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		Albano Mendes de Matos 
			
		  
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
			Oeiras - Portugal 
			
			  
			
			A BRUXA 
			   
			
			            
			Todas as Mónicas são bruxas. Assim diziam no povoado serrano. Voam 
			com uma vassoura entre as pernas, em malévolas viagens de gozo, por 
			cima de toda a silva, entre névoas e ramagens, no ondular das 
			encostas. Algumas mudam-se para galinhas, na devoção dos segredos, 
			na maldição das sortes. E sacodem as asas, despejando os males à 
			porta dos pacientes, por encomenda. São as bruxas más. São as bruxas 
			das encruzilhadas nocturnas, que têm encontros com Lucifer, ao cair 
			da Meia-Noite, e esvoaçam silenciosas sobre os telhados, leves como 
			folhas secas, tocadas pela ventania, nos segredos da sua 
			trans-figuração sobrenatural. Galinha a cantar fora do tempo ou a 
			vaguear desnorteada, com tremuras de asa, pode ser encarnação de 
			bruxa. Desta sorte, as mentalidades cimentadas na religiosidade 
			camponesa e na magia. Uma visão do mundo, no sentir da ruralidade 
			embebida numa sensação de instabilidade e de incerteza. Nas mãos das 
			entidades protectoras - clérigos, exorcistas, bruxas, mulheres de 
			virtude e santos advogados - estava um sentimento de segurança, um 
			ancoradouro para a vida. 
			
			             
			Tudo na vida tem o seu contrário, como a alegria tem a sua tristeza 
			e o riso tem o choro. Assim, algumas bruxas não são maléficas, mas 
			sempre temidas. Mostram-se com a sua divinatória sabedoria. Curam 
			males de Lua, tiram maus-olhados, desentorpeçam crianças e saram 
			feitiços de amor. Para pequenos males, as mulheres tinham sempre na 
			ponta da língua uma oração para esconjuros, um prato com água e 
			pingos de azeite para certificação de bruxedos. Em casos de maior 
			turvação, recorriam a rezas e gestos fortes, ou a pessoas de 
			virtude, para recitação das 
			Doze palavras ditas e retornadas, 
			infalíveis contra os males de inveja e as malquerenças. 
			
			            
			A malha do centeio estava aprazada para o dia seguinte. Na casa do 
			Tio Alfredo, o Tormentas de alcunha, por clamar que a vida era uma 
			grande tormenta, numa barulhenta azáfama, preparavam-se as papas de 
			carolo branco, esfolava-se a cabra para o guisado, cozinhava-se 
			arroz-doce, com leite da cabra, decorado com canela, desenhando 
			flores, corações e outros rabiscos, que a fornada do pão já tinha 
			sido cozida na antevéspera. Para a desjejua na manhã da malha, 
			coava-se e fervia-se leite. Apartavam-se os melhores chouriços, 
			conservados em azeite, e os nacos de presunto mais largos e 
			avermelhados, atados em sacos de pano branco, para a merenda da 
			tarde, que as varejeiras rondavam procurando frescura para os ovos. 
			
			            
			Que a malha era uma festa grande! Dava o pão para o ano! 
			
