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Valéria Nogueira Eik


 


O pó da terra


 

 

— Seu Juvená, as vaca tão muito aperreada, hoje.

— O que pode estar acontecendo, Sindalfo?

— Num sei não sinhô.

— Pode ser cobra.

— Podê até que pode, se bem que elas tão andando meio discanteio, urtimamenti.

— Fique atento e qualquer novidade, venha me avisar.

Sindalfo saiu gingando o corpo forte sobre os passos descalços.
Sempre se recusara calçar botas ou mesmo chinelos, e Seu Juvenal nem mais se importava com isto e até acreditava que o empregado tinha o corpo fechado para as maldades dos bichos peçonhentos que habitavam aquele imenso pedaço de terra.

Ao longo da vida, escutara e vivenciara muitas estórias sobre cobras, e todas elas só faziam aumentar o seu medo e respeito pelas serpentes.
Juvenal Obirapitanga comprara aquelas terras ainda virgens.

Derrubou grande quantidade de mata e enfrentou a fome, o frio, tocaias e até jaguatiricas, sobrevivendo a tudo e mais um tanto.

Caçava cobras como ninguém, jararacuçus, em sua maioria.

Cansou de topar, olho no olho, com urutus-cruzeiro, que eram assustadoras e quase sobrenaturais, exibindo uma cruz logo acima do olhar penetrante e hipnotizador.

Juvenal, homem determinado e de compleição robusta, muitas vezes quase sucumbira ao terrível encanto das serpentes.

E aprendera de forma rápida e rasteira, que jamais poderia olhar diretamente para elas, pois se o fizesse, uma fraqueza esquisita se apoderava de sua vontade, transferindo a própria coragem para os dentes da cobra e a sua vida para o pó de onde viera.

Laçava as peçonhentas, colocava-as em caixas próprias e despachava quilos e quilos de cobras vivas para o Butantã, recebendo soro antiofídico como pagamento.

Casou-se com Dona Dileide, uma quase menina de dezessete anos, que lhe deu quatro filhos.

Os nomes dos rebentos eram escolhidos de acordo com as datas dos nascimentos e o primogênito foi registrado como Januário Juvenal Obirapitanga, devido ao parto ter ocorrido em janeiro.

Já o segundo filho recebeu o nome de Setembrino Juvenal

Obirapitanga.

O terceiro foi Agostino Juvenal Obirapitanga.

E o último, a rapa do tacho, teve um azar diferente dos irmãos, pois Dona Dileide teimou em colocar no filho, o nome do galã da sua novela preferida de rádio.

Juvenal protestou, mas, quando a mulher queria alguma coisa, era melhor concordar, pois discordar dela tornava a vida dentro de casa muito difícil, aliás, muito mais árdua que a labuta no eito.

Sendo assim, o último filho recebeu o nome James Waterloo Obirapitanga.

E ai de quem pronunciasse “Jâmes Vaterlôo”.

O infeliz era corrigido no ato, sem dó nem piedade pela Dileide.

— É Di-ei-mis! Di-ei-mis U-ó-ter-lú!

Mas, isso ainda são águas futuras que não alcançam os moinhos do passado.

Quando Januário nasceu, foi amamentado fartamente no peito, que quase rebentava de tanto leite.

Dormia num berço tosco, ao lado da cama simples do casal.

E a mãe, exausta pela lida do dia, adormecia logo após acomodar o filho, e parecia surda a qualquer ruído que não fosse o ressonar do bebê.

Pois estava ela a dormir e quase a roncar, quando Juvenal entrou no quarto, tropeçando no próprio sono e tateando a noite através da luz precária que vinha do lampião.

A sua visão ficou petrificada ante a cena que se desenrolava à sua frente, e fez com que ele despertasse do cansaço, entrando num pesadelo sem nem mesmo ter adormecido.

Dileide estava com o seio à mostra e uma grande cobra mamava em seu peito, não desperdiçando uma só gota de leite.

Juvenal ficou desesperado, pois ao menor movimento, seu, da esposa ou do bebê, a cobra poderia assustar-se e transformar aquele momento numa tragédia.

Nesse instante de dúvida e pavor, a situação resolveu-se por conta própria, e a serpente deslizou suavemente para fora da cama, completamente satisfeita, saindo pela fresta da parede de tábuas por onde tinha entrado.

Naquela noite, ele não dormiu.

Ficou vigiando o rasgo da parede, munido de um porrete.

E quando os primeiros raios de sol entraram no quarto, ele saiu à procura de mais tábuas para remendar a pobre casa, que era quase uma choupana.

Decidiu que daria um lugar mais seguro e bonito para Dileide, afinal ela era uma mulher que merecia tudo e muito mais, apesar de ser quase tão braba quanto uma urutu-cruzeiro.

De dia, era enérgica e trabalhadeira.

Cuidava do filho, da casa, da horta, da criação e ainda sobrava um tempo para namorar as suas pequenas rosas de todas as cores, que subiam tábuas acima, perfumando o telhado e o céu.

De noite, quando o cansaço não era do tamanho do mundo, ela se tornava mulher e deixava Juvenal aceso de paixão e tão satisfeito como um padre que acabou de jantar.

E a vida ia caminhando naquela terra finalmente lembrada por Deus.

Os outros dois filhos vieram, as jaguatiricas se foram, a fazenda ganhou forma e Juvenal se tornou um homem importante na região.

Arrastou a luz elétrica da cidade para a fazenda, e muito mais tarde, mandou instalar um telefone, que às vezes e aos berros, completava as ligações.

O último filho veio como resultado de uma grande noitada, que começou com uma festa regada à pinga, guaraná e cerveja, um gigantesco boi na brasa, e muita dança e alegria.

