Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Releituras macedianas


15.01.2005

A glória literária de Joaquim Manuel de Macedo despertou no jovem estudante José de Alencar a nobre emulação de também se tornar romancista. Nas páginas de “Como e por que sou romancista”, ele refere que um dos seus companheiros de república, em São Paulo, era “entusiasta do Dr. Joaquim Manuel de Macedo, que pouco havia publicara o seu primeiro e gentil romance (...). Ainda me recordo das palestras em que o meu companheiro de casa falava com abundância de coração em seus amigos e nas festas campestres do romântico Itaboraí, das quais o jovem escritor era o ídolo querido. Nenhum dos ouvintes bebia esses pormenores com tamanha avidez como eu, para quem eles eram completamente novos. Com a timidez de meus treze anos (Alencar, nascido em 1829, tinha então quinze anos), não me animava a intervir na palestra; escutava à parte, e por isso ainda hoje tenho-as gravadas em minhas reminiscências a estas cenas do viver escolástico. Que estranho sentir não despertava em meu coração adolescente a notícia dessas homenagens de admiração e respeito tributadas ao jovem autor da ‘Moreninha’! Que régio diadema valia essa auréola de entusiasmo a cingir o nome de um escritor?”.

Nem de longe poderia ele prever que, treze anos depois, “o sucesso estrondoso de Peri e Ceci” marcaria para Joaquim Manuel de Macedo “o começo do próprio declínio”, nomeadamente a partir da década de 1870 (Tania Rebelo Costa Serra. “Joaquim Manuel de Macedo ou Os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado”. 2 ed., rev. e atualizada. Brasília: UnB, 2004). A verdade, contudo, é que está na obra de Macedo (tanto no romance quanto no teatro) o embrião de José de Alencar e Machado de Assis, por mais que os preconceitos de leitura e de crítica resistam a admiti-lo. Assim, observa Tania Serra, “Luxo e vaidade” é melhor que “O demônio familiar” (...). Sílvio Romero, sempre parcial quanto ao seu teatro, afirma (...) que essa ‘é a mais bem construída comédia de Macedo’ (...)”, não só ao nível de Hugo, Vigny e Dumas, como ela acentua, mas ainda, para o que no momento nos interessa, ao nível de Machado de Assis, se não superior. De minha parte, acredito que há na peça de Macedo a mesma situação e a mesma perspectiva didascálica de “O crédito”, porque entre Macedo e Alencar as coincidências recíprocas mantêm-se com regularidade e fiel alternância.

No capítulo das relações literárias, o caso Machado de Assis é tanto mais curioso quanto revela, por um lado, ciumenta e inquieta má vontade com relação a Macedo, e, por outro, os seus próprios cânones estéticos. Obedecendo fiel e serodiamente aos preceitos do seiscentismo francês, ele considerava a comédia teatral um gênero inferior ao teatro dramático, admitindo apenas a comédia “séria”, tal como a praticou. Segundo a lição de Boileau, ele tampouco reconhecia o autor do “Misanthrope” no saco ridículo em que Scapin se enrolou, assim como se recusava a ver em Macedo um mestre do humorismo cênico. Tania Serra lembra que, em artigo de 1866 no “Diário do Rio de Janeiro”, mostrou-se “bastante cáustico com relação a ‘A torre em concurso’. Afirma não ser legítima a reputação (...) de poeta cômico atribuída a Macedo e insiste em dizer que o comediógrafo não tem o ‘domínio da alta comédia, da comédia de caráter’, pois apela à facilidade da sátira e do burlesco”.

Ora, era de natureza humorística o talento espontâneo de Macedo, que passou a vida tentando sufocá-la para atender às idéias feitas da época, inclinada aos dramalhões cheios de peripécias e sentimentalismo, com reconhecimentos inesperados de filhos desaparecidos e gargalhadas trágicas de súbita loucura. Por mais que o teatro e, implicitamente, a literatura brasileira devam ao trabalho de João Caetano, é preciso reconhecer que representou a inércia do imobilismo e retrocesso. Numa série de artigos apontados por Tania Serra como o divisor de águas na crítica macediana, Temístocles Linhares acentuou a veia satírica e humorística de Macedo, levando a constatação mais longe: “a clara influência de Macedo sobre Machado (...) a verdade é que muitos de tais episódios (da ”Luneta mágica“) lembram Machado, o que faz supor pelo menos tenha sido Macedo uma de suas leituras preferidas, embora muita gente possa achar desprimorosa para o autor de ‘Dom Casmurro’ essa influência de leitura”.

Tania Serra reivindica para Temístocles Linhares a prioridade em apontar a existência de dois Macedos, contra os lugares-comuns que, sem realmente lê-lo ou relê-lo, insistem em qualificá-lo como “romancista de sala de jantar”. Linhares “tem o mérito de também ter sido o primeiro crítico a apontar semelhanças entre Macedo e Machado de Assis, declarando que este sofreu nítida influência daquele, pois ‘quem pode negar tenha Macedo se antecipado ou aberto caminho ao autor das ‘Memórias póstumas’ nesses divertimentos ou processos de higiene mental destinados a fazer rir ao mesmo tempo que a fazer sentir a fragilidade do homem e de toda uma organização social e política’”. Eu diria, conclui ela, que, “assim como há uma primeira e uma segunda fases em Macedo, existe uma crítica antes de Temístocles Linhares e outra depois dele. Na verdade, o ensaísta foi o divisor de águas quanto à apreciação literária do romance macediano, assim como foi Sílvio Romero quem primeiro ‘detectou’ duas fases no teatro do autor de ‘Lusbela’”.

Sabe-se que, nos seus últimos anos, ele passou a escrever desesperadamente, seja para pagar a famosa “dívida de honra”, seja, como quer Tania Serra, para manter o seu padrão de vida, tudo isso apesar dos polpudos direitos autorais que supostamente estaria recebendo pelas sucessivas reedições. A realidade é outra: pelo regime da época, os autores vendiam as obras ao editor de uma vez por todas em pagamento único, habilitando-o de então por diante a explorá-la sem qualquer outra obrigação. Foi assim que Machado de Assis negociou as suas próprias, conforme recibo conhecido. Não é sem razão que B. L. Garnier, a quem se deve, afinal de contas, o desenvolvimento de nossa literatura no século XIX, recebeu dos ingratos o apelido desprimoroso de Bom Ladrão Garnier...

 
 

 

 

 

 

02/01/2006