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Aleilton Fonseca




A poesia das imagens telúricas
de Iosito Aguiar


 

“... quem vive em Paramirim
Por algum tempo
Jamais consegue deixá-lo.”

 

O sentimento da terra natal e a consciência de pertencer a um povo, a uma cultura e a uma paisagem engendram uma das mais notáveis marcas de nossa poesia e a enriquecem com uma interessante vertente telúrica. Podemos sentir e apreciar o discurso amoroso de um poeta por sua terra em vários poemas que Carlos Drummond de Andrade consagrou a Itabira. Antes longínqua e remota, a pequena cidade mineira passou a ser um lugar de referência para os leitores da poesia de todos os tempos, uma vez que o poeta a inseriu de modo indelével em nossa geografia lírica. Mário de Andrade deu grande relevo à metrópole paulistana na poesia moderna, ao cantar seu corpo e sua alma, em toda a sua trajetória, de Paulicéia Desvairada à Lira Paulistana. Manuel Bandeira reescreveu as imagens da Recife de seu tempo em versos clássicos que jamais esmaecerão em nossa memória cultural.

De fato, pode-se afirmar que há na poesia brasileira uma tradição do canto à terra natal, como uma característica que se pode denominar de telurismo poético, no qual se sente o brotar incessante do sentimento do lugar nas dobras semânticas dos versos. O lugar, ou seja, o locus de onde emana a voz, faz parte da constituição do discurso, sobretudo daquele que registra ou resgata as vivências do ser humano entre seus semelhantes, seus coetâneos, seus companheiros de existência. Quando surgimos na vida coexistimos não só com pessoas e fatos, mas também com cenários, objetos, animais, árvores, rios, caminhos, circunstâncias: e tudo isso faz parte do nosso ser e estar no mundo. Ao longo do tempo tudo se modifica: as pessoas, as paisagens, os fatos não são mais aqueles com os quais convivemos no passado. Mas quase tudo fica inscrito nas estantes da memória, onde as vivências, os saberes e as experiências se acumulam como um vasto palimpsesto. Nas camadas desse pergaminho, nos envolvemos e nos revolvemos: somos um e os vários que já fomos em cada momento. Somos o resultado do que vivemos e nossa voz é a expressão daquilo que vivenciamos como aprendizagem, na recusa e na aceitação do mundo. O passado, com sua gama de conteúdos e registros, constitui a nossa história — individual, naquilo que sentimos como experiência única e particular, e coletiva, naquilo que compartilhamos com os demais. Por isso as lembranças, por isso a rememoração: os ciclos da memória. Eis aí o espaço de reconstruções e resgates de imagens do vivido, do que está perdido em Cronos e que se pode recuperar no espaço da poiesis. A poesia é, ainda melhor do que a história, o discurso mais profundo de recuperação dos processos afetivos, das vivências significativas, das epifanias acumuladas — porque, com sua força expressiva, com a chancela da metáfora, pode constituir o roteiro em que se inscrevem os traços de nossa construção e de nossa trajetória como um ser, ao mesmo tempo, único e plural. Este é um compromisso dos poetas:
 

Longe do Paramirim que tanto amamos
Fizemos uma aliança interior
Com nossos ancestrais

E formamos uma identidade mútua
Que nos ajudam a suportar

O “Stress” da ausência
E preservar Paramirim em nós

Tememos que o tempo

Deturpe nossas lembranças

 

O livro In Illo Tempore - Odes Paramirinhenses, de Iosito Aguiar (1941-2001) são precisamente esse palimpsesto poético. O poeta baiano nos mostra que essa veia pulsa na poesia com vigor, ao enfeixar suas odes numa seqüência que privilegia uma visão tridimensional da experiência humana: a histórica, a cultural e a mítica. Quanto à primeira, o poeta declara que: “A consciência da história atordoa”, pois o seu saber está além da compreensão imediata. Ele é o narrador experiente, conforme define o filósofo Walter Benjamim, uma vez que viveu os fatos e pode narrá-los como ensino e recomendação:
 