			             
			A aldeia moldava-se numa concha natural, na meia encosta da serra. 
			Estendida como um sáurio, na modorra do tempo. Os penedos em crista, 
			recortados nas alturas, cerravam-lhe os horizontes, excepto os do 
			Sul, sempre abertos para o Campo que se estende por largos espaços 
			até se esbater no infinito. Os ares centravam-se num pedaço de céu, 
			incendiado pelas chispas do Sol, sombreado pela Lua Nova ou clareado 
			pelas bochechas da Lua Plena. Simulacros de claridade eram as 
			quadraturas do Minguante e do Crescente. As Luas e a crença na 
			operância mística ou mágica no deambular empírico e sinuoso das 
			gentes, na germinação das sementes e no eclodir dos pintainhos 
			bicando o calcário ovóide protector da sua gestação. A capação, 
			castração ou esterilização mecânica dos suínos acontecia em Lua 
			Nova, mas nunca em dia de mudança lunar, que os golpes não saravam. 
			A gaita de tubos metálicos, com dimensões diferentes, que, ajustada 
			aos lábios e soprada, produzia diversos tons, anunciava o capador de 
			porcos, sabedor da operação necessária e propícia para a engorda e 
			para o bom sabor das carnes. Era uma gaita semelhante à dos 
			amoladores galegos, que desciam da Galiza, para ganharem alguns 
			escudos, aguçando tesouras e facas, de rua em rua, de povoado em 
			povoado. Estes trabalhadores ambulantes sazonais faziam parte do 
			calendário meteorológico: anunciavam chuva. Tempo de amoladores, 
			tempo de chuva. Acrescidas eram as dificuldades no capar das fêmeas 
			porcinas, devido à manipulação interna. A borra de azeite com 
			enxofre sobre os golpes e a oferta ao Santo António eram, 
			respectivamente, os meios da racionalidade curativa e da prece na 
			crença religiosa. Ao cuidado das bruxas ou mulheres de virtude 
			ficavam as rezas e segredo dos rituais mágicos. Gestos e benzeduras 
			com as mãos, abertas ou de dedo em riste, e facas afiadas para 
			talhar a zerpela 
			ou cortar o quebranto. Na transplantação do cebolo, as raízes deviam 
			ver a Lua. A terra a deixar de fora um pouco da cabeleira, para que 
			o luar a abençoasse. As cebolas sairiam largas e saborosas. Operação 
			só feita nos quartos lunares ou em Lua Cheia. Luar pleno era também 
			propício para os lobisomens peregrinarem a sua devoção nas andanças 
			noctívagas. Que eles habitavam na crença de longos séculos. 
			
			            
			Três rapazes preparavam-se para a malha: o Tó Tormentinha, o Alberto 
			Naifas e o Quim Nanho. 
			Assentavam-lhes bem, as alcunhas. Raras pessoas da aldeia escapavam 
			à nomeação por alcunhas, que se lhes colavam ao corpo e à alma para 
			toda a vida. O Tor-mentinha, filho do Tormenta, O Naifas, por, em 
			garoto, andar sempre com a naifa em punho, para o desse e viesse, o 
			Nanho, por ser a palavra que mais lhe saía da boca, nas mangações 
			com os outros. 
			
			            
			Na taberna do velho Simão, alumiada com a chama mal cheirosa e 
			pálida de um gasómetro das minas do volfrâmio, prateleiras e balcão 
			enegrecidos pelo tempo, compraram chouriças e vinho. Que a noitada 
			iria ser longa. E sem pândega não era noite. Ali ficaram a fazer 
			tempo, beberricando, que a madrugada iriam terminá-la, por 
			combinação, na corte do Tio Alfredo Tormentas, junto da eira, na 
			fazenda do Penedo. A eira, para estender os cavalos, 
			já varrida e barrada, logo ao lado. O vendedeiro, Tio Simão, 
			dormitava entre duas sacudidelas para mais um copo de três, 
			mal medido. 
			
			            
			- Eh rapazes! Lembrei-me, agora, de uma coisa! – disse o Alberto 
			Naifas. 
			
			            
			- O quê? – resmungou Tormentinha. 
			
			            
			- De quando palmilhávamos o centeio, na cata de lenticão; grão aqui, 
			grão ali, para encher as caixas de palitos, 
			que eram a medida para o farrapeiro. 
			
			            
			- Lenticão para as bombas de São João! Bons tempos! – lembrou Quim 
			Nanho. 
			
			            
			- É que, ontem, vi mãos cheias dele, nas faixas do pão que está para 
			malhar – res-pondeu Naifas. 
			
			            
			- Lembro-me bem, de garoto. Chegava a encher mais de vinte caixas, 
			pequenas e grandes, por dia! – exclamou o Nanho, apontando o dedo 
			para o ar. 
			
			            
			- E eram só a dois tostões! 
			- comentou Tormentinha. 
			
			            
			- As pequenas! Que as grandes eram o dobro, um cruzado ou quatro 
			tostões 
			- acrescentou Nanho. 
			
			            
			- Mas tínhamos bombas de fartar, para o São João! – frisou 
			Tormentinha. 
			
			            
			- Diziam que eram para fazer pólvora, para as guerras! – lembrou o 
			Naifas. 
			
			            
			- Pr’ó que era, não sei!... Que foi proibido vender, isso foi! – 
			disse Nanho. 
			
			            
			- Lembra-me muito esse tempo, em que andávamos na vadiagem o dia 
			todo! – lembrou Naifas. 
			
			            
			- As horas por nossa conta! Era bom, era! – rematou o Tormentinha. 
			
