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Soares Feitosa

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Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!

Nazareno, meu filho mais velho, é pregador espírita. Uma amiga dele, imaginando que seria um livro devoto, deu-lhe o Evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago. Ele mo mostrou antes de ler. Foi assim que o Evangelho me chegou. 

De Saramago, lera eu apenas um conto, publicado pela revista Veja, num fim de ano, nem lembro qual. Ah, lembrei! É este aqui: O conto da ilha desconhecida. Saramago não era Nobel ainda. Seria ridículo dizer que profetizei algo, àquele conto. Se profetizei, uma pena, não escrevi. O certo era ter escrito e publicado. Teria rica patente agora: profeta. Mas não sou espírita, por favor. Entanto, sou dado a "profetizar", de ouvido, no vento, só isto. 

Por isto mesmo, não me surpreendi, ainda que com base só naquele conto, quando soube do prêmio a Saramago. Contudo, ainda que premiado-mor, não o lera a mais do que aquele conto, belíssimo conto, repito. Pois voltas do destino, recente, me chegou a chance, via bons "espíritos". Ah, meu Deus!, no dia em que eles, meu filho também, souberem que o Evangelho é pura blasfêmia... 

O fato é que li o Evangelho na diagonal. Em seguida, li-o do começo para o fim, caneta em punho, riscando, garatujando, que é assim que gosto de ler. E já o reli umas 17 vezes. Está ali, debaixo da rede, o livro, todo riscado. Entre um telefonema e outro, mais um balanço para lá e pra cá, o pé, de impulso, na parede ou nas costelas da cama, comigo dentro, a rede, dou-lhe uma leiturada bem avulsa. Momentos há em que nem sei onde anda a caneta, mas lhe prego, de olho na televisão e nos sons da casa, um novo rabisco. 

É assim mesmo: sob a rede o Evangelho, mais um monte de outros livros, mal me cabem as chinelas no chão coalhado de tantos livros, aflito a pisar em livros, quando, madrugada, ainda no escuro, por conta de uma próstata que já me aflige, levanto-me aos urinóis. Umas cinco vezes. Ah, velhice! [Aqui para nós, no início de 2004, ainda chego lá, meus primeiros sessenta. E muito(s) mais, mas não tanto. Digamos, um terço está bom, não muito mais].

Então, os poetas jovens vieram aqui em casa. São meus colegas de faculdade — Diego Vinhas, Rafael do Carmo, Rodrigo Magalhães e Rodrigo Marques. Se são bons? Não, não são dos bons. Excelentes, isto sim! 

Pois bem, chegaram. Era domingo, de manhã cedo. E só saíram, depois de expulsos, quase ao anoitecer.  Almoçaram um belo baião-de-dois e tomaram refresco de frutas da terra. Bebi umas quatro cervejas, eu, que nunca deixo adolescentes beber em minha presença. É de lei: sovinei-lhes os álcoois. E badalamos poesia, estética e poética até dizer chega. A vida alheia também? Evidentemente! De professores nossos a poetas do trecho. Ardei, orelhas! É de lei que ardam.

Rodrigo Marques trazia debaixo do braço o Burrinho Pedrês, de Guimarães Rosa. Pediu para eu ler. A esmo, disse. Li onde abri. Era uma passagem de um moleque chorão, um belo texto. Botei ritmo, na clave, como se fora (também) o autor. Acho que, de leitor, ali também era: autor. Disse-lhes que aquilo tudo estava perfeitamente metrificado. 

— Em decassílabos?

Disse-lhes que o ritmo verdadeiro não tem muito a ver com decassílabos. Comentaram o ensaio de Augusto de Campos sobre a poética de Os Sertões, de Euclides da Cunha, com destaque à contagem "deca" que ele faz. 

Falei-lhes de outras "contagens", um outro ritmo, como se fora, digamos, um prego batido, ponta virada. A palavra justa, disse.  Rodrigo Magalhães justificou que conhecia o texto metrificado, do Jabor. Garantiu que seria da estirpe. 

