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Xico Sá




Um livro-sustança sobre estômagos e esperas

 



 

Ainda estava com a poeira nos couros, depois de uma viagem de caminhão de Juazeiro do Norte a São Paulo, quando recebo, na caixa postal da modernagem internética, este livro. Um assombro. Deus está mesmo nas coincidências, pensei. Eu tinha atravessado os sertões de Pernambuco e Bahia ouvindo e reouvindo, e ouvindo de novo outra vez, justamente uns discos do coroné Ludugero _graças ao caminhoneiro Caetano, cabra bom do Cariri que nos guiou naquela reportagem-de-boléia.

Um livro da moléstia, da gota serena, da “feba” do rato, um livro com direito a todas as hipérboles de todas as pestes cujos sentidos vão mudando com o tempo. “Será por ti, Sertão” botou este sertanejo às lágrimas e ao riso, ao riso dolorido e desavergonhado dos palhaços de Suassuna, de Sancho diante de Quixote, de Malasartes... E neles todos, seres de tantos sóis sobre a moleira, guardados os sertões possíveis d´alma e todas as almas penadas e vaqueiras.

Ou ainda “Ninguém Escreve ao coronel Ludugero”, o homem que botava o Nordeste com o “risador aberto”, mas sempre com um cutucão de vara, avalovara, vara em espinhaço da onça desconfiada da realidade, comedora dos bodes das nossas existências.

Luis Manoel Siqueira, escriba-geólogo-caminhador, que viu água em pedra, que viu o “tiroteio invisível em dia de feira”, que barreu com o vento o rebuliço de cidades pacatas, que invocou Celso Furtado numa imagem de mexer com os nervos, numa prosa esclarecedora e delirante, como a fala mais sertaneja.

Ninguém escrevia ao coroné... Ninguém dialogava com o sertão profundo, cheio de mungangas e esquecimentos. E ninguém no momento parece decifrá-lo tanto como este autor, menino que viu a bandeira do Brasil cair do trem, rumo à estação dos esquecidos, estômago e espera, metáfora ferroviária e sensações proustianas _o cheiro das terras e dos cachorros magros ao sol do abandono_ a me bater a cada ponto, a cada vírgula.

O livro-sustança que dá conta do carro de boi que convive com o microtratator, das “lan houses” e dos “cyber cafés” que se misturam à desnutrição crônica que resiste, “apesar da proximidade da margem do rio, do açude, ou de lanchonetes que oferecem “Hot Dogs” e “Milk Shakes”.

Lá da sua Macondo, Ludugero, com Dona Filomena e Otrope, trinca que fazia o povo se acabar de rir, embora muitos vezes um riso amargo, crítico, como o riso possível neste livro, agradece ao escriba. Nem pensava mais que seria tão bem lembrado, nestes tempos em que nem mesmo os Correios escapam da praga da desconfiança.

“Decifra-te, ou te devoro!”, grita a caveira de burro que vigia o roçado”´.

Sertões do poder da cerca, tão facilmente decifrado, sertão dos mistérios que se escondem nas suas sombras de gentes magras.

E é essa sabedoria que sangra nesse livro, como açude em inverno farto. A ciência de quem junta Jacques Derrida, o da desconstrução da filosofia francesa, a Luiz Gonzaga, na ironia das barragens-sonrisal, aquelas que se desmancham no ar.

O sertão e seus símbolos caros, como Delmiro Gouveia, por exemplo. Aqui a bala que tirou-lhe a vida, qual numa fita de Glauber, passa raspando em outras boas histórias, rastro da pólvora destruidora que aniquila os sonhos mais homéricos.

 



Luís Manoel Paes Siqueira
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15/06/2005