Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Carlos D'Alge


 

A solidão do corpo

 

(...) um travão inesperado e o corpo rodopiou sendo atirado à distância. Estava perto do mar e sentia ainda a brisa que afagava o seu ventre. A dor começava a invadir os membros e a nuca, depois de uma sensação de leveza, os olhos buscando o espaço e a vida que se extinguia. Uma estranha lassidão tomava posse do seu ser. Percebeu, de relance, a sua situação. Estava só, não podia articular uma palavra, mas seu pensamento ia longe e recolhia imagens da sua infância, da sua juventude e da sua vida adulta.
 

Nesse momento, fechou a porta da sala, apagou as luzes, desligou o ar condicionado. Os mesmos hábitos de todos os dias. Olhou para o quadro onde escrevera algumas frases. Pensou em apagá-las mas a preguiça venceu-o e deixou-as assim mesmo. Dirigindo o carro, pelo mesmo itinerário, mal ouvia a música do auto-rádio, sempre desatento às coisas que o cercavam. Brincava com o seu pensamento e misturava lembranças de viagens, da família e de pequenos acontecimentos.
 

(...) pôde distinguir algumas imagens de sua breve vida. Não podia selecioná-las, porque a mente já não ajudava. As imagens começavam a ficar baças, tentou recompô-las, talvez instântaneos da família, de lugares e de pessoas. De que servira tanta alegria, tanta espontaneidade, tanto à vontade, que a alguns incomodava, no seu afã de conquistar o mundo? Teria sido feliz aquela mulher, cujo corpo na estrada, à beira-mar, se entregava à dor e à solidão?
 

Leu a notícia no café da manhã. O jornal dobrado junto da bandeja de que se servia habitualmente. A princípio confundiu a informação, depois veio o esclarecimento. Há muito que não sabia dela, se era feliz ou infeliz. Em tempos passados, chegara a compreender seus gostos e suas contradições. Talvez a aceitasse assim mesmo e não conseguira distinguir o que nela o havia atraído, se a sua juventude, se a sua desenvoltura, se a sua ambição.
 

(...) ela interroga-se e interroga os que passaram pela sua vida. O que quiseram de mim? A minha liberdade? A minha submissão? Por que não me deixaram ser feliz? As imagens afastaram-se do espírito, cujo corpo permanecia na estrada. Algumas lembranças da escola e do trabalho. Das crianças e dos amigos. Queria uma vez mais, ainda que fosse a última, sentir o sol, o mar, a pele queimada, a música, o riso.
 

Retornou à sala. No quadro, as frases continuavam intactas. Apagou-as, não queria pensar agora em nenhuma teoria. Lembrou-se dos versos de John Donne. Não somos uma ilha, somos parte de um continente. Cada um de nós que morre é uma parte de nós que se vai. Uma insustentável tristeza começou a tomar conta do seu ser. Tinha pena dos que morriam jovens. Uma imensa pena pela dor que havia no mundo e pelo desespero das pessoas.
 

(...) no silêncio do asfalto, uma mulher ainda jovem despedia-se do seu corpo. Nenhuma dor, uma infinita paz. Os seus olhos, que se confundiam com a laguna, começaram a se fechar, como se mão invisível os tivesse tocado.
 

Valeria a pena recordar o que acontecera? Não iria causar mais mágoas? Um dia, quem sabe, compreenderiam melhor. A vida é tão breve, como um sopro de ar num dia quente de verão. Aquele primeiro toque de mãos... Não, não valeria a pena retirar do passado lembranças que deveriam ficar guardadas. Para sempre. Mesmo que o novo verão trouxesse tantas imagens de volta.
 

 

 

 

 

13.07.2005