Veio naturalmente à tona a arte de ler. Isto de "ler", disse-lhes, é assunto vasto. Repito agora: espero ter tempo para um dia contar. Certa feita, um poeta foi lá em casa, Bahia, e eu abri os poemas dele, na tela, coisa nova então, era a Internet. Li-lhos no "trom". Não, não foi só no "tom", foi também no "trom". Ele espantou-se e disse que não os sabia tão belos. Sim, ler, parece, é quase tão difícil, senão mais, do que... escrever. Minha saudade do velho Maggiori. São dele os textos lidos. Também dele a admiração a lê-los, eu, leitor. Que Deus o tenha em Sua glória. Também um dia, no trom e tom, li o Palavras, de Dimas Macedo para ele ver e escutar. Indaguem-no, por favor. Nunca havido lido antes, dele, nada.

Voltemos aos jovens. Falamos então do Saramago. Do Evangelho. Os quatro já eram grandes evangelhistas, ou melhor, juramentados saramaguistas. Haviam lido tudo, ou quase tudo.

Disse-lhes que estava encantado com o Evangelho. Não como história, nem como romance apenas, mas de pura poesia. Garanti-lhes que seria capaz de pinçar-lhe 50 poemas, ou mais. Bati na barriga do livro como quem bate numa bolsa cheia de dinheiros, ou no bolso, às apostas, zombando:

— Garanto cinquenta!

— Cinquenta, poeta?! 

Riram, de pura audácia, na minha cara. Falei-lhes que o Evangelho, se posto em texto "normal", era apenas uma grande blasfêmia e nada mais. Confirmaram-lhe o grande valor poético, mas um deles, acho que o Rafael do Carmo, persignou-se quando comentamos que o Pastor, alias, o Demônio, no Evangelho, era melhor do que Deus. Gritei uma cerveja para mim e sanduíche para eles. Olharam enviesados para a cerveja. Fiz que não vi e mantive o interdito. Disse-lhes, por conta do Pastor, que qualquer doidice se dita poeticamente, tão só pelo poético, passará a ter beleza e nexo, ainda que pura doidice. Mesmo que só-blasfêmia, de pura blasfêmia, como no Evangelho do nosso Nobel. 

Não!, não me deixaram tirar o cochilo naquela tarde. Exigiram sorvete. Aliás, antes que exigissem, foi-lhes servido sorvete de maracujá com biscoitos quebrados, dentro da taça. Aqui em casa sempre tem sorvete de maracujá ou de acerola. Os biscoitos a gente os quebra na hora, por cima do sorvete. Minha mulher também é craque no sorvete de manga. Tenho a receita do sorvete de frutas de palmatória, o cacto, ditas figos da Índia, extremamente delicioso, mas difíceis de encontrar. No meu tempo de Bahia, os comprava, caríssimos, no Perini. Disse-lhes que fossem embora. Mas fui com eles até o portão, aliás, fui-lhes até a calçada. Mais não fui porque não me convidaram. Poucas festas se fizeram tão belas. 

Garantiram que voltarão. Pedirei licença, se vierem, para tirar meu cochilo, na hora justa, mas lhes oferecerei a varanda com almofadas para se espreguiçarem do almoço. São jovens, eles. As almofadas e a tv lhes bastam. Sou velho, eu. Coisa pouca, se com pimenta, do almoço, com cerveja e caldo, já peço rede. Com dois lençóis, um da cabeça, outro do bucho. Sim, à sesta, despejo-lhe dentro o corpo — rede. E o pé, nas costelas da cama ou na lateral do prédio, parede com marca de pé, um balanço inicial, e, ligeiro, durmo, bem ligeiro. Mas, por favor, não me desliguem a tv nem apaguem a luz.

E os poemas de Diego Vinhas, li-os — lemo-los — todos. Uma observação daqui, mínima, outra dali. Muito bons, restamos salvos, inteiros. Os poemas também, salvos, mas havia calor. Foram-se. Ufa! 

E, na madrugada — eu lhes havia dito que botaria em estrofes os passarinhos de Saramago —, levantei-me por cima dos livros, com o livro debaixo do braço. Onde os passarinhos? Lembrava-me que havia riscado de lado o lugar onde os lera, em voo de duas voltas, chilreando. Livros meus são riscados de lado, setados, garatujados, quebrados de orelha. Não sou bibliófilo. Gosto de livros para consumi-los. Para perdê-los emprestados. Um dia me ofendi ao amigo que me tentava devolver um. Mas isto é assunto para outro assunto.