Por isso conheço os mistérios da noite
Que se estendem sobre nosso chão
Possuo todos os fatos de nossa história
Conheço sua verdade

 

A dicção de cronista se caracteriza a partir de um bordão enunciativo que já está plasmado no título “In Illo Tempore” e se atualiza na abertura de cada ode, em que a essa expressão capitular se segue o verso “Como no País dos Mourões”. Esse procedimento estabelece a cadência narrativa e lhe confere uma dimensão épica, pela expressão representativa dos feitos de um povo, num contexto cultural aberto e sem apelos etnocêntricos ou xenófobos. A cultura local é retomada como alegoria de resgate, através da demonstração de seu valor vivencial. Nesse curso, reencenam-se festas, rituais, comportamentos, costumes, crenças, elementos que esteiam o solo cultural paramirinhense, cujos desdobramentos se projetam na relação dialética do passado (fundação) com o presente (permanência versus desaparecimento). De fato, há um corpus cultural ativo que se atualiza nos gestos, atitudes e rituais, ao lado de um corpus extinto, cujos elementos passaram para o domínio da memória. Esse repertório só permanece se se torna herança, através do repasse oral, da narração exemplar ou da transfiguração poética. Os recortes temporais constituídos nos relatos poéticos e reencenados no universo verbal constituem o registro. Resta saber se aquilo que se modifica no corpo de uma cultura é resultado da vivência de seus sujeitos, como desdobramento diferenciado de sua própria evolução em contato com as realidades exteriores ou se resultam de uma intervenção exógena que, na verdade, promove uma aculturação da comunidade impondo-lhe trocas abruptas de padrões e valores de fora para dentro por força de inculcações e manipulações, como foi a catequese dos índios no passado. No primeiro caso, trata-se de um ganho, de modo que será negativo e conservador o discurso que se colocar contra aquele processo legítimo de mudança. No segundo caso, trata-se de um esbulho cultural, de modo que será positivo e restaurador o discurso que combate as suas manobras perversas. As Odes Paramirinhenses trilham positivamente essa dupla direção, uma vez que recuperam processos e vivências culturais que se historicizaram e existem enquanto memória poética e, também, constituem um discurso de restauração de valores e de resistência cultural, como se nota nos versos seguintes:
 

Um pedido à minha gente:
Preservem a poesia
Para que não se perca
A beleza de suas almas

 

O poeta também se insere como parte do imaginário, quando declara : “Sou parte do mito/ Pois trago todos os meus ancestrais em mim”. No plano mítico – uma dimensão importante da cultura —, as Odes recuperam a efetividade das crenças, dos entes imaginários, dos elementos mágicos que compõem o universo da comunidade. Esses elementos são inseridos no cotidiano como experiência de vida – demonstráveis ou não, em que os sujeitos lhes conferem o estatuto de realidade. Ou seja, crê-se na existência da entidade mítica, a exemplo da mula-sem-cabeça, e ela aparece como personagem real nos relatos. Quem não acredita na sua existência concreta terá de considerá-la um ser simbólico – e assim, nessa categoria, também uma realidade, cuja efetividade se manifesta na ficção, na lenda, no poema. Trata-se de duas formas diferentes de vivenciar o mesmo fenômeno, embora em dimensões distintas. É assim que Iosito Aguiar apresenta essa rica faceta da cultura local, no seu propósito de alegorizar as vivências de uma comunidade para daí lhe conferir um valor em si mesma, sem submetê-la a padrões de julgamento etnocêntricos ou da chamada cultura oficial. Trabalhando fundamentalmente com essa três dimensões que se multiplicam para dar corpo a uma totalidade, o poeta apresenta sua Paramirim poético-alegórica em posição dialógica com sujeitos culturais diversos. Da qualidade e da abrangência da percepção dos sujeitos leitores dependerá o grau de diálogo possível. Essas Odes ensinam, propõem, reivindicam, inscrevem, avançam — em função do alargamento das fronteiras. O leitor que se negar ao diálogo e rechaçá-las como algo estranho, regionalizante e exótico estará dominado pela limitação do olhar que não alcança as pluralidades. Ao contrário, diante de leitores sensíveis, dialógicos e, por que não dizer, sensatos, as Odes ganham um relevo e uma importância ímpares como registro, resgate, poesia, ficção, estudo, alegoria, representação — enfim, quantum de cultura que enriquece os nossos cabedais como artífices e beneficiários de um acervo multicultural que nos torna, enquanto contingente de seres humanos, ligados pela delimitação territorial e pela língua comum, um povo chamado Brasil. E o poeta assume a sua condição comunitária, ao afirmar:
 

