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Antonio Aílton

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

Poesia e livros em inteiro teor:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Alguma notícia do autor:

 

 

Bernini_The_Rape_of_Proserpina_detail

 

Leonardo da Vinci,  Study of hands

 

 

 

 

 

Poussin, Acis and Galatea

 

 

 

 

 

Antonio Aílton


A POLIFONIA SERTÃ

E A IMAGO-MUNDI DA POESIA DE SOARES FEITOSA

 

 

Quase aos 50 anos, jamais havia escrito qualquer coisa. E foi chegar na rodoviária [do Recife] e, num jato, passar para o papel aquele delírio, Siarah.

 

(Francisco José Soares Feitosa

no prólogo do Psi – a Penúltima)

 Há alguns dias recebi em minha casa algo inusitado: um livro com pequeno envelope colado dentro, gravado com poema explicativo da oferta e contendo irresistível rapé de sementes torradas de imburana-de-cheiro. Presente do poeta cearense Soares Feitosa, com quem eu já vinha de mirabolantes e profícuas conversas, e sabedor desse mimo que ele costuma enviar aos amigos. O poeta é daqueles cuja conversa deixa uma sensação de falta, por não o termos conhecido há mais tempo, para maior desfastio e ânimo da vida.

O livro, com edição esgotada, e que ele recomprara de um sebo, chama-se Psi – a penúltima, publicado em Salvador, em 1997.

À sua oferta, dei a resposta que transcrevo abaixo, a qual revela não apenas minha gratidão por tão gentil cuidado, mas também a minha identificação com os territórios evocativos do poeta. E, mais ainda, uma aproximação não disfarçada de um imaginário de vivências, espacialidades evocativas e temporalidades entranhadas, presentes no seu caldeirão poético:

 

BREVE DECLARAÇÃO DE RECEBIMENTO DO SEU LIVRO COM MESCLA DE RAPÉ-DE-IMBURANA

Trago as alvíssaras de recebimento do seu livro com aquele pequeno envelope contendo poema-endereçamento pelo lado de fora e, pelo lado de dentro, sementes de imburana-de-cheiro torradas. É uma mescla de cheiros da infância, cheiro de avós e bisavós, roupas antigas, baús guardados, minha avó cheirando rapé e espirrando na varanda da casa, numa antiga cadeira de balanço. As estrelas do sertão, das brenhas, os festejos e as mulheres com vestidos de chita; meu pai levando um vidrinho aromático para a roça, e, como você poetiza, os berros da criação. Ainda estou estonteado até agora, porque é a experiência (para mim), de um retorno abrupto ao espaço da casa e do aconchego esgarçado. É isso, poeta, você achou um meio de proporcionar uma experiência nova, inusitada e inefável, através da literatura e do livro. Quero dizer-lhe obrigado, de todo coração – que já nem sei onde está – e agradecer por seu contato, sua poesia e sua existência. Você acrescenta à vida.

***

Não é, no entanto, dessa confluência de vivências e cacimbas que quero tratar aqui, sob o risco de dar mais atenção ao sujeito falante que ao sujeito anunciado.  Eu a coloco sobretudo com o propósito de ambientar-nos nesse tão simples e, ao mesmo tempo, tão incomum livro. Por outro lado, também para sugerir que não posso partir de outro lugar, senão o dessa afetiva identificação exposta.

É um ganho incomensurável que o mestre Feitosa decida republicar o Psi, a penúltima. Em primeiro lugar, pela relevância desse livro para as letras brasileiras, o que podemos constatar pelo panteão de autores que saudaram a sua aparição, quando o autor, completamente alheio à escrita literária por quase 50 anos, danou-se a escrever poesia e foi recebido, reconhecido por nomes da estatura literária de Gerardo Mello Mourão, Thiago de Mello (poetas com quem o autor dialoga), Dora Ferreira da Silva, Nauro Machado, Sebastião Uchoa Leite, Leila Micolis, César Leal, Roberto Pompeu de Toledo,  Jorge Amado, o crítico Wilson Martins e o reverenciável professor canadense Sébastian Joachin, entre outros. A lista é longa.