Bom, antes de levar os passarinhos avante, melhor mostrar o texto de Saramago donde os pincei. Na íntegra, as páginas 398 e 399 — 31ª edição da Companhia das Letras, do Evangelho:

 

que essas sois vós, se por vosso mal, ao amoroso abraço de Deus quereis escapar-vos. Passou um murmúrio pela multidão, rodando sobre as cabeças como aquelas pequenas ondas que no mar outra vez se vêem, em verdade, muitos dos assistentes tinham ouvido valar de milagres obrados em diversas partes por aquele que além está, alguns havido sido, mesmo testemunhas e beneficiários deles. Eu comi daquele pão e daquele peixe, dizia um, Eu bebi daquele vinho, dizia outro, Eu era vizinho daquela adúltera, dizia um terceiro, mas entre tais circunstantes, por muito transcendentes ter sido ou o parecessem, e esse problema supremo prodígio de ser Filho de Deus e, portanto, Deus ele próprio, a distância é como da terra ao céu, e essa, que se saiba, ainda não foi, até hoje, medida, Do meio da multidão veio então uma voz, Dá-nos uma prova de que és o Filho de Deus e eu seguir-te-ei, Tu seguir-me-ias sempre se o teu coração te trouxesse a mim, mas o teu coração está preso dentro de um peito fechado, por isso pedes-me uma prova que os teus sentidos possam compreender, pois bem, vou dar-te agora uma prova que dará satisfação aos teus sentidos, mas que tua cabeça recusará e, no fim estando tu perplexo entre a cabeça e os sentidos não terás outro remédio senão vir a mim pelo coração, Quem puder entender que entenda, eu não entendo, disse o homem, Como te chamas, Tomé, Vem aqui, Tomé, vem comigo até a borda da água, vem ver-me fazer uns pássaros com esta lama que colho às mãos-cheias, repara como é tão fácil, formo e modelo o corpo, afeiçôo a forma da cabeça e do bico, engasto estas pedrinhas que são os olhos, ajeito as penas compridas da cauda,  equilibro-lhes as pernas e os dedos, e, tendo feito este, faço onze, aqui os tens, um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze pássaros de lama, imagina, até podemos, se quiseres, dar-lhes nomes, este é Simão, este é Tiago, este é  André, este é João, este, se não importas, chamar-se-á Tomé, quanto aos outros vamos esperar que os nomes apareçam, os nomes, muitas vezes, atrasam-se no caminho, chegam mais tarde, e agora como faço, lanço esta rede por cima das avezinhas para que elas não possam fugir, os pássaros, se não temos cuidado, Queres dizer-me que se esta rede for levantada, os pássaros fogem, Esta é prova com que querias convencer-me, Sim e não, Como, sim e não, A melhor prova, mas essa não é de mim que depende, seria não levantares tu a rede e acreditares que os pássaros fugiriam se a levantasses, São de barro, não podem fugir, Experimenta, também Adão, nosso primeiro pai, foi de barro e tu descendes dele, A Adão deu-lhe a vida Deus, Não duvides mais, Tomé,  e levanta a rede, eu sou o Filho de Deus, Assim o quiseste, assim o terás, estes pássaros não voarão, com um movimento rápido Tomé levantou a rede, e os pássaros, livres, levantaram vôo, deram, chilreando, duas voltas sobre a multidão maravilhada e desapareceram no espaço, Disse Jesus, Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora, e Tome respondeu, Não, Senhor, está aqui ajoelhado a teus pés, sou eu.

