
 
 Nem há negá-lo-não há doce lira
 Nem sangue de poeta ou alma virgem
 Que valha o talismã que no oiro vibra!
 Nem músicas nem santas harmonias
 Igualam o condão, esse eletrismo,
 A ardente vibração do som metálico...
 
 Meu Deus! e assim fizeste a criatura?
 Amassaste no lodo o peito humano?
 Ó poetas, silêncio! é este o homem?
 A feitura de Deus a imagem dele!
 O rei da criação!...
 
 Que verme infame!
 Não Deus, porém Satã no peito vácuo
 Uma corda prendeu-te-o egoísmo!
 Oh! miséria, meu Deus! e que miséria!
 
 |