Em segundo lugar, essa nova publicação é imprescindível pelo que esse livro representa como reabertura de mundos, perspectivas, voz, lugar. Não apenas para reacender as tochas do que o autor tem produzido, mesmo do que sequer veio a lume (a exemplo de um monumental e inédito Salomão, do já sabemos espantosas notícias), mas também pela reivindicação do seu lugar nos possíveis que compõem a multitude atual da poesia brasileira. Porque aqui abre-se a clareira de uma fala diferenciada, de uma voz telúrica, entranhada na raiz da nossa cultura mais profunda, muitas vezes estranha, quando já não desdenhada pelo olhares standards da mundialização urbanoide. Psi não se nega como uma voz do sertão, mas diz respeito a uma coletividade, a uma epicidade e a um corpo narrado crítico-emotivo, híbrido, que nos pertence e irmana universalmente. Eis porque, também, Feitosa o nomeou como uma obra “Heroica, telúrica & lírica”.

Trazendo título homônimo a um dos poemas do livro, eleito dentro de uma simbólica significativa ao poeta, deparamo-nos de entrada, na grafia do título, com uma profunda e inesperada analogia – e, que depois de sabida, no entanto, achamos tão natural! – feita entre dois universos: o da letra grega psi (), referente à cultura grega, ou bem como a uma ancestralidade da linguagem, e o do cacto (), cujos braços, em sua abertura mística, são transfigurados como signos, o espírito do sertão. Porém, essa analogia que mobiliza o nosso olhar como linguagem desses dois mundos conduz nossa alma ainda mais adiante: ao candelabro aceso e ao fogo luciferino no lendário rabo das malsinadas raposas sertanejas, que têm lugar garantido no fabulário arcaico que o livro também nos traz, e que perfazem os múltiplos lados de um mesmo mundo arquetipal, ancestral.

Quem entra no Psi, entra num conhecimento arcaísta e raposista.

Como quem entra e se depara, de repente, com um mundo que, sem fugir das demandas, inclemências e afetos do real, compartilha de uma doação da natureza, da possibilidade viva da água e seu cheiro sempre recomeçado. Compartilha do mundo primordial dos bichos e dos homens, numa matéria poética configuradora de dimensões mundanais, fabulísticas, bíblicas e simbólicas, mas dentro de um lastro humanitário, mesmo filosófico. Poética de um humanitário e evocativo Francisco.

Não obstante as indicações já manifestas do autor, de obra épica, telúrica e lírica, comentadores são unânimes em encontrarem no Psi, talvez mesmo na poética geral de Feitosa, uma intersecção ou ultrapassagem de gêneros e categorias textuais. O professor Sébastian Joachin anuncia-lhe uma propensão à Cantata-Poema, ou Poema-Cantata, pela regulação de ritmos, digressões e pequenos enovelamentos narrativos. No clarão dessa obra, respaldado por tais falas, foi inevitável pensar num conceito que nasceu na voz do teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) sobre o romance; conceito rejeitado ou considerado herege quando aplicado à poesia - isso talvez porque Bakhtin não pudesse ter conhecido a poesia de Soares Feitosa. Falo do conceito de polifonia.

A polifonia diz respeito à condição de um não fechamento da obra numa visão cerrada de mundo, a uma organicidade aberta, a contrapropostas de realidades, discursos e sentidos em uma configuração não totalitária. Feitosa trabalha exatamente com o conceito de “penúltimo/penúltima”, Psi – a penúltima, sobre o que é inacabado, o que não chega ao fim. Textualmente, para além da poesia, é uma escritura poética, uma “poiescritura”, por assim dizer, em que inclui intertextualidades, interdiscursividades, alusões, invocações, fotografias, recorte de jornal, citações, notas de rodapé (mostra do inacabamento do próprio sentido, na explicação inesgotável, que não pode alcançar tudo, nem pode estar presente a todo momento), diálogo com outros poetas – trechos de poemas, recorrências até aos salmistas e narradores bíblicos.