        Da multidão adiantaram-se alguns homens, atrás deles, porém não dependentes, umas quantas mulheres, Aproximaram-se a disseram como se chamavam, Eu sou Felipe, e Jesus viu nele as pedras e a cruz, Eu sou Bartolomeu, e Jesus viu nele um corpo esfolado, Eu sou Mateus, e Jesus viu-o morto entre gente bárbara, Eu sou Simão, e Jesus viu nele a serra que o cortava, Eu sou Tiago, filho de Alfeu, e Jesus viu que o lapidavam, Eu sou Judas Tadeu, e Jesus viu a massa que se levantava sobre a sua cabeça, Eu sou Judas de Iscariote, e Jesus teve pena dele porque o viu enforcar-se por suas próprias mãos na figueira. Então Jesus chamou os outros e disse, Agora estamos todos, chegou a hora. E para Simão, ir- 

 

Notas:

1. Em ocre, o texto pinçado. Com exceção de às mãos cheias, uma vez que o esta lama que colho já me pareceu suficiente, não há nenhuma outra supressão, nem acréscimo. 

2. No final, símile das duas páginas do livro. Lá, por favor, repare nos riscos laterais, justamente no "chilrearam", que seria a parte menos poética. Para mim, pelo contrário, de máxima poeticidade.  

 

 Saramago instala um ambiente perfeito para para introduzir a fala do incréu. Jesus vem chegando, saindo das águas sob estupendos testemunhos, quando alguém salta do meio da multidão com a insolência:

— Dá-me uma prova! 

Preferi não começar por lá, optando por deixar tudo em sub, quando Jesus o conclama o incrédulo a "ver":

 

Vem aqui, Tomé,

vem comigo até a borda da água,

vem ver-me fazer uns pássaros

com esta lama que colho...

 

 

 

 

Saramago não se assume de nenhuma outra preocupação a não ser com o "fácil", com o extremamente factível. Arquetipo-me: menino, no barro de loiça, lá, quando chovia, instaurando imensos coqueirais com os talos de um micro-capim do pé da calçada. Não havia calçamento, era o chão de terra. Também plantava açudes no mesmo barro, ao mesmo chuvisco. [Seria razoável alguma fronteira entre a fé e a infância?].

Cá, em Saramago, tudo bem tão fácil, porque sub-jaz, evidentemente, o milagre, os prenúncios do milagre. 

Repare na beleza e na simetria da contagem dos "pássaros". Sem esquecer naturalmente os pedriscos dos olhos. Aos olhos:

 

Repara como é tão fácil,

formo e modelo o corpo

e as asas;

afeiçôo a forma da cabeça

e do bico; engasto estas pedrinhas

que são os olhos;

ajeito as penas compridas

da cauda;

equilibro-lhes as pernas e os dedos

e tendo feito

este, faço mais onze;

aqui os tens, um dois, três

quatro, cinco, seis, sete, oito,

nove, dez, onze, doze pássaros

de lama...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Agora, a fundação dos nomes. O prenúncio dos outros nomes. Vale recapitular a cena das honrarias fidalgas do final de A pedra do reino, de Ariano Suassuna, quando o advogado distribui os títulos nobiliárquicos justamente ao promotor que zombava de honrarias. Mas, verdadeiro Tomé, Tomé resistirá à oferenda. 

Atente para a cesura do terceiro verso: e este... Este, quem, cará pálida? Tu, Tomé! 

Como resistir à homenagem de ver o próprio nome ser posto em algo muito alevantado?! Tomé está quase comprado: este, se não de importas, charmar-se-á Tomé. Sim, um jogo de oferendas!

 

Imagina, até, se quiseres,

dar-lhes nomes: este é Simão,

este é Tiago, este é André, este é João, e este,

se não te importas, chamar-se-á

Tomé.

 

 

 

 

 

Ainda os nomes. A magia dos nomes, mais nomes, em aberto. Quem chegará? Meus amigos? Poderei indicar algum?, deve ter-se indagado, interior, Tomé.

 

Quanto aos outros vamos esperar

que os nomes apareçam;

os nomes, muitas vezes, atrasam-se

no caminho, chegam

mais tarde...

 

 

 

 

 

Uma rede? De onde saiu essa rede? Dessas de ráfia, poluentes, em qualquer beira-d'água, atuais? Mas naquele tempo, não havia ráfia alguma. Saramago não explica, aliás, só explica: o tom natural do quase-milagre: a rede. 

Li, faz tempo, todos lemos, a história (fábula?) de um quadro (ou seria um cesto?) de frutas que as aves vinham bicar. O pintor ajuntou-lhe uma rede... por cima. Uma arquetipia e tanto!

