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Astier Basílio


 

Antônio Carlos Secchin, entre Édipo e a Esfinge

 

Ainda é possível ouvir ou ler a expressão “todo crítico é um artista frustrado”. Os novos conceitos de formação crítica, pelo menos em literatura, nos últimos tempos, têm demonstrado o equívoco desta afirmação. Sobretudo, mais especificamente em poesia, os exemplos são abundantes, como T.S Eliot, Ezra Pound, Haroldo de Campos, Affonso Romano de Sant’Ana, e bem próximo de nós, Hildeberto Barbosa Filho e Sérgio de Castro Pinto, poetas-críticos, críticos-poetas, de excelente qualidade. Antonio Carlos Secchin, um dos mais atentos leitores de poesia do Brasil (organizou recentemente as obras reunidas de Cecília Meireles), é uma realidade feliz entre o exercício analítico da crítica com o ato de criação poética. Seu mais recente trabalho, “Todos os Ventos” (Nova Fronteira, 2002, 156 pp), prêmio Olavo Bilac de poesia 2003, da Academia Brasileira de Letras, é prova real de que o aparelhamento teórico e o arguto olhar do crítico podem caminhar lado a lado com os abismos da poesia.

A meu ver, o título do livro, “todos os ventos” já é uma dica, uma senha de leitura. Os seus traços estilísticos são auto- reflexivos e metalingüísticos por excelência e a opção estética do autor é variada e bem medida: do soneto ao poema-piada, tudo remetendo plataforma de confluência, de revisitação paródica, instaurada pelo impasse da pós-modernidade que presenciamos nos dias de hoje. Ou como disse Alfredo Bosi no texto de orelhas: “Uma situação cultural e existencial pós-moderna, sem dúvida”.

Secchin não quer seguir todos os ventos, que apontam para todos os lugares e para lugar nenhum, antes utiliza-os ao seu ideal artístico, traçando seu roteiro a partir das escolas e autores que prefere, num mosaico sígnico em que, embora disperso em várias paisagens e vozes, uma só nota suspende o fio criativo do todo: que é a própria linguagem. A série de poemas dedicados a figuras conhecidas da literatura nacional, como Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, nos quais avulta a paixão do leitor. O também apaixonado bibliófilo compare na coletânea com o belíssimo soneto “Com todo amor...”, em que o texto se erige a partir de uma dedicatória de amor em um livro antigo. Aqui o ‘objeto livro’ ganha todo a sua dimensão de fantasia e abertura entre leitor e autor; metáfora plena, portanto, de toda linha poética de “Todos os Ventos”, deste autor que acima de tudo é um leitor.

A par das alquimias intertextuais, ponto seminal da obra, do ponto de vista de conteúdo, a fina e discreta ironia com que Secchin trabalha alguns temas é algo próprio de quem conhece bem todos os labirintos da linguagem. É o que se vê no poema “Colóquio”, em que se narra as teses da “Academia do Poeta Infeliz”, metáfora de todas as idiossincrasias da crítica literária e da impossibilidade de estabelecimento de valoramento estético definitivo. Outro aspecto recorrente na obra é a noção implacável do perdido, da brevidade das coisas; o tom de elegia com que isto acontece propicia momentos de extrema beleza, como no soneto “De chumbo eram somente dez soldados”: “Aconchego de montanhas matutinas/ com degraus desenhados pelo vento,/ mas na lisa planície da alegria/ corre o rio feroz do esquecimento.” Ou no tocante “Estou Ali...” “Estou ali, quem sabe eu seja apenas/ a foto de um garoto que morreu”

Do ponto de vista estilístico, temos um poeta, como já antevemos anteriormente, que sabe aproveitar toda herança da lírica ocidental. Sabe ser narrativo, como em “Concorde com Freud” e “O banquete” e prosaico, aliás, sabe ser poético na prosa, pois, os seus “aforismos”, retirados de seus ensaios, ratificam nossa opinião de que as duas instâncias da linguagem, a crítica e a poética, não fincam fronteiras definitivas. Dono de um ritmo cantante, fluido e agradável, capaz de versos como: “Indiferente à sorte ou ao inferno/ não tenho tempo para ser eterno”, sabe diversificar-se sendo um minimalista preciso, capaz de saborosas sínteses, como um encurtador de infinitos, quando diz: “água, pacto de barcas/ na manhã hereditária.//Baliza do azul, suor/ do silêncio nos cascos,//Horizontes”. Secchin é ainda dono de uma imagética contida e poderosa, que nos arrepia com a força inusitada de suas invenções, em versos como “o tambor cardíaco dos trovões” e “O ar ancora o vazio”, por exemplo.

Em “Todos os Ventos”, temos de forma selada e definitiva, a declaração e amor de um poeta pela palavra, o encontro carnal e incestuoso com a palavra, daquele que sabe ser Édipo e esfinge ao mesmo tempo.
 

Secchin

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04.10.2006