Allan R. Banks (USA) - Hanna

Alvares de Azevedo

Do  possível erro tipográfico no poema

Lembrança de morrer

 

Segundo o poeta Antônio Carlos Secchin, para mim o maior estudioso da obra de Álvares de Azevedo, há um erro tipográfico no poema Lembrança de morrer. A seguir, o artigo que publicou na Folha de de São Paulo, em 10.4.2011.

 

LITERATURA - Caderno Ilustríssima

Folha de São Paulo

(10.4.2011)

Demências tipográficas

Surrealismo na poesia de Álvares de Azevedo

RESUMO Erros tipográficos constituem saborosas anedotas e até mesmo fetiches de bibliófilos, que pagam caro por exemplares tornados raros pelas gralhas ou correções feitas à mão. Um possível erro em um poema de Álvares de Azevedo transcrito por seu primo gerou uma imagem estranha a sua poética, cuja correção se propõe aqui.

ANTONIO CARLOS SECCHIN

O Arcadismo no Brasil iniciou-se com as "Obras" (1768), de Cláudio Manuel da Costa, certo? Errado. Basta verificar a folha de rosto do volume: devido a um erro tipográfico, o livro denomina-se "Orbas". Portanto, a poesia brasileira do século 18 já nasceu nomeada com defeito de fábrica. É incrível como erros dessa monta puderam passar despercebidos a autores, tipógrafos e revisores, quando, uma vez dados a lume, eles se tornam, exatamente, aquilo que primeiro se enxerga num livro. Existe, para combatê-los, o recurso da errata, repertório dos cochilos corrigidos à última hora: antes de o volume chegar à mão do leitor, mas já depois de haver sido impresso. Uma alternativa intermediária entre manter o lapso ou redimi-lo com a errata consiste na intervenção manuscrita e direta do autor (ou de colaboradores) nas letras ou palavras errôneas, no próprio miolo do livro. Entre nós, o caso mais famoso, sem dúvida, remonta à edição das "Poesias Completas" (1902), de Machado de Assis, em cuja "Advertência" a palavra "cegara" teve o "e" transformado em "a". Pressurosas mãos trataram de remover, em quase todos os exemplares da tiragem, a inoportuna letra adventícia e de reconstituir a forma original. Convenhamos que tal atitude revelou-se mais adequada do que estampar uma constrangedora errata, sobretudo considerando-se os, digamos, pudibundos padrões morais da época.

CONTRADIÇÃO Quase contemporânea, uma outra errata revelava antes a imperícia do narrador do que propriamente um deslize linguístico. Quando publicou "Flor de Sangue" (1897), Valentim Magalhães percebeu, tarde demais, que a morte de um personagem havia sido atribuída a causas diferentes, em dois momentos da narrativa. Ocorreu-lhe, então, a ideia de eliminar a contradição por meio da errata, que, afinal, acabou tornando mais notório o grosseiro engano: "À página 285, quarta linha, em vez de 'estourar os miolos', leia-se cortar o pescoço". A ironia é que hoje, no mercado dos livros raros, a errata, de tão inopinada, elevou a cotação do próprio romance, pois foi graças a ela que "Flor de Sangue" alcançou (se é que alcançou) alguma sobrevida. Um número excessivo de erros sugere displicência ou, pior ainda, ignorância gramatical. O escritor que desejasse restringir na errata o montante dos enganos optava, em geral, por advertir que lapsos evidentes seriam facilmente corrigidos pela "inteligência do leitor"; seguiam-se, então, apenas as palavras, truncadas ou trocadas, passíveis de comprometer a compreensão do texto. Quanto mais arrevesado o vocabulário do autor, maiores as chances de falha na passagem do manuscrito à impressão. Daí, talvez, que, impotente para sanar as numerosas gralhas perpetradas na impressão de seu romance "Mocidade Morta" (1899), Gonzaga Duque, em dedicatória a Mário Pederneiras, tenha definido o volume como "monstro tipográfico".

