Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Ubiratan Brasil


 

Escritora canadense revela os mistérios
da obra de Clarice Lispector


 

O Estado de São Paulo, Brasil


 

Claire Varin lança 'Línguas de Fogo', livro em que analisa o sensível método da autora
 

A escritora canadense Claire Varin teve um estremecimento quando consultava os manuscritos de Clarice Lispector, deixados na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro: em meio a livros e anotações, ela encontrou um envelope em que estava escrito "cabelos". Ao abri-lo, emocionou-se ao tocar a mecha ligeiramente encaracolada, que pertenceu à escritora. "Foi o contato mais próximo que tive com ela", conta Claire, ao lembrar da cena acontecida em 1983, quando veio pela primeira vez ao Brasil. Pretendia ficar dois meses, mas permaneceu 16, alimentando uma paixão pelos escritos de Clarice que resultou no livro Línguas de Fogo (Editora Limiar, 192 páginas, R$ 24), a ser lançado na segunda-feira, às 19 horas, na livraria Fnac (Av. Pedroso de Morais, 858).

Trata-se de um mergulho nos escritos e na vida de Clarice Lispector, que morreu em 9 de dezembro de 1977, véspera do aniversário de 52 anos. Uma escritora cuja obra ardente, enigmática e responsável por um movimento ficcional absolutamente novo despertou paixões. Como a de Claire Varin que, estudante de Letras na Universidade de Montreal em 1979, nada sabia sobre a escritora quando leu a versão francesa de A Paixão Segundo G. H. "Eu me identifiquei de tal modo com seu estilo de escrever que não conseguia pensar mais em outro escritor", conta Claire que, depois de ler todas as traduções disponíveis da obra de Clarice, tomou uma posição radical: precisava aprender o idioma português. Mais: necessitava conhecer a terra que abrigou Clarice.

Chegou ao Rio em 1983 e logo entrevistou Paulo Gurgel Valente, filho da escritora. Depois, ouviu suas irmãs, Tânia Kaufmann e Elisa Lispector. Com eles, conseguiu uma lista de autores que poderiam fornecer mais informações preciosas, como Rubem Braga, Lígia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Otto Lara Resende, cuja afetuosa amizade resultou no texto Claire e Clarice, que abre Línguas de Fogo. "Foram conversas maravilhosas, especialmente com Otto, que adorava contar histórias", comenta a escritora. "Infelizmente, como não gravei nada, não tenho mais condições de, hoje, escrever uma biografia de Clarice, como gostaria."

Outro importante contato foi Olga Borelli, secretária de Clarice em seus últimos dez anos de vida. "Ela forneceu informações preciosas, mas o gesto mais importante foi permitir o acesso aos documentos originais que estavam em seu poder." As diferentes visões permitiram aprofundar a imagem que já suspeitava da autora de Perto do Coração Selvagem - uma mulher com os sensores sempre alertas e que comunicava suas sensações em silêncio, exclusivamente por meio de sua escrita.

A organização de todos os dados que recolheu nos 16 meses que passou no Brasil resultou em uma tese de doutorado defendida em 1986, no Canadá. Texto que, depois de reformulado e limpo de jargões acadêmicos, tornou-se Línguas de Fogo. "Não precisei conhecer pessoalmente Clarice", observa. "A magnitude de sua obra já é suficiente."


 

Livro mostra Clarice como domadora de línguas
 

Segundo Claire Varin, o conhecimento de vários idiomas, especialmente o iídiche, foi decisivo
 

Nos 16 meses em que passou no Brasil, em 1983 e 84, a canadense Claire Varin procurou ver o País através dos olhos de Clarice Lispector. "Vivi no mesmo bairro que ela, o Leme, no Rio, e, da minha janela, tinha a mesma vista do Oceano Atlântico", conta a escritora que, a partir da análise da obra e das conversas com amigos que conviveram com Clarice, elaborou conclusões decisivas.

Como a influência dos idiomas na vida de Clarice. O ponto de partida foi uma frase, encontrada em um manuscrito: "Vivo 'de ouvido', vivo de ter ouvido falar." "Clarice bebeu em segredo o leite das línguas e, desde pequena, tinha um bilingüismo oculto", comenta Clair, que descobriu com Elisa, irmã da escritora, a confirmação de que ela entendia, quando criança, o iídiche falado pelos pais. "Suas experiências auditivas a mergulham desde a infância em um estado de desestabilização de uma língua única pura."

Claire acredita que os conflitos de identidade de Clarice se intensificam nas fronteiras em que se encontrava a sua mescla singular de línguas. "Enquanto ouvia o iídiche, ela aprendia o português e, mais tarde, quando vive em outros países, toma contato com o francês, o inglês e o italiano", comenta. "Ela ouvia demais e sentia demais, toda linguagem lhe interessava, principalmente o silêncio, a entrelinha, o não-dito. Por isso que seus livros têm uma articulação estranha: estão sempre entre duas línguas."

Para a escritora canadense, que hoje dirige uma revista de literatura em Montreal, era curiosa a forma como Clarice justificava seu defeito de pronúncia, em que não pronunciava direito o "r". "Ela dizia ter língua presa, mas acredito que a torrente de línguas com que ela se expressava era a causa principal."

Antes de Línguas de Fogo, Claire Varin escreveu outro livro sobre Clarice, Rencontres Brésiliennes (Encontros Brasileiros), em que faz uma curiosa colagem, reproduzindo trechos de manuscritos da escritora ou mesmo frases pinçadas em entrevistas com comentários ouvidos de amigos a respeito daquele assunto. Ainda sem tradução no Brasil, o livro, segundo sua autora, coloca-se como importante complemento ao Línguas de Fogo.

Claire continua relendo a obra da escritora brasileira, mas não planeja, por ora, produzir outro livro sobre o assunto. No momento, preocupa-se em escrever sobre a morte. Explica-se: ela mora em uma bela casa que foi uma funerária. "Muitos mortos passaram por lá, o que afastou muito comprador em potencial. Isso não me preocupa, pois eu busco as energias positivas, que sempre existem."

 

Clarice Lispector

Leia Clarice Lispector
 

 

 

 

 

20.01.2006