			            
			Nas encostas, em leiras abertas ou nas taliscas, entre os penedos, o 
			centeio vingava, mais viçoso em anos de nevão. Desbastado pelas 
			cabras, rebentava mais forte, mais espigado. As humidades das 
			invernias e a cresta dos calores de Maio propiciavam o aparecimento 
			do lenticão nas espigas, esporão do centeio, a contaminação dos 
			grãos por um fungo tóxico causador de doenças e de alucinações nas 
			pessoas. Na malha, o lenticão acompanhava o grão e também era moído 
			nas azenhas. Perturbados mentais, caminhando, de noite, pelas 
			veredas, problemas neurológicos, ataque epilépticos: fogo sagrado ou 
			doença da Santo António e doidinhos, em muitas terras, alimentados 
			com centeio contaminado pelo lenticão. Homens tolhidos pela Má Hora 
			em transformações licantrópicas. Lobisomens cumprindo o seu fado, 
			bufando e gemendo, alucinados pelos vendavais da sorte, na magia das 
			noites de horas nefastas. 
			
			            
			O 
			sino saimão 
			apertado, em punho, na mão esquerda. A dextra livre para os gestos 
			de protecção e de afastamento, que muitas coisas más andam pelas 
			noites, em horas pró-prias, a atazanar os desprevenidos e os 
			inocentes. E rezas na memória contra os encontros com o Diabo. Nem 
			de noite, nem de dia, nem à hora do Meio-Dia. E as bênçãos 
			pre-ventivas, cruz em monte e em fonte, na convicção das 
			mentalidades. 
			
			            
			A paz social da aldeia controlada pelo esmero da crença e da 
			religiosidade, numa multitude de comportamentos, recriados em cada 
			geração, para a reprodução social dos costumes. As bruxas, as almas 
			penadas e os lobisomens como entidades sobrenaturais embebidas na 
			criação dos medos, para a ordenação da norma social.  
			
			            
			Para dar sustança com o vinho, o Tio Simão assou um naco de 
			soventre, que já começava a tomar do sal, nas brasas da lareira, e 
			levou-o aos três companheiros, Tormen-tinha, Nanho e Naifas, que 
			eles deixavam bem o lucro do taberneiro no copo, não emborcando todo 
			o vinho entre as rodadas. No fundo, lá ficava o ganho do taberneiro. 
			O Quim Nanho, o mais manhoso deles, ovelha ronhosa lhe chamavam na 
			escola, pegou no toucinho a jorrar gordura e chegou-o à luz pálida 
			do gasómetro. Olhou de um lado e de outro e gritou: 
			
			            
			- Não gosto tetas! Ainda se as chupasse! Mas, isso, outro galo 
			cantaria! 
			
			            
			- Não te armes em esperto, porque até te passam pelo gasganete 
			coisas piores e não cantas – gracejou o Naifas, preparando-se para 
			abocanhar um pedaço do assado. 
			
			            
			- Eu nem o courato lhe tiro! Passando da goela, tudo é igual, tudo 
			cai no mesmo – comentou Tormentinha. 
			
			            
			- Comei, porque amanhã tendes que puxar pelo mongal, 
			isso é que é uma certeza! – disse o Tio Simão. 
			
			            
			- Dessas contas já nós sabemos, Tio Simão! Meta-se lá na sua vidinha 
			e não nos apareça com mais mamas de porca – respondeu Nanho, 
			empertigado. 
			
			            
			- Ou de porco, tu sabes lá!... – comentou o velho taberneiro, 
			lançando uma risada rouca de anos.  
			
			            
			Nas proximidades da Meia-Noite, os três da vida airada 
			prepararam-se para sair da taberna do Tio Simão e treparem pela 
			encosta, com destino ao Penedo. O Tio Simão tinha encostado a folha 
			da porta, porque a legalidade da abertura estava nas dez da noite. 
			Depois, sem fregueses na mira de um copo, encostou-se ao balcão. Que 
			as pernas já adornavam e o cansaço do dia a dia pesava. Daí a bem 
			não, a cabeça tocou o tampo surrado pelos descuidos do vinho. Num 
			instante, dormitou. E logo a sair-lhe da boca um sopro, acompanhado 
			por ligeiro ruído gutural, que o Tormentinha acompanhava com um 
			assobio arrastado, queixo elevado, terminando num sorriso 
			silencioso.  
			