DEMÊNCIA Bem problemático no que tange à observância da vontade autoral é o legado de Álvares de Azevedo (1831-52). De nossos principais poetas românticos, foi o único que morreu sem ter livro publicado. Assim, sua obra literária, póstuma, foi inicialmente editada em dois volumes (1853 e 1855) pelo primo Domingos Jaci Monteiro, responsável pela decifração da intrincada caligrafia do poeta. A quase totalidade dos manuscritos perdeu-se -ao que tudo indica, irreversivelmente. A partir de então, proliferaram as reedições, sem que se atentasse para um provável erro, localizado no quarto verso de um de seus mais famosos poemas, "Lembrança de Morrer". É curioso que a nenhum dos exegetas ou antologistas de Álvares tenha causado estranheza o verso "Em pálpebra demente". Sabemos que a junção substantivo/adjetivo, em nosso Ultrarromantismo, pautou-se por um escasso teor de inventividade: a virgem era pura, a lua era pálida, a saudade, infinda, os lábios, ardentes e o céu, azul ou brilhante. Como, em meio a tão previsíveis consórcios lexicais, entender uma pálpebra enlouquecida? Mediante certa imaginação, poder-se-ia conjecturar um processo metonímico: demente não seria a pálpebra, mas a pessoa, o todo de que ela faz parte. Impasse de tal interpretação: ao narrar premonitoriamente as circunstâncias de seu velório e enterro (daí a "Lembrança de Morrer"), o poeta, no decorrer do texto, atribui apenas a si mesmo o campo semântico da insensatez -logo, o adjetivo "demente" se revela inapropriado para qualificar outrem, ao contrário do que o verso 4 está afirmando. Outro pormenor: na "Lira dos Vinte Anos", sempre que se utiliza desse vocábulo, Álvares o faz em combinações rotineiras, ao lado de substantivos com teor abstrato ou etéreo: "amor", "alma", "sonho" e "anjo" demente(s). Mas "pálpebra"? Não seria razoável, então, aventar a hipótese de um descuido na transcrição do manuscrito? Já dissemos que Álvares, bem cedo falecido, não pôde chancelar a edição do livro. Monteiro, o primeiro transcritor, alçou-se assim, no mesmo passo, ao papel de leitor-intérprete da obra, estabelecendo a lição textual até hoje soberana, inclusive no que toca a trechos eventualmente mais duvidosos do original.

TREMOR Desviando-nos, aqui, de tal lição, por que não considerarmos a possibilidade de que, em vez de uma enigmática demência, a pálpebra estivesse acometida, apenas, de um reles tremor? "Não derramem por mim nem uma lágrima/ Em pálpebra demente": onde se lê "demente", leia-se "tremente". Febres, desmaios, tremores e palpitações são hóspedes costumeiros dos sintomas líricos de Azevedo. A expressão "pálpebra tremente" foi utilizada por mais de um poeta do período. Em "Lembrança de Morrer", é lícito supor que, frente à morte, o choro convulso de amigos desencadeasse um involuntário descontrole fisiológico, responsável pelo tremor, sem que as faculdades mentais de uma pálpebra estivessem em questão. Na ausência do manuscrito, nunca chegaremos a uma verdade inconteste, nesse e em casos semelhantes. Isso não impede que se dê especial atenção a erros & erratas, para que as obras de nossos autores sejam reeditadas o menos imperfeitamente possível. Trabalhando com textos criteriosos, o pesquisador e o professor não mais terão de gastar em vão suas pestanas e pálpebras docentes.

"A junção substantivo/adjetivo, em nosso Ultrarromantismo, pautou-se por um escasso teor de inventividade: a virgem era pura, a lua era pálida, a saudade, infinda, os lábios, ardentes e o céu, azul ou brilhante"

"Um número excessivo de erros sugere displicência ou, pior ainda, ignorância gramatical (...) Quanto mais arrevesado o vocabulário do autor, maiores as chances de falha na passagem do manuscrito à impressão"


 

A seguir, o poema em sua versão "errada" e, do lado direito, na versão "corrigida". A minha opinião é que o "demente" fica melhor que "tremente". Há, parece-me, um contraponto, no texto, entre o sofrimento da mãe (e todas as mães são "idosas", "dementes") e a juventude da musa. Três adjetivos, dentre outros, caberiam à pálpebra: demente, tremente e contente. Demente, da mãe, em oposto à "contente", da jovem, parece-me o mais adequado. Tremente? Acho que não. Contente? Nem pensar. Bom, a palavra com sua Exª, o Leitor!

 


 

Lembrança de morrer - versão tipográfica

 

No more! o never more!
SHELLEY

 

Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.
 


E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
 


Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro
— Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
 


Como o desterro de minh'alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
 


Só levo uma saudade — é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!
 


De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos — bem poucos — e que não zombavam
Quando, em noite de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.
 


Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
 


Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
 


Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo....
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
 


Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nelas
— Foi poeta — sonhou — e amou na vida.—
 


Sombras do vale, noites da montanha
Que minh'alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!
 


Mas quando preludia ave d'aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua prantear-me a lousa!

  Lembrança de morrer - versão corrigida por Secchin

 

No more! o never more!
SHELLEY

 

Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra tremente.
 


E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
 


Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro
— Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
 


Como o desterro de minh'alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
 


Só levo uma saudade — é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!
 


De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos — bem poucos — e que não zombavam
Quando, em noite de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.
 


Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
 


Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
 


Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo....
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
 


Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nelas
— Foi poeta — sonhou — e amou na vida.—
 


Sombras do vale, noites da montanha
Que minh'alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!
 


Mas quando preludia ave d'aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua prantear-me a lousa!

     

 

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10.4.2011