Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Clássico do humorismo


21.02.2004

Sílvio Romero assinalou 1870 como ano climatérico de nossa história mental, ruptura entre o que podemos ter como “idade romântica”, que se exauria por consumpção, e a “idade realista”, que então se iniciava pela concomitância de mudanças em todas as ordens de pensamento e vida coletiva. Como para implantar os marcos simbólicos dessa transição, a vida editorial se esmerou em colocar frente a frente José de Alencar, já então tomando as suas distâncias com relação ao ideário romântico, e Luís Guimarães Jr., com a resposta sarcástica às idealizações romanescas e poéticas do pé feminino, tratadas em “A pata da gazela” com perturbadoras conotações de perversão sexual, provando que o problema estava apenas à espera das teorias freudianas correspondentes.

Em 1870, Alencar é homem ressentido e amargo, planejando vingar-se, pela literatura, das desilusões e desgostos da vida pública. Aí começava, escrevia ele, “outra idade do autor, à qual eu chamei de ‘minha velhice literária’, adotando o pseudônimo de ‘Stênio’, e outros querem seja a da decrepitude. Não me afligi com isto, eu que, digo-lhe com todas as veras, desejaria fazer-me escritor póstumo, trocando de boa vontade os favores do presente pelas severidades do futuro”. Era a desilusão romântica encontrando terreno predestinado na sua hipocondria orgânica.

Claro, não devemos ignorar nem subestimar o lado tenebroso do romantismo, com os seus monstros físicos e morais, seu fascínio pelas aberrações, sua atração pelas anormalidades. Isso nos deve premunir contra as simplificações didáticas e as verdades de manual. Sabe-se que, em “A pata da gazela”, o tema central é um caso de feiticismo erótico, com o qual o próprio Alencar desmistifica a visão idealizadora do sentimento amoroso, sendo, na acepção rigorosa da palavra, o nosso primeiro romance realista e até naturalista, se lhe considerarmos as implicações fisiológicas, que ele qualificava de “aberração da alma”.

Nesse romance, são perceptíveis as conotações humorísticas, contrabalançando-lhe a natureza dramática, tudo confirmado pelos episódios grotescos, nomeadamente o que se liga à noite nupcial da heroína. Nisso, e inesperadamente, “A pata da gazela” se torna a fase complementar e simétrica do romance de Luís Guimarães Jr. publicado no mesmo ano (“A família Agulha”. Ed. Flora Süssekind. Rio: Vieira & Lent/Fundação Casa de Rui Barbosa, 2003). É livro que, já agora, pressupõe leitores razoavelmente familiarizados com a vida carioca da época, para o que são indispensáveis as notas esclarecedoras de Flora Süssekind: nesse caso, é melhor pecar por excesso com ela do que por deficiência sem ela.

“A família Agulha” pertence a uma genealogia bem mais rica do que em geral se imagina, lembra Flora Süssekind, incluindo “obras como ‘Memórias de um sargento de milícias’, de Manuel Antônio de Almeida, ‘O garatuja’, de José de Alencar, as ‘Memórias de um sobrinho de meu tio’, ‘A carteira de meu tio’ e ‘A luneta mágica’, de Joaquim Manuel de Macedo”, continuando pelo tempo afora, todos na categoria dos livros injustamente subestimados, como, por exemplo, “Dois metros e cinco” (1905), de Cardoso de Oliveira, romance construído por episódios justapostos e peripeciais como na favela picaresca — espécie, claro está, em que também se incluía “A família Agulha”.

De “A pata da gazela” para “A família Agulha” houve apenas a contigüidade cronológica, sendo impossível que Luís Guimarães Jr. tivesse sofrido qualquer influência de um livro publicado simultaneamente com o seu. O mesmo não ocorre no que se refere as “Memórias de um sargento de milícias”, do qual “A família Agulha” repete, com evidente superioridade na arte narrativa, a estrutura, a concepção dos caracteres e muitas cenas específicas, como, por exemplo, o parto de Eufrásia, mulher apresentada com “uma cabeça insignificante, um pescoço de milha e meia e um par de pés que podiam servir de pedestal a ela, à família toda e a algumas tribos mais”. De qualquer maneira, cabe dirigir a Luís Guimarães Jr. muitos dos louvores que a crítica costuma reservar ao seu antecessor.

Foi por aquele pé 47 que Anastácio se apaixonou, a tal ponto que, quando o filho nasceu com pés normais, ele gritou espantado que a criança não tinha pés. Mas, o que há de interessante no romance é a invenção das cenas que mais tarde iriam caracterizar as comédias cinematográficas de pastelão. Assim, por exemplo: “Anastácio já tinha perdido a cabeça. Agarrou no chicote e arremessou-o com toda a força sobre os dois quadrúpedes, o carro partiu à toda desfilada; na janela Sacramento fazia sinais e chamava por Agulha; Joaninha teve um faniquito; Eufrásia puxava desesperada as abas do paletó do marido, e Leocádio Boa-Morte, com ambas as pernas fora do carro, gritava como um possesso. O boleeiro deitou a correr atrás acenando com o chapéu: um grupo de curiosos engrossou-se e daí a momentos era uma multidão a todo o galope perseguindo o coche fantástico, que subia pelas calçadas, atropelava gente, quebrava vidraças com a rapidez de uma locomotiva a vapor”.

É uma novela picaresca mas é também um romance de costumes, como nos episódios do Alcazar e na cenas eleitorais, sobre cujo mecanismo é preciso lembrar que, pelo sistema do chamado “censo alto”, os cidadãos chamados de “votantes” escolhiam os “eleitores” que, por sua vez, formariam o colégio eleitoral. Em eleições, dizia Anastácio Agulha com a sabedoria dos séculos, “é a esperteza quem ganha” — a esperteza e os cacetes dos cabos eleitorais e fiscais de urnas: “A oposição perdia terreno. O governo, como todos os governos existentes e por existir, fez estacionar em cada igreja um quartel com todas as munições para o combate, distribuindo capangas e espalhando prosélitos, munidos de plenos poderes para o que desse e viesse (...).”

Anastácio, “fraco em raciocínios sérios, mas destro na velhacaria e na ladroeira”, arrancou dinheiro dos ingênuos para organizar a oposição, fugindo da cidade quando, como seria de esperar, todos foram “traídos”.

Link para José de Alencar

 

 

 

 

 

05/01/2006