			            
			A Lua Cheia pairava um pouco acima do rendilhado dos cumes. O luar 
			clareava a concha da serra. Sem aragem, os vultos das árvores 
			estavam imóveis. Estática parecia a Natureza. O silêncio dos vales 
			apenas perturbado pelo cantar dos regatos caindo de pedra em pedra. 
			De vez em quando, a coruja gritava no pinheiro da capela. Um som 
			nocturno que incomodava os ouvidos mais sensíveis. A coruja era um 
			animal noctívago, que anunciava desgraças. As mortes incluídas. 
			Especialmente as mulheres abominavam estas aves rapinadoras. Diziam 
			que até roubavam o azeite dos lampadários do Altar, se tivessem 
			ensejo de lá chegar. Na penumbra do Altar, elas preferiam as 
			borboletas que a luz atraía. Canta a coruja…, mau agouro. Notícia 
			grave estará para chegar. As mulheres tinham a sua sabedoria. 
			Conhecimento empírico, conhecimento virtual positivo. Pensamento 
			mágico na classificação das atitudes.  
			
			            
			A lista esbranquiçada do caminho contornava muros e regueiras. 
			Serpenteava entre divisórias e cômoros de propriedades, amoldava-se 
			a lombas e contornava penedos. Batido por pessoas, animais e, em 
			certos locais, por carros de bois, era fonte de poeiras, levantadas, 
			em tempos de calmaria, pelos ventos serranos, ou torrente de lamas 
			nas primeiras chuvas. Tormentinha, Nanho e Naifas subiam cadenciando 
			os passos, no ritmo do anda-mento sem pressas. Agora, calados na 
			passagem pelo silêncio do cemitério. O respeito e o medo da morte na 
			enculturação primordial das crianças. Respeitos humanos pelos 
			antepassados. 
			
			            
			Ultrapassados momentos de silêncio tumular, o Naifas confessou o 
			maior susto da sua vida. Vinha da Barroca do Pereiro, ao 
			lusco-fusco, e atalhou pela vereda do cemitério, que era mais 
			rápido, para chegar à casa da avó, onde ia dormir, porque o avô 
			tinha ido de vigia para o batatal, que tinha nas Tapaditas, para 
			afugentar os javalis, que tudo fossavam, pondo as raízes ao Sol. 
			Quando se aproximava do muro, teve um baque no coração. Sentiu 
			arrepios de morte. E frios a subirem pela espinha. Era um vulto de 
			pessoa a levantar-se sobre o muro do cemitério, no local onde é mais 
			baixo, porque a terra se levanta. Primeiro a cabeça, depois os 
			ombros… Foi o que viu. Tremenda foi a corrida, os calcanhares a 
			baterem no rabo, até à capela, onde parou em tremedouros, sem fala, 
			só arfando. A contenção urinária quase em explosão. Naifas jurou que 
			não mais passaria pelo cemitério para lá do Sol se pôr. São assim os 
			medos. O vulto a pular o muro do cemitério era da Tia Rosa Benedita, 
			que ceifava a erva, no local onde não havia covais, para dar comida 
			aos coelhos. Naquele dia, o portão estava fechado. Isto segredou a 
			Tia Rosária dos padres, que cuidava dos altares e da sabedoria 
			catequética, examinadora da criançada. A Tia Rosária guardava, em 
			arcas de castanho, as opas brancas das comunhões, primeiras e 
			solenes, e as faixas das Cruzadas, com as cruzes vermelhas da Ordem 
			de Cristo, para rapazes e raparigas ostentarem nas procissões 
			festivas, como iniciação de defensores da Fé. Dera-se à capela e aos 
			padres, porque o seu homem, tido como pouco crente e julgado 
			lobisomem, morrera fulminado por uma faísca, quando se abrigava de 
			uma trovoada, na Penha Alta. Desde aí, a Tia Rosária mais passou a 
			acreditar em castigos dos Céus.  
			
			            
			Os silêncios foram quebrados pelos latires dos cães, de fazenda em 
			fazenda. Uma aragem ligeira fez estremecer os fios das giestas e as 
			folhagens das carvalhiças, com ruídos intermitentes, prolongados. O 
			caminho corria agora na sombra de pinheiros mansos, que bordejavam o 
			cômoro. De noite, sentem-se mais os ruídos. A terra parece dormir. 
			Os silêncios mais profundos. 
			
			            
			Nanho levantou os braços, com sinal de paragem. Susteve-se um pouco 
			e balbuciou: 
			
			            
			- Devem andar lobos por perto, que os cabelos levantaram-se-me. 
			Cabelo eriçado é sinal deles! 
			