 

E agora vê como faço — lanço esta rede

por cima das avezinhas

 

 

 

Finalizo o primeiro verso com o  "se", de uma pontuação não usual. Por isto mesmo, Diego Vinhas telefonou para os outros jovens comentando que o texto estava a minha cara. Por certo, está, acho que está: À vista de ti:

 

para que elas não possam fugir, os pássaros..., se

não temos cuidado.

 

 

 

Não posso deixar de destacar a construção do último verso: A Adão deu-lhe vida Deus! 

Sim, os insultos do barro, o nosso barro. Veja que Jesus não conjuga o descendes na terceira pessoa do plural: descendemos. Tu, Tomé, é que descendes dele...

 

Queres dizer-me que se esta rede

for levantada os pássaros fogem?

Esta é a prova com que querias

convencer-me?

 

Sim e não!

 

Como, sim e não?

 

A melhor prova, mas essa

não é de mim que depende, seria

não levantares tu a rede e acreditares

que os pássaros fugiriam se a levantasses.

 

São de barro, não podem fugir.

 

Experimenta! Também Adão,

nosso primeiro pai, foi de barro e tu

descendes dele.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A expressão Eu sou é, para os judeus, o Nome, o Nome de Deus. Por isto mesmo, com ela termino o primeiro verso:

 

Não duvides mais, Tomé! Levanta a rede, eu sou

o Filho de Deus.

 

Assim o quiseste, assim o terás,

estes pássaros não voarão!

 

 

 

 

 

Disse-me um amigo que o levantar da rede e o vôo dos pássaros seria a parte prosaica, inferior. Para mim, a parte mais bela do poema, com todo respeito ao meu amigo: os pássaros, livres, levantam-se em vôo, chilreando. Se isto é bonito? Claro que é!

Atente que Saramago não dá apenas uma volta com os pássaros de barro. Nem volta e meia, nem três voltas, nem "muitas voltas" ou "várias voltas". A palavra justa — Prego batido, ponta virada: duas voltas! A primeira volta para dizer que sim. A segunda, a confirmar. Duas, exatas, perfeitas, justas. 

No final da segunda volta, ao espaço...  Multidão? Sim, é claro! Que graça teria um milagre senão visto por todos?! Urge, pois, haja-lhe uma multidão a maravilhar.

 

Com um movimento

rápido, Tomé levantou

a rede, e os pássaros,

livres, levantaram vôo, chilreando,

duas voltas

sobre a multidão maravilhada

e desapareceram no espaço.

 

 

 

 

 

 

 

Não podia deixar de dar a cesura em "teu pássaro", de modo a reforçar a "posse" — o nome, o Pássaro-Tomé. O foi-se embora é a pós-notícia, o prejuízo. A estrofe como está posta um é desmentido veemente ao monge Jorge, de O nome da rosa, de Umberto Eco. Jesus ria! Um grande presepeiro, com todo o respeito, aquele Jesus! Só um emérito gozador pregaria tamanha peça. Ainda que não tenha gargalhado. E, mais grave, "mentiu". Assim o exige o desfecho. 

 

Disse Jesus:

Olha, Tomé, o teu pássaro

foi-se embora.

 

 

 

Este final, de joelhos, com a colocação do "sou eu" para último verso, atende, parece, o requisito de final majestoso ao convencimento. De comover. Definitivo. De joelhos, eu também. Qualquer um. Mais uma vez, prego batido, ponta virada:  o não seco do início do segundo verso. 

 

E Tomé respondeu:

Não. Senhor, está aqui ajoelhado a teus pés,

sou eu.

 

 

 

O pior de tudo é que o heresiarca, ateu convicto e comunista impenitente — ele mesmo quem se diz assim —, Saramago, dá de dez a zero no evangelista,  o único dos quatro que nos conta da incredulidade de Tomé: João, 20, 24-29. 

Ah, o título, ia-me esquecendo o título! Pesquei-o inteiro do texto: Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!

 

Soares Feitosa

Fortaleza, bem de noite, 24.5.2003

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Repare nos riscos ao lado do "chilrearam"