Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Consciência da literatura

Jornal do Brasil
8.11.2008

 

Na célebre "Notícia da atual literatura brasileira" (1873), Machado de Assis lamentava a inexistência de "uma crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outras partes. Não a temos. Há e tem havido escritos que tal nome merecem, mas raros, a espaços, sem a influência quotidiana profunda que deveram exercer. A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa literatura: é mister que a análise corrija ou anime a invenção, que os pontos de doutrina e de história se investiguem, que as belezas se estudem, que os senões se apontem, que o gosto se apure e eduque para que a literatura saia mais forte e viçosa e se desenvolva e caminhe aos altos destinos que esperam" (Machado de Assis. O ideal do crítico. Org. Miguel Sanches Neto. Rio: José Olympio, 2008).

Ele tinha em mente o crítico ideal, figura ao mesmo tempo imaginária e impossível – impossível, não por causa das imperfeições humanas, mas porque a idéia é contraditória em si mesma: o crítico ideal só poderia existir numa literatura ideal, da qual seria produto espontâneo e desnecessário. Poderemos vê-la como a consciência da literatura, para lembrar o postulado do hoje esquecido Ernest Hello (1828-1885), e, de fato, é em tais perspectivas que a encarava: "Exercer a crítica afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece igualmente fácil a tarefa do legislador; mas, para a representação literária, como para a representação política, é preciso ter alguma coisa mais que um simples desejo de falar à multidão. Infelizmente é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos incompetentes".

A ciência e a consciência, dizia ele, "eis as duas condições principais para exercer a crítica", retomando a lição de Rabelais segundo a qual "ciência sem consciência é a ruína da alma": "A crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da simpatia, procura reproduzir unicamente os juízos da sua consciência". Dessas duas cláusulas "decorrem naturalmente [sic] outras: a coerência é uma dessas condições, e só pode praticá-la o crítico verdadeiramente consciencioso (...). Sem uma coerência perfeita, as suas sentenças perdem todo o vislumbre de autoridade, e abatendo-se à condição de ventoínha, movida ao sopro de todos os interesses e de todos os caprichos, o crítico fica sendo unicamente o oráculo dos seus inconscientes aduladores".

Assim, o exercício da crítica repousa, antes de mais nada, em seus fundamentos morais, como, de uma forma ou de outra, são de ordem moral as demais recomendações machadianas, vindo a independência logo a seguir na enumeração: "O crítico deve ser independente (...) independente da vaidade dos autores (ai de nós!) e da vaidade própria (ai de nós!). Não deve curar de inviolabilidade literárias, nem de cegas adorações, mas também deve ser independente das sugestões do orgulho e das imposições de amor-próprio".

Por isso mesmo, "a tolerância é ainda uma virtude do crítico. A intolerância é cega, e a cegueira é um elemento do erro, o conselho e a moderação podem corrigir e encaminhar as inteligências, mas a intolerância nada produz que tenha as condições de fecundo e duradouro". Escrevendo no tempo de Sílvio Romero e seus discípulos, e quando a polêmica grosseira e insultosa era um gênero literário, é natural que apontasse na urbanidade uma das condições da crítica: "Moderação e urbanidade na expressão, eis o melhor meio de convencer; não há outro que seja tão eficaz. Se a delicadeza de maneiras é um dever de todo homem que vive entre homens, com mais razão é um dever do crítico, e o crítico deve ser delicado por excelência. Como a sua obrigação é dizer a verdade, e dizê-la ao que há de mais suscetível neste mundo, que é a vaidade dos poetas, cumpre-lhe, a ele sobretudo, não esquecer nunca esse dever".

Com tantas dificuldades à sua frente, não estranha que a virtude da perseverança seja mais uma das recomendações – do que, aliás, ele próprio não deu o exemplo. São os deveres da consciência, mas há, ainda, os óbvios deveres da ciência: "Saber a matéria em que fala, procurar o espírito de um livro, indagar constantemente as leis do belo, tudo isso com a mão na consciência e a convicção nos lábios, adotar uma regra definida, a fim de não cair na contradição, ser franco sem esperteza, independente sem injustiça, tarefa nobre é essa que mais de um talento podia desempenhar, se se quisesse aplicar exclusivamente a ela".

Se o programa parece difícil, podemos pensar que, dependendo da vocação e legítimas propensões do espírito, será, ao mesmo tempo, fácil e espontâneo. Os resultados "seriam imediatos e fecundos". Concluía Machado de Assis em rara demonstração de otimismo.

 

 

 

 

 

 

8/11/2008