Eles voltaram para casa trançando os passos que estavam encharcados de álcool.

Somente as estrelas da madrugada ouviram as risadas de Dileide e as palavras obscenas de Juvenal e quando eles se atracaram na rede da varanda, numa peleja que não era briga, elas fecharam os olhos e deixaram vir os primeiros clarões da alvorada.

Nove meses depois, James Waterloo veio ao mundo e se acomodou no velho berço e nos braços da mãe.

Os meninos cresceram.

E a vida ficou muito distante da labuta rude de antigamente.

Januário virou doutor de gente.

Setembrino se tornou doutor de obras.

Agostino optou por ser um doutor das leis.

E James Waterloo, resolveu ficar de vez na capital, desejando alçar vôos artísticos, numa tentativa de seguir os passos do antigo astro das novelas de rádio.

Juvenal torcia a boca num completo desdém pelas preferências do filho e dizia para si mesmo ou para quem quisesse ouvir:

— Até que eu não posso reclamar da vida. Tenho quatro filhos doutores. Um de gente, um de obras, um de leis e o caçula, um doutor da vagabundagem!

E virando-se para a mulher:

— Veja o que você fez com o rapaz, Dileide. Colocou um nome tão esquisito no menino que ele resolveu achar que pode ser ator. Ator, meu Deus! Nem parece ser meu filho.

— Cale-se, Juvenal! James ainda vai ser motivo de muito orgulho para todos nós. Já pensou quando ele estiver encenando no melhor teatro da capital e seu nome estiver estampado em grandes cartazes espalhados pela cidade?

— Espero que ele não coloque o sobrenome, pois não quero morrer de vergonha. Antes ser picado por uma serpente à moda antiga.

— Como à moda antiga, homem?

— Oras! Daquelas que não conheciam gente e eram muito mais ferozes.

— Bate na madeira, Juvenal. Que horror!

As noras entraram, uma a uma, na estória dos Obirapitanga.

Os netos se abancaram do colo de Dileide.

E o sossego tomou conta do tempo.

Na varanda, a rede balançava pra lá e pra cá, acariciada pela brisa e pelo perfume das pequenas rosas de Dona Dileide.

Sindalfo chegou correndo, esbaforido e suado, tirou o chapéu em sinal de respeito ao patrão e quase gritou com a voz esganiçada pela emoção:

— Seu Juvená! É cobra! Um bando delas e eu achei o ninho! E já tem umas vaca caindo pelos canto da fazenda.

— Pois então, vamos até lá, Sindalfo. Chame o Dito e o Jacinto pra ajudar.

Juvenal pegou a longa vara com laço, que ficava de tocaia na sala de visitas, armou-se também de uma espingarda, montou seu cavalo predileto e saiu galopando pela fazenda, como há muito não fazia.

Encontrou os empregados na encruzilhada, e juntos entraram pasto adentro, indo Sindalfo na frente, para mostrar o lugar.

— Tá perto, seu Juvená. Tá muito perto!

Nesse momento, uma cobra picou a perna do cavalo de Juvenal.

Homem e animal foram para o chão.

E todos se depararam com a serpente colorida, uma coral.

O fazendeiro quebrara o pé na queda, mas, mesmo assim, levantou-se com esforço, agarrou a espingarda e fez uma pontaria certeira, estraçalhando a cabeça da cobra no primeiro tiro.

Olhou para o seu cavalo que estava agonizando e o segundo tiro foi disparado pelas mãos da misericórdia, aliviando assim a dor do animal condenado.

— Seu Juvená, o sinhô num póde continuá. Pega o meu cavalo e vorta pra casa. Nóis aqui damo conta do recado.

— Não, Sindalfo. Vamos em frente que estamos chegando na toca dessas desgraçadas.

E chegaram.

E foi um tiroteio tão grande que mais parecia festa de São João.

Eles contaram quinze cobras corais mortas no chão.

Se não fosse feio, seria até bonito de se ver.

Juvenal não entendia o que estava provocando esta volta das serpentes para o mundo quase civilizado.

Devia ser um desequilíbrio ecológico, desses que estavam muito em moda, ele pensou.

Eles estavam todos tão absortos nos destroços das cobras, que não repararam o bote certeiro de uma retardatária, que cravou os dentes na coxa direita de Juvenal.

Sindalfo pegou o porrete e matou o bicho, antes que ele fugisse.
Voltaram para casa, carregando o patrão, que aos poucos foi entrando numa sonolência perigosa e sem volta.

Não houve tempo que desse jeito no tempo e o veneno agiu de forma violenta, levando a vida de Juvenal para muito longe das serpentes, dos filhos, dos netos e de Dileide, que jamais foi a mesma sem o marido.

As roseiras ainda florescem e perfumam os telhados e o céu.

As estrelas ainda se lembram das risadas de Dileide.

Mas, agora, ela apenas aceita as horas, e espera, impaciente, que a neve termine de descolorir os seus cabelos, para que finalmente, a sua visão enxergue o fundo do infinito e Juvenal.

Os três filhos são doutores em alguma coisa, e James Waterloo se tornou um grande ator, usando, com orgulho, o sobrenome do pai.

Ele só não compreende porque sua mãe nunca vai aos teatros para vê-lo em ação.

E jamais saberá que ao fazer a homenagem ao velho, uma espécie de profecia se cumpriu, fazendo com que uma serpente à moda antiga cravasse seu veneno na vida de Juvenal, lançando-o na grande boca da terra, que rapidamente se fechou, cobrindo-o de pó.

 

 

 


 

27/07/2006