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Wilson Martins


 


À moda antiga


23.04.2005
 


 

Lembram-se de Bernardo Guimarães? Não o do “Elixir do pagé”, bem entendido, mas o da “Escrava Isaura” e assemelhados, em que ele e toda a sua família literária oitocentista lançaram a fórmula estereotipada do que viria a ser a telenovela do século XX. Àquela altura, eram livros que sempre traziam o subtítulo de “romance brasileiro”, expressão em que as duas palavras devem ser tomadas no sentido forte: “romances”, isto é, obras de imaginação, mas também “brasileiros”, ou seja, inspirados na matéria nacional.

O que era o “romance brasileiro” do romantismo? Antes de mais nada, a história de peripécias encadeadas em que cada episódio aparentemente auspicioso e feliz abortava-se por qualquer inesperado incidente dramático que punha tudo a perder, maquinação insidiosa dos vilões e almas maldosas que os heróis e heroínas enfrentavam com valor e constância, tudo conduzindo ao final feliz tão rotineiro quanto antecipado desde as primeiras linhas.

A parte “brasileira” era representada pela natureza exuberante, descrita em páginas e páginas, festas folclóricas, cantigas tradicionais, trajes típicos e fazendas históricas, com seus peões de tocante fidelidade e coragem jamais desmentida, além de cavalos de nobre estirpe e plantações luxuriosas. Os personagens dividiam-se em dois grupos antagônicos jurados de morte, os bons e os maus, separados e opostos por lutas seculares de família, orgulho nobiliárquico, cobiça e rivalidades transmitidas de geração em geração. No lado positivo, com o qual o leitor desde logo se identificava, ficavam os personagens tão nobres de caráter quanto indômitos na luta, além da heroína de deslumbrante beleza, quase sempre destinada a um casamento infeliz que se tratava de impedir, e o seu apaixonado igualmente persistente diante da adversidade.

É por esse modelo que A. B. Mendes Cadaxa escreveu o “romance do Goiás do século XIX”, assim apresentado por José Mendonça Teles na introdução: “Em torno de Donina, a personagem que dá nome ao romance, gira toda a narrativa. Viúva, jovem, bonita, regressa do Norte goiano à cidade de Goiás, então Capital da Província, onde vivem seus pais. Na comitiva, carros de bois, gado, escravos e o capataz. Ao pedir pouso na fazenda Aroeiras, de propriedade do coronel Aristides de Azevedo, este, encantado com a beleza e a inteligência da mulher, que poderia ser a sua nora, torna-a prisioneira, até que seu filho Luiz, advogado recém-formado em São Paulo, regresse para conhecê-la. Ao chegar, Luiz condena a atitude do pai, liberta Donina mas se vê atraído pelo seu olhar belo e misterioso. Segue-se uma seqüência de acontecimentos, fruto de uma época em que tudo se resolvia na base do trabuco, mas que faz o leitor torcer para que nasça um romance entre Donina e Luiz. O narrador é cauteloso e inteligente ao palmilhar caminhos tortuosos, armando lances cheios de surpresas, como a viagem de Donina à Corte, onde conhece Gustavo, com quem se casa, na cidade de Goiás. Mas o destino de Donina era outro. Muitas águas passam debaixo da ponte do Rio Vermelho e o tempo (e o narrador também) vai armando as artimanhas para tudo acontecer como o leitor vem torcendo desde o início da narrativa: a união de Donina e de Luiz” (Donina. Goiânia: Kelps, 2005).

Puro Bernardo Guimarães, num romance em que não faltam as mensagens sigilosas que se extraviam ou são interceptadas, tocaias e ataques traiçoeiros, intrigas de família, mal-entendidos e torpes vinganças. Ainda casada com Gustavo (que, além de tudo, é impotente!), Donina acaba por reencontrar Luiz, reatando relações que, como seria de esperar, consumam-se no que Machado de Assis chamava “a velha história de Adão e Eva”, tudo pelo acaso providencial de uma chuva na floresta em que se reuniram. O romantismo é a arte da litotes: “Sem resistirem mais, as bocas se uniram com a paixão há tanto reprimida. Luiz estendeu a capa e ajudou-a a deitar-se, cobrindo-a com a manta. Deitou-se a seu lado, sentiu o tremor que a agitava quando a estreitou contra si. Desfizeram-se da roupa interior e amaram-se intensamente, despertando nos braços um do outro com o sol já alto, os cavalos relinchando, impacientes”.

Tanto quanto Gustavo é a encarnação perfeita do vilão irremissível, Luiz é a figura paradigmática do cavalheiro romântico: “Diziam que Luiz era o retrato do pai na mesma idade. Alto, esbelto, olhos claros, cabelos castanhos emoldurando um rosto de traços finos, ainda não crestado pelo sol do Planalto. Os gestos medidos davam impressão de segurança; a fala pausada, de reflexão, força contida, firmeza. (...) Destinado a uma brilhante carreira pública”, resolveu “dedicar-se aos seus interesses, ser o sucessor do pai (...).” Na partida de Aroeiras (enfim libertada com a chegada de Luiz), Donina encontra-o por acaso na varanda: “Era um bonito rapaz, mais alto que Eduardo (o marido falecido). Aparentava cerca de trinta anos. Ao contrário da maioria dos homens de então, não usava bigodes nem barba. Como era de esperar, tinha o semblante sério, preocupado”.

De seu lado, ele deparava com o par ideal e correspondentes perfeições físicas: “Que beleza de mulher! Mariana lhe dissera que era bonita mas ele não esperava tanto. Que rosto perfeito, harmonioso. (...) A voz dela foi uma segunda surpresa. Pelo que ouvira do pai, imaginava-a de timbre duro, metálico. Era de um contralto suave”. Mais perfeição seria impossível, simétrica e correspondente, por um lado, às belezas naturais da paisagem e, por outro, ao requinte das grandes reuniões mundanas: “Quando chegaram a música ainda não começara mas os salões já estavam repletos. Militares em uniforme de gala e condecorações, civis de casaca, onde se destacava um raro crachá ou roseta, as senhoras em grande toalete, ostentando as melhores jóias (...).”

Ferido na emboscada que armara contra Luiz, o asqueroso Gustavo é eliminado num ato de eutanásia familiar que ninguém se preocupou em esclarecer, assim liberando a ditosa Donina para seguir o seu destino ao lado do apaixonado Luiz.

 

 

 


 

24/11/2005