Um dos poemas mais emblemáticos do livro é justamente o “Thiago”, um embate ao modo de atualização da tradicional do desafio, no qual Soares Feitosa convoca a presença poética de Thiago de Mello e seu poema Filho da Floresta, Água e Madeira para esse embate com um filho do sertão e da poeira, do chão do Ceará. Neste poema, é o rol de questões colocadas e o tecido argumentativo, demonstrativo de lugares, que convocam a presença do outro, das questões prévias: “aponte-me, por favor, o nortista verdadeiro/ que poderá dizer que escapou/ do contaminado fogaréu/ destas terras de pedra e pó?! [...] Somos dois, / somos o mesmo! – o homem? // É o mesmo Thiago, o mesmo homem, / idêntico bicho-de-dois-pés/ e por favor não te pabules dos teus rios contra mim/ que eu jogo para cima de ti o meu mar/ com todas as minhas jangadas de sete-paus/ levíssimas, flutuam, e voltam! [...]” (p. 74). É um livro, afinal, de muitas vozes e presenças, humanas ou animadas pelo sopro poético e imaginativo – sol e lua, vento, pessoas que lhe são caras, amigos... – que habitam um espaço mobilizado, efervescente e vivo.

O polifônico vem ao encontro desse dialogismo, à multitude de vozes dialéticas e dialógicas presentes e representadas que reivindicam seu lugar de fala.

Além disso, em Psi até a natureza mantém sua fala, seu discurso. Especificamente no poema que dá nome ao livro, um poema dividido em cantos que vão elencando, intensificando atitudes e situações, o que se passa é um diálogo entre a raposa, ameaçada de extermínio no Nordeste, e que, no poema, é representada como uma entidade autônoma, falante, e o sujeito poético, o compadre Chico, mestre Francisco, a quem a raposa, depois de este muito apelar, concede audiência. Ela entra em embate com o sujeito: “ - Por que [Psi]‘a penúltima’, Compadre? / A última não seria mais rica?,/ o (o ômega?)”, a raposa pergunta. Ao que Compadre Chico responde: “a última não existe, Comadre, nada é último” (p. 197).

O que está em jogo aí não o total, completo, perfeito; mas o “ainda-não”, o “vamos chegar lá”, o “navegar é preciso”. É a simbologia do livro: o aglomerável, em discurso, a caminho, o inacabado. 

Precisamos admitir, é claro, que as categorias devem, por vezes, ser admitidas em termos de graus de presença, ou de ocorrência. Mesmo o texto mais polifônico é organizado pela voz de um autor, do lugar que este conjura as tantas outras vozes, e por vezes as simula. Nessa poesia, o espaço intermediário entre o sujeito poético e o cidadão empírico-político-pragmático Soares Feitosa é muito tênue, em decréscimo do primeiro, operado por vezes em termos de forte alegoria, que recobre grande parte dos poemas (Antífona, Lua de Março, o próprio Psi...). O que corrobora, porém, com esse pêndulo polifônico, no livro, é também o caráter narrativo que perpassa os poemas. Em geral, poemas longos, que permitem engendrar uma narrativa, ambientar, convocar personagens, arquitetar diálogos e, com isso, mobilizar perspectivas diferentes da realidade e do próprio imaginário.