			            
			- Com os cães a ladrar, eles não se atrevem. Tu estás é como os 
			efeitos das mamas da porca no toutiço. Ou és um cagarola de meia 
			tigela! – respondeu-lhe Tormentinha. 
			
			            
			- Contou o meu avô, que é um homem bom conhecedor da serra, que os 
			lobos comiam homens, quando os apanhavam desprevenidos; de um pobre, 
			que cirandava pelas terras na pedincha, só encontraram os pés dentro 
			dos tamancos – disse Nanho. 
			
			            
			- Que as bruxas e os lobisomens têm lapas, na serra, onde se 
			escondem, sempre se disse – afiançou Naifas. 
			
			             
			Na oficina do Ti Caetano sapateiro é que todas as coisas são ditas e 
			contadas. Enquanto Ti Caetano e os filhos palmilham sapatos, cosem 
			viras nas botas, adelgaçam almas e acertam gáspeas, há sempre 
			assistência a saber de notícias e a ouvir contar histórias, 
			inventadas ou reais, que os mais velhos vão desfiando. Dizia-se que, 
			na Lapa Escura, estava encantado um rei mouro, com um capote de 
			ouro, que tinha pactos com o Diabo e apanhava as raparigas que 
			passassem perto; na Toca do Lobo, o Diabo se encontrava com as 
			bruxas, de noite, e de lá iam para as clareiras dos soutos, onde 
			dançavam até partirem para os afazeres maléficos. Havia quem 
			presenciasse essas danças diabólicas. O pai do Zé da Pardanta 
			contava que um dia em que guardava o milho, a secar na Laje dos 
			Amieiros, aí pelo uma da noite, uma coisa, que lhe pareceu um cavalo 
			pequeno ou um cão enorme, correu para a laje, aos pulos de mais de 
			dois metros de alto, dando pequenos urros. Sentado numa pedra, 
			quando ouviu o alvoroço que fazia o quer que era, levantou-se e a 
			coisa desviou-se e desapareceu pulando pelos lameiros. Atormentado, 
			ouvia uma voz, ao longe, que o chamava: “Ó Zé!... Ó Zé!..” 
			Parecia-lha a voz da avó, que tinha sido enterrada havia uns quinze 
			dias. Lobisomem devia ser. Pela manhã ainda lá estava o rasto. A Tia 
			Zefa da Ribeira, por alturas do Natal, abriu a arca para tirar o 
			xaile de merino, 
			que usava nas festas, e encon-trou-o traçado com pequenos golpes, 
			como se fossem feitos com uma navalha. Diziam que uma mulher lhe 
			queria mal e pagou a uma bruxa que, de noite, lhe entrou em casa e 
			fez a diabrura no xaile. Uma bruxa juntou-se com o Diabo, para as 
			orgias da noite, no sobrado da Marianinha do Serrado, antes de 
			partirem para os malefícios nocturnos. Solteira, Maria-ninha queria 
			ser freira mas, sentindo-se mal na vida conventual, voltou para 
			casa. Morta a mãe viúva, ficou só. Como castigo, quase todas as 
			noites o Diabo e a bruxa a atormentavam com ruídos, passos e 
			gemidos. Afoita com candeia na mão subia a escada do sobrado e nada 
			via ou sentia. Mas, logo depois, continuavam os sinais diabólicos. 
			Começou a ema-grecer tanto que até o Sol já se via pelas orelhas. 
			Solicitou a alguns padres que fossem à sua casa rebentar com o diabo 
			e com a bruxa, mas não teve qualquer aceitação. Só passados anos, o
			benzilhão 
			do Meimão, com poderes fortes, lhe expulsou de casa e da ideia os 
			entes maléficos.  
			
			            
			Passadas as derradeiras curvas, nas irregularidades da encosta, 
			surgiu a Fazenda do Penedo. A Lua estava a chegar ao pino. Banhava a 
			terra com uma claridade agora mais aberta, mais limpa. A eira, as 
			medas do pão a malhar, os nagalhos na presa, a amolecerem, para 
			atarem os molhos da palha. O garrafão no centro do piso térreo da 
			corte. Com uma navalha de enxertar e mão certeira, Naifas golpeava 
			as chouriças em rodelas estreitas. Num repente, agita a mão, como 
			quem dá uma facada, e diz: 
			
			            
			- É o que eu faria às bruxas, se as enxergasse pela frente! 
			
