Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Enfim nele mesmo


27.12.2003

A releitura de Manuel Bandeira deve ser feita pela leitura de Ivan Junqueira, quero dizer, a busca de sua organicidade profunda, para além da ordem cronológica mecânica, menos ainda pelas ilusórias inserções históricas, critério de análise que só serve para escritores menores (“Testamento de Pasárgada”. Antologia poética. 2 ed., rev. Org. e estudos de Ivan Junqueira. Rio: Nova Fronteira, 2003).

No que se refere à “inserção histórica”, Bandeira foi um excêntrico, remanescente da sensibilidade simbolista em pleno fastígio do Modernismo, conforme ele próprio observou ao declarar-se “associado a uma geração que, em verdade, não era a minha”. No caso, originava-se na transição penumbrista em que ele e os seus amigos mais chegados (basta lembrar Ribeiro Couto) se situavam nos anos privilegiados de formação: era a deliqüêscência final do Simbolismo, prolongando-se, de forma larvar pela década seguinte, cujo centro dinâmico estava, aliás, fora do Rio de Janeiro.

Tal sensibilidade persistiu em Bandeira até ao fim de sua vida (o que nada tem de surpreendente nem de anormal). Para o que nos interessa no momento, Ivan Junqueira estuda, no que bem pode ser o fulcro mesmo da questão, o condicionamento espiritual (e não apenas as relações intelectuais) de Bandeira com o Modernismo, ou, se quisermos, o seu caráter essencial como poeta. É tema a que, com a finura, a competência e a elegância habituais, Joaquim-Francisco Coelho dedicou um ensaio que, como acentuei àquela altura, abria perspectivas inteiramente novas à sua interpretação, desconsiderando ismos, escolas e cronologias (“Manuel Bandeira pré-modernista”. Rio: José Olympio, 1982). Seu livro foi publicado dois anos após a primeira edição da antologia de Junqueira.

Note-se, de passagem, que, apesar das datas, não há qualquer filiação entre essas obras: dados os costumeiros atrasos editoriais da José Olympio, pode-se presumir que os originais de Joaquim-Francisco Coelho já ali se encontravam quando saiu o livro de Ivan Junqueira, tanto mais que os autores trabalhavam não só em cidades, mas até em continentes diferentes. Os modernistas apropriaram-se d’“Os sapos” com muita astúcia, como brado de guerra, mas o poeta resistiria por uma boa década ao prestígio das novas correntes: é com “O ritmo dissoluto”, dois anos depois da Semana, que ele se põe “a caminho da ‘modernidade’ da expressão”; caberia estender a “Carnaval” o que Joaquim-Francisco Coelho escreve a propósito da “A cinza das horas”, ou seja, que Manuel Bandeira andava até então alheio ao vanguardismo já em curso na Europa: “Quanto aos processos de expressão, perfilham sobretudo (mas não exclusivamente) os mandamentos da ars poetica do Parnasianismo, mediante um culto artesanal da forma que radica, é sabido, no solo do mais puro classicismo”.

A fluidez musical do neo-Simbolismo, cujas águas já então se confundiam com o chamado Penumbrismo, a língua melodiosa que não excluia a fala coloquial, a melancolia que ia de par com a ironia, elementos esses que, pouco “parnasianos”, pareciam prenunciar o Modernismo — mas só pareceram prenunciá-lo e logo em seguida passou-se a afirmar que prenunciavam, quando o Modernismo já se constituíra em escola definida e divisor de águas. Confirmava-se, no caso, o postulado de T. S. Eliot: as obras novas alteraram não só a escala de valores do passado, mas até a sua fisionomia e realidade (W. M. “Pontos de vista”, 11, 1995).

Assim, pode-se concordar com Ivan Junqueira e Joaquim-Francisco Coelho: é somente , não sobretudo , a partir de “Libertinagem” (1930) que o poeta encontrará não a sua voz própria e definitiva , mas a sua voz modernista, que anda longe de ser definitiva. Porque em 1940, com a “Lira dos cinqüent’anos”, ele retorna ao soneto, abjurando tacitamente dos anátemas modernistas, ou, pelo menos, integrando a respectiva tradição na tradição mais larga da poesia brasileira, assim como, entre 1930 e 1940, havia integrado a tradição parnasiana e simbolista na tradição modernista (W. M., id.). Em outras palavras, ele foi pré-modernista até 1930...

Essa é também a lição de Ivan Junqueira: “Embora tenha de ser reconhecido como precursor e participante deste movimento literário, Bandeira não deve ser incluído entre os modernistas enquanto porta-voz do novo ideário estético (papel este, aliás, que ele efetivamente jamais desempenhou e ao qual desde sempre se furtou, tendo apenas liderado, como Dante Milano e Osvaldo Costa, a falange carioca do movimento), e sim como catalisador de uma reação que desarticulava então toda a pirâmide sócio-cultural da sociedade remanescente aos horrores e ruínas da Primeira Guerra Mundial”.

Manuel Bandeira, provindo do neo-Simbolismo penumbrista, pertencia ao passado imediato. Ora, escreve ainda Ivan Junqueira, “o passado imediato parecia infinitamente mais intolerável e indigno do que quaisquer estágios históricos anteriormente vividos pelo homem enquanto sujeito de razão, de conhecimento e de cultura. Ou se era modernista, ou não se era coisa alguma”. Havia, mesmo, irremovíveis incompatibilidades de temperamento: o Modernismo nasceu e se desenvolveu sob o signo da Alegria (apesar das críticas depreciativas de Mário de Andrade a esse princípio central da filosofia de Graça Aranha), enquanto Bandeira, na demonstração de Ivan Junqueira, viveu e escreveu dominado pela tristeza: “Ao lirismo de Bandeira se poderiam aplicar diversas qualificações, mas nenhuma lhe seria tão pertinente quanto a da tristeza”. Era o homem do sorriso em face das gargalhadas carnavalescas dos modernistas: o seu era, significativamente, o “carnaval sem nenhuma alegria”. Era o poeta das reticências sugestivas e impressionistas, ao lado do expressionismo dos modernos com os seus pontos de exclamação; era o poeta e o homem da penumbra em oposição ao sol radiante e pernasiano dos modernistas, celebrado, entre outros, por Ronald de Carvalho. De fato, o Modernismo nada lhe devia, mas o que ficou devendo ao Modernismo é mais uma reconstrução retrospectiva de lugares-comuns simplificadores do que uma realidade substancial.

Link para Manuel Bandeira

 

 

 

 

 

04/01/2006