Há ainda um procedimento neste livro que chama quase que de imediato nossa atenção e nos conduz para um pensamento dialógico, mesmo para a percepção de um espaço intermediário entre a sensibilidade estética, a evocação imaginativa e a dimensão política das formas: um uso diverso de todo um repertório de fontes gráficas, eletrônicas, que estavam disponíveis no momento de sua feitura. A forma, na poesia, os elementos gráficos, e sua organização na página, bem sabemos que não são apenas registros fáticos, são também elementos de invocação de sentido. São espessuras do sensível, tornando-se até mesmo signos patêmicos e afetivos. Soares Feitosa dá lugar, na escolha de um misto repertório de corpos gráficos magros, bojudos, serigrafados, timbres góticos e iluminuras de evocação mística antiga, à demonstração de uma verdadeira dimensão poético-política (democrática) da instância gráfica.

O eixo simbólico que direciona como dominância para a construção da imago-mundi, a imagem do mundo ofertada nesse universo poético de Feitosa, é um eixo solar, ou, como ele mesmo diz, auroral. O solar implica a clareza, a racionalidade, os espaços iluminados, o calor – até o sertão tórrido –, as forças vitais. Mas o auroral é um termo muito feliz, porque é um movimento para a clareza, para o alvorecer, um amanhecimento, caminho para o esplendor. Fiquemos também com o auroral. E é para esta aurora que o poeta também chama seus rios, por vezes frágeis rios, suas cacimbas – que se deixa até toldar pelos que nela vêm socorrer-se, em sua pressa de matar a sede – por suas chuvas e pancadas de água, soltando o cheiro do barro. Há, no livro, pelo menos uns 15 poemas que falam de sol e de água, duas imagens de encaminhamento da aurora, para o que pode germinar entre chuviscos e orvalhos.

E entre todos os poemas altissonantes que compõem o livro, encontramos também aqueles que estão ali como quem não querem nada. Poemas mais simples, que guardam o pulsar de um coração profundo que perpassa todo o livro, uma lira delicada, um salmodiar, muitas vezes sob impacto das injustiças. Que belo poema, esse “O menino do balde”, feito ainda em 1994, no qual o poeta traz à luz, em forma de denúncia de genocídio, os meninos limpadores de para-brisa nas avenidas das grandes cidades. Ao final desse poema, ele registra:  “av. Agamenon Magalhães, manhã de sol quente, 31.03.94”.

Psi – a penúltima é um livro realmente diferente e, conforme dito acima, é um livro híbrido, cuja polimorfia, polifonia e repertório simbólico nos transportam para os elementos basilares da poesia e da cultura brasileira. Chega num momento crucial, em que o discurso das diferenças precisa lidar também com o peso do esquecimento, do menosprezo, da ignorância, da pressa obstinada e do acúmulo. Psi, através de sua voz poética, ou de suas muitas vozes e corpos, traz uma moral da história. A sua moral subliminar é a de que a fraternidade universal pressupõe a prática inarredável da justiça.

Aqui está a 1ª edição de PSI, A PENÚLTIMA

Página de Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Empire of Flora

 

 

 

 

 

Antonio Aílton


 

Um pequeno bloco de poemas de Antonio Aílton


 

CARTA à FILHA

 

O mundo é sujo, filha, estende o teu vestido

e então, por dois dias, espera teu marido

se ele não vier, vive tua lenda

respeita a ti mesma e costura tua renda

 

Que dos maridos o inferno está cheio

o inferno, o Outro da ordem caseira

De muitas mulheres eu mesmo fui vampiro

eu mesmo fui o estrago, o pinto, o trouxa, o pato

 

Toda palavra pode ser mais doce

e algumas são tão doces quanto a passa

da madura fruta e refletida

 

Explode as palavras, e o silêncio

insiste em que trabalhe a teu favor

para ouvires o que nasce e pulsa em ti.