			            
			Uma tripeça a servir de mesa. Os nacos de chouriça sobre um pedaço 
			de papel pardo, que já servira de invólucro a outros produtos. 
			Formando triângulo, os três da vida airada sentados em pequenos 
			bancos. O garrafão a passar de mão em mão ou de boca em boca, no 
			gorgolejar do vinho, como bocal de clarim ajustado aos beiços, que 
			lábios é palavra de ricos. Comeram e beberam até ao limite da 
			carraspana, terminando cada golada com um ah... de 
			satisfação. Esquecidos dos lobisomens, dos lobos, das bruxas, do 
			soventre com mamas, Tormentinha, Naifas e Nanho refastelaram-se na 
			palha que espalharam a um canto da corte. Mantas de ourelos serviam 
			de lençol. Com um ou outro arroto aliviavam os apertos do estômago. 
			Os ares sossegaram. As mentes adormeceram. 
			
			  
			
			            
			- Que as há… há! Que as há…há! 
			
			            
			Tormentinha e Naifas acordaram estremunhados. Tormentinha riscou um 
			palito e chegou-o à torcida do candeeiro de lata dependurado num 
			buraco da parede. Esfregaram os olhos e viram, de calças na mão, 
			meio enfiadas nas pernas, o Naifas que gritava, gesti-culando: 
			
			            
			- Que as há… há! Que as há… há! 
			
			            
			- Há o quê? – perguntou Nanho. 
			
			            
			- As bruxas!... As bruxas!... 
			
			            
			- Estás tonto ou ainda bêbedo!? Ou deste em palerma!? – gritou 
			Tormentinha. 
			
			            
			- Senti revoltas na barriga e fui-me abaixar, lá fora, de encosto a 
			uma pedra. Era manhã alta e ainda ia pensando nas bruxas. Abaixei-me 
			e, ao levantar os olhos, dei com um vulto de mulher, agachada, uns 
			poucos de metros à frente, junto do cotovelo do muro. Fixei bem a 
			vista e era uma mulher. Pareceu-me que tinha um pano pela cabeça e 
			não se mexia. Sentada sobre os calcanhares, os joelhos avultavam na 
			saia. Saltou-me logo à ideia que era uma bruxa, que terá vindo atrás 
			de nós para alguma maldade. Ainda estive parado um pouquinho, mas 
			logo corri para aqui – descreveu Naifas. 
			
			            
			- Estás a mangar connosco, ou quê? – perguntou Nanho. 
			
			            
			- Se não acreditais, vamos lá a ver! Até se me puseram arrepios na 
			espinha! – res-pondeu Naifas. 
			
			            
			- Medricas é o que tu és! – ajuntou Tormentinha. 
			
			            
			- Vamos lá! – afirmou Nanho. 
			
			            
			Os três formaram um triângulo para o ataque. À frente, em linha, 
			Tormentinha com uma forquilha empunhada, e Nanho com um sacho ao 
			alto, atrás e ao meio, Naifas com um fueiro, apontado para diante. 
			Cautelosamente, foram avançando passo a passo, olhos bem abertos, 
			que a claridade da Lua já era frouxa. Como num reconhecimento de 
			guerra, abai-xaram-se, quase rastejando. Em volta, apenas o silêncio 
			da madrugada. A um sinal de Naifas, pararam. Apenas os olhos 
			rebuscando o terreno. 
			
			            
			- Quem aí está, que venha! – afoitou-se Tormentinha, levantando-se. 
			
			            
			Uma mulher, tremelicando, ergue-se com os braços levantados, a saia 
			a rodar os tornozelos e uma cesta pendente do braço direito. 
			Levantando a cabeça, com a voz enta-ramelada, berrou: 
			
			            
			- Ó filhos da minha alma, sou gente de bem!... Que arremedo é o 
			vosso? 
			
			            
			Era a Tia Mónica da Torre, viúva, que andava de fazenda em fazenda a 
			comprar ovos para ganhar alguma coisita, para ajudar no sustento 
			dela e do filho surdo-mudo, que tinha em casa. Ia começar pelo 
			Penedo. Enganara-se nas horas. Não tinha relógio. Agacha-ra-se no 
			cotovelo do muro à espera da alvorada, para ir na busca da vida. 
			
			            
			Os três da vida airada, rindo que nem uns perdidos, foram para as 
			palhas aguardar o fim da madrugada. 
			
			            
			Diziam que todas as Mónicas eram bruxas! 
			
			  
			
			  
			
			  
			
			  
			
			  
			
			  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
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