Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 14.9.2002



Os eleitos 


 


 

O Romantismo criou o mito do poeta como gênio adolescente e espontâneo, possuído dos deuses e dominado por línguas de fogo, mas a realidade, sempre mais rasteira, responde que os gênios existem, sim, mas são raros, e que a grande poesia é obra de maturidade e cultura intelectual, duas coisas que só se adqüirem com o passar dos anos, com o conhecimento de muitas cidades, como dizia Rilke, e com a vida feita de experiência (não de "experiências", como costumam repetir os que não leram Camões ou não perceberam o que dizia).

A poesia também exige cultura literária por parte do leitor (estamos vendo), o leitor capaz de avaliá-la enquanto obra de arte literária e criação do espírito. Por isso mesmo, há sempre, em cada momento, os muitos que são vistos e se vêem a si mesmos como poetas simplesmente porque escrevem versos, ao lado dos poucos que escrevem versos por serem poetas. Aqueles, fazem poemas "com palavras", mas os outros fazem poesia com "idéias poéticas", singularidade responsável pelas desleituras, contraleituras e tresleituras a que foi condenado para sempre um postulado irônico de Mallarmé.

Com O lote clandestino (Rio: Topbooks, 2002), Adriano Espínola, poeta de fundas leituras, propõe, por assim dizer, a demonstração desses princípios no quadro-negro. O livro é um palimpsesto de textos, em que é possível perceber, apagadas sob a escrita atual, as pegadas que os grandes poetas foram deixando à sua passagem. É o cantor da cidade moderna e das cidades modernas, estruturadas pela sucessiva acumulação da experiência mental, do tônus orgânico; "Atravessando a Praça de José de Alencar, / por entre carros, vozes, buzinas e caras apressadas, / sinto por um segundo / como se cruzasse o viaduto da Avenida Anhangabaú / ou saltasse do subway de Nova York, / embaixo do Madison Square Garden […]. Talvez meus passos acontecessem também / na Avenida da Liberdade, em Lisboa, / ou no Largo da Carioca, no Rio […]".

Nenhuma transcrição fragmentária dará as dimensões ou o volume desse longo poema de abertura ("Minha gravata colorida"), no qual são sensíveis as harmônicas, e até as citações, de Fernando Pessoa, por exemplo, ou Walt Whitman, ou, em plano doméstico, o irrequieto Oswald de Andrade: "Só o Cinismo nos unirá. / Poeticamente. Politicamente. Socialmente." Sem esquecer o Grande Pã chamado Carlos Drummond de Andrade: "Não faça versos sobre o momento./ Nem sobre as palavras / em estado de pânico ou de dicionário. / Tampouco sobre estalos, estilos, / praias provisórias ou crenças irreparáveis." É a poesia literária no sentido literal, quase um caderno de leitura ou exercícios de solfejo, se não for o ressurgimento da poesia coletiva, esparsa em tantos poemas nas mais diversas línguas, nos ecos irrecusáveis de tantos versos que ficaram cantando na memória.

Em cada poeta autêntico, a ontogenia literária é uma recapitulação da filogenia, como se dizia ao tempo do cientificismo oitocentista. Montez Magno, nas palavras de César Leal, é "poeta dos mais completos, portador de um trágico sentimento da vida", mais uma vez comprovado em Câmara escura [Poesias (1988/2001). Recife: M&M Editor, 2002]. É poeta "que tem um conceito bem definido da poesia como arte e não mera confissão romântica. Ele é consciente de sua linguagem e da linguagem da poesia. A vitalidade de seus recursos expressivos, a que não falta o bom emprego da metáfora moderna, faz de Montez Magno um poeta merecedor de atenções de uma crítica não afastada das distinções entre literatura e filosofia […]."

A atenção da crítica, consciente ou não de tais distinções, é o que mais tem faltado a Montez Magno, cuja obra ainda não se projeta em escala nacional. Mas, capaz de fazer sentir a vida transitória e o sentimento da morte por meio do mundo metafórico: "Foram tantas as folhas perdidas neste inverno / que a primavera recusou-se a surgir / como sempre faz avisando. / Mesmo assim permaneci calado / embora atento e abrindo o portão / toda vez que algum pássaro cantava / o aparecimento da flor uma surpresa / guardada há meses pelo intenso Sol." Nessa poesia, "as gerações são como as folhas das árvores", observa, ainda, César Leal: "Quando chega o outono, as folhas caem e são substituídas por outras, em seu ciclo eterno", sugerindo a Montez Magno estes "versos de grande e trágica beleza": "Resta nas folhas a presença do outono / que as envolve no chão em pleno sono".

Isso lembra o melancólico Charles d'Orléans, de quem tampouco andam longe as nostalgias sentimentais de Gerardo Mello Mourão (Algumas partituras. Rio: Topbooks, 2002). É certo que, em fase recente de sua obra, o "chamado da terra", o sentimento de brasilidade ou de brasilismo tornaram-se mais imperiosos, como, neste volume, a "Suíte do couro ou Louvação do couro", em si mesmo de nostalgia, como observa na página introdutória: "Já não urram bois nas soltas e nas serras silenciosas. Acabaram-se os chocalhos plangentes da rês que caminhava vagarosa por campina e vale. Acabaram-se os vaqueiros encourados que andavam pela chã ou pelo monte […]. Acabaram-se os rebanhos bovinos sertanejos, numa predação ecológica cruel […]. Mas o boi é um fantasma […]".

Como são fantasmagóricas aux yeux du souvenir (Verlaine) as paisagens hialinas, as cidades míticas de que o poeta se impregnou em outros séculos, agora revividos em poemas de alta cultura, "sem Ariadne, sem fio, uivos às vezes". Ressurge das camadas mentais resguardadas pelo tempo o que deixou de pertencer-lhe: "Todo homem é uma filha […]. Quem abriria os seus baús? Pois alguma dia / Todo homem foi algum pirata / Todo homem, alguma vez, náufrago foi / no poço do mar / com sua proa seu galeão […]."

E assim revemos velhos cartões postais amarelecidos: Atenas, Belém de Judá, Belém do Pará, Praga, Rimini, Nova York, Istambul… Tendo visto muitas cidades, condição essencial, segundo Rilke, para escrever poesia, Gerardo Mello Mourão cristalizou os seus mitos na música destas partituras


 

 

 

 

 

22/09/2005