 

(Do livro Compulsão Agridoce, Paco Editorial, 2015)


 

 

Poema para as unhas da quebradeira de castanhas

 

As quebradeiras de castanha do mercado livre

são alicates com garras brilhantes

Mas há a coisa, os metais duros

e há o humano

O humano se utiliza das coisas

Humanos sem brilho, de olhar cabisbaixo

não pertencem ao mercado livre

As meninas não pertencem ao mercado livre

não serão compradas

As meninas quebradeiras de castanha não têm alicate, têm unhas

rasgando o leite ácido sobre a pele

Suas pretas unhas são um fato

que não se transcende nem se transfigura

com meras promessas de um poema sorri/dente

O poema não pode negar a tisna sob as unhas corroídas

na quebradeira de castanhas

O poema não pode embelezar certos fatos, sob pena

de ser cego, cruel ou fútil. O poema não pode se dar ao luxo

de fingir a dor real

e conduzir como a um rebanho satisfeito

todas as almas à festa

sem perceber que alguém carrega sombras

nos escuros dedos das mãos

Há ali a velha dor abafada e sem luvas

do subjugo humano

que a menina gostaria de arrancar do seu corpo

ou de impregná-las com o vermelho-brilhante

da existência – mas não pode

Cretino destino

Poderia dizer liricamente que suas unhas são belas

– mas não são

Eu só posso dizer que a vida é devir

Que o poema que lhes dedico é aquele que há de vir

Embora parcamente dedicado apenas às suas unhas

não aos seus corpos

não às suas almas

E há coisas que são apenas berros, não poemas

Um poema não nasce do dia para a noite

Um poema cresce como digital

até que exploda, fogo brilhando em carmim

 

[Do livro A Camiseta de Atlas, inédito, 2022]

 


TOTEM E TABU

 

Um a um meus irmãos ganharam

uma surra e uma valise ao partirem

Menos a irmã morta levada pelo ascaris

que deixou nossos balanços pendurados no ar

 

Alguns de nós anoiteceram e não

        amanheceram

escorraçados por um carrancismo cru

Feito a mão larga, talhadeira e ferro

 

Silenciosa como um pacará

ou como o cheiro no fogão de lenha

minha mãe confundia-se com a casa e seus vãos

com os plantios de milho, a cura dos pintinhos

 

Minhas irmãs foram talvez as primeiras

a conhecerem a cidade, do batente pra fora

Menos as que tiveram um marido de verdade

 

Dali daquele morto saem todas as ordens

para matá-lo de novo, mas ninguém acata

O morto está morto, isto é amor

  

(Do livro Miradouros, inédito, [2020/21])

 


REDENÇÃO

 

 

seguro a alça do dia na tua morte

aos pés de um domingo tardio

 

por toda a noite ultrapassamos

como um cadáver sua caixa de lamentos

 

porque a manhã compartilha esta beleza

dos tristes,

de frágeis e semelhantes pai e filho

 

neste áspero momento somos justos

ao estamos juntos, quase redimidos

e, após as orações, enterramos o não-dito

 

para finalmente descansarmos um no outro

duas mãos, passado, presente: em paz

  

 

(Do livro Miradouros, inédito, [2020/21])

 


Dia de poeta

    

 

O planeta Terra é repleto de tarefas

e outras vias comuns, assar massas ao forno

atrasar para o ônibus, comer pastel

mas coisas surreais também brotam dos cantos

 

Dos malfadados cantos desvios estranhos

pedindo que sejamos sua voz humana

são almas, meu poeta, que se exteriorizam

de onde não se esperam bruscas, epifânicas

 

tu tens o dom de vê-las e de traduzi-las

de quase transformá-las em arroz, feijão

matéria de conversa em bodega ou balcão

 

mas sabes que és a porta entre o aqui e o além

entre as  pequenas coisas e o olhar da paixão

do dia tão comum em que és a comunhão

 

 

(Do livro A Camiseta de Atlas, inédito, [2022])

 


Cirrosas

  

1.

Nosso ap foi construído sobre a casa sequestrada

à altura do domus com habitação creditada

nós esvaziamos nossos corpos

na cidade fantasma

no país fantasma

nosso Desejo foi dormir

sobre um antigo cemitério indígena

pet sematery

 

Retornamos um século depois de mortos

e aqui estamos entre nossas peles

e nossa película

 

um pouco mais cínicos e violentos

precisamos estar vivos para o ritual da vingança

 

2.