Minha gente é minha força:
É por ela que não me esqueço
Do ofício de amar

 

As Odes Paramirinhenses têm uma seqüência que lhes dá unidade, como um texto que pode ser denominado de crônica histórico-mitico-poética de uma comunidade, num determinado lapso de tempo que reporta à infância do poeta. Através delas, Iosito Aguiar guia o leitor por um leito de saberes e viveres que, em tendo sido experimentados por ele e por vários outros personagens reais, encontram na sua voz um meio eficaz de continuar existindo, através do espírito e da letra poética. O que existiu e aconteceu no mundo só pode ter permanência através do registro histórico ou da representação artística. In Illo Tempore são as duas coisas amalgamadas: documento/depoimento e representação alegórica, duas faces indissociáveis de uma poesia que transforma a realidade vivida em roteiro estético de vivências redimensionadas pela sensibilidade e pela imaginação.

Através dessas Odes, Paramirim passa a ser um lugar na poesia brasileira. A literatura ganha abrangência pelo mapeamento de lugares ainda não integrados à ampla geografia literária do país. A pequena cidade baiana às faldas da Chapada Diamantina se coloca diante do olhar mais amplo, seja pelo resgate de sua memória mitopoética, seja pelo registro de aspectos de sua trajetória histórica, como lugar de construção de parte de nossa consciência como um povo multifacetado nas crenças, no imaginário, na linguagem, na sensibilidade, na imaginação. Há muitas comunidades que, em seus estágios diferenciados de vivências e visão de mundo, ainda não se fizeram ouvir e registrar porque talvez as vozes de seus poetas não lograram vencer as distâncias e as muralhas ideológicas. Mas a cultura brasileira continua em processo de constituição e expansão, aumentando a sua visibilidade, apesar da homogeneização redutora que lhe impõe a chamada indústria cultural de massa. Relativamente a salvo desse processo, Paramirim ganha, na voz de seu poeta — fisicamente “desterrado”, mas espiritualmente presente — o seu registro na poesia e assim se apresenta aos mapeadores de nossas expressões culturais como um achado, um brilhante lapidado. Este compromisso com a história de seu povo é reafirmado nos versos finais:
 

Essas são histórias inesquecíveis
Da nossa Chapada Diamantina
Das quais não podemos não devemos
E não queremos esquecer
São coisas dos velhos tempos
“In illo tempore”

 

Essas Odes Paramirinheneses de Iosito Aguiar sublinham, pelo seu conteúdo e pela sua linguagem, uma verdade cada vez mais incontestável. O nosso corpo literário é muito mais abrangente do que estabelecem os registros oficiais. Ele se constitui em todos os lugares, dos mais centrais aos mais remotos, onde pulsam de modo peculiar a língua portuguesa e o imaginário brasileiro. Sem hierarquias preestabelecidas e gradações de valor — aliás, quase sempre etnocêntricas —, mas de maneira complementar, como mosaico de linguagens ou calidoscópio multicultural, as diversas vozes das culturas que se enraízam em nosso solo e se expressam em nossa língua compõem uma totalidade — que ainda precisamos conhecer melhor —, a literatura brasileira.

 



Iosito Aguiar
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