A carne fechada

que aduba a cama

estica sua data de vencimento

de dia aguarda a noite

de noite aguarda o dia

em que, tocada,

seja aberta

sem ranhuras

sem derramamento de palavras

ou de sangue

 

até o dia desperto

em que nada acontece

na vida enlatada

na memória

ou

no mármore

do azinhavre

onde encarcera

o olho pálido

e a salmonela

 

3.

Novo corpo

ou novo

copo

 

o que o tempo

Prometeu

e a vida não cumpriu

já não importa

é o gole do santo

ou do abutre

 

do cometimento

ou do acontecimento

que te renova

 

partir

no óbvio

a corrente

ou simplesmente

partir

 

o que importa

é permitir

ao prisioneiro

(que já não morre)

sua liberdade

provisória

 

sua conjunção

de colorido

condicional

 

na escritura

do batente

e do balcão

 

se Rose

ou cirrose

a vida é dose

  

(Do livro A Camiseta de Atlas, inédito, [2022])

 

 


DISCURSO DE SANTO ANTÃO AOS POETAS-PEIXES

 

 

poesia de má qualidade adora frequentar caixas de mensagem

e lá ficar por alguns dias até que alguém lhe dê um rumo

para o alarido do mercado de peixes. 

 

ninguém compra poesia de má qualidade, mas todo mundo

quer vender.

 

a poesia também apodrece no mercado dos poetas como

apodrece no mercado de peixes. 

 

            mas,

 

como no mercado de peixes ou em qualquer outro, no

mercado dos poetas  vende mais quem grita mais alto. 

 

às vezes a gente só descobre o peixe estragado quando chega

em casa, depois de abri-lo. mas onde jogar a poesia estragada,

e suas tripas? os operários não a querem sobre o feijão. as

funerárias não a querem no rabecão, os cães não a querem

mesmo quando têm aparência de osso. 

 

os cães só rasgam bons livros, disputando um jogo de

violência quase simbólica entre si.

 

nenhuma poesia de má qualidade é condenável em si, em seu

castelo de sonhos, como quer que ela se manifeste em seu

lençol de uso e ramerrão de lágrimas.

 

como peixe estragado, chora pela fedentina dos campos

de poder. 

 

se a poesia não vende, como se movimenta sua engrenagem

 na arena do capital? como ela cai em campo e sobrevive das

varas de cânon? como o campo cai no sistema de papéis,

ofícios e cêntimos? como organizar uma feira de peixes e

pescados à

população de forma sustentável  em épocas de defeso?

como pensar o mar de dentro da feira dos dourados?

 

poetas vão ao mercado sem noção de mercado, o que vendem

não é mercadoria, é sua força de trabalho.

 

o poeta é um trabalhador alienado do seu trabalho e funciona

à força dos 10% do agrado material e 90%

de palavras sublimes

 

que é justamente o de cavar a contra/

partida da sua existência

no corpo a corpo da linguagem  para entregar seu esforço

à companhia de águas, aquários, peixes e esgotos.

 

mas muito em breve haverá máquinas de criar, pescar e

vender poemas

contaminados com metáforas de mercúrio, e o poeta será

encostado para sempre em sua arca de alfarrábios.

alguns de vós sereis fichados por não serem poetas autômatos

e por pescarem sem autorização.

 

alguns poetas vendem-se a si mesmos

no mercado de peixes.

 

os poetas formam um mercado de reserva.

é muita poesia para o mesmo rol de sombras

e quimeras descartáveis.

 

precisamos ampliar o mercado dos objetos não vendáveis.

enquanto não houver mercado, só Colônia,

a poesia deve continuar seu sermão aos peixes.  

(Do livro Miradouros, inédito, [2020/21])

 

 

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