Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Teresa Cristina Bouçada Mauro


 

Do médico, sua bondade e o paletó xadrez

 

A rua é bem no “miolo” da cidade. Muito arborizada, à noite é até escura e deserta, contrastando com o intenso movimento do dia. Há casas mais antigas, muito bonitas no seu estilo, e outras mais modernas. Uma vizinhança boa e simpática. Morava eu entre dois casarões e, adiante ao da esquerda, um sobrado de bonitas janelas, grande jardim, com laguinho e estatuetas brancas, havia a casa do médico. Do querido médico, “pai de todos”: Dr. Walter Gomes Rosa.

Seu consultório simples vivia cheio de clientes de todas as idades, remediados, com mais posses e os pobres, principalmente. E de cidades vizinhas também. Ele atendia a qualquer hora e, chamado à casa de algum doente, sempre não podendo sair do consultório no horário normal, não deixava de ir: chegava, mesmo que fosse lá pela meia-noite. Cedinho, às vezes cinco da manhã, eu ouvia seus passos - um pouco arrastados - na calçada: já ia ver algum paciente ali por perto. Tratava de toda a vizinhança, com dedicação e amizade.

Conta-se até - e sei que é verdade- que numa tarde de consultório lotado e a frente da casa com muitas pessoas à espera na calçada, perguntou:

- Quem pode pagar a consulta?

- Eu posso! (vários responderam logo)

- Eu também posso!

Um número bem razoável. Com aquele jeito de falar mais lento, tão característico seu, tirou os óculos e disse:

- Então, por favor, quem pode pagar peço procurar outro médico de sua confiança, porque eu só vou atender àqueles que não podem pagar.

Até às vinte e três horas o consultório dele ficou aceso...

*

Seu velho carro verde, que não tinha tempo de tomar um banho e passar por uma revisão, dormia na rua, aberto. Certa vez, de manhãzinha, os varredores encontraram Dr. Walter dormindo dentro dele...

Numa tarde, houve grande rebuliço ali naquela esquina: roubaram o aparelho de pressão do Dr. Walter, que ele esquecera no carro. A revolta foi geral :

- Como? Roubaram Dr. “Walti”? Mas quem foi este desgraçado? - Roubaram o aparelho de pressão do Dr. Valter ? Por que não roubaram de outro médico aí ?

- Infeliz deste “filho da mãe”, vai pagar nos infernos ! Onde já se viu roubar o Dr. “Walti”?

Foi aquela agitação, ficou todo mundo de prontidão, na expectativa de pegarem o ladrão. A intranqüilidade tomou conta da cidade.

Passaram uns três, quatro dias, chegou ao consultório um rapaz querendo falar com Dr. Walter. Meio sem jeito, com uma sacola na mão, insistia com a mocinha, a secretária, que lhe dizia:

- Não tem mais ficha, só amanhã.

- Mas eu preciso falar com ele!

- Mas não dá, moço. O consultório está cheio, olhe aí.

O rapaz olhou e todos já pensavam: “Será que ele vai furar a fila e passar na frente?” Começou um zunzum.

- Moça, mas é importante, deixa eu falar com ele!

Nisto Dr. Walter abre a porta e, naquela santa calma, segurando os óculos, pergunta:

- Que está havendo aí ?

O rapaz olhou para ele, abaixou a cabeça e disse:

- Vim trazer o aparelho que apanhei no carro do senhor. Não estraguei não, nem mexi nele, está perfeito.

O silêncio total caiu na sala de espera. Não sei quantos olhos contemplaram a cena. Uns três homens se levantaram caminhando para a porta de entrada-saída, certamente para não deixarem o ladrão fugir.

Ouviu-se a voz do médico:

- Olhe, meu rapaz, não faça mais isto porque este aparelho me faz muita falta: só tenho este. Você sabe que é um aparelho importante para o médico. E, além disto, você também sabe que...

- O senhor me desculpe, Dr. Walter! - falou o rapaz, já entendendo a grande lição.

Ele bateu no ombro do pecador e disse:

- Muito obrigado, sim? Você me fez um grande favor em trazê-lo: muito obrigado, viu? Vá em paz!

Acho que muita gente chorou ali naquela sala.

*

Numa outra ocasião, ladrão entrou em sua casa e roubou uns quadros, obras de arte. Nossa Senhora! Dona Noêmia, sua esposa, entrou em pânico:

- Pois é, é assim que agradecem ao Walter!

Dr. Walter não deu queixa à Polícia, nem nada comentou.

Numa noite, lá pelas vinte horas, horário do “Jornal Nacional” na TV, todo mundo quieto em suas casas, abri a janela do meu quarto, que dava para a rua. Bem à minha frente, mas na calçada de lá, meio escondido atrás da árvore, vi - apesar do escuro da rua - um homem forte, talvez moreno, de paletó xadrez grande, em amarelo e preto. Fumava e olhava para todos os lados. Logo fechei a janela.

Daí a mais algum tempo, abri do novo: o homem estava lá, cigarro aceso, mais adiante um pouco e olhando para nossa casa. Fechei a janela. Comentei com minhas irmãs e ficamos um pouco assustadas. Mas esquecemos o fato e dormimos.

Na noite seguinte, naquele horário de tudo quieto, ouvi crianças gargalhando embaixo da minha janela e, então, a abri: estavam riscando de giz as pastilhas da frente da casa. Zanguei e elas se foram. Dei uma olhada geral na rua e já ia fechando a janela quando deparei com o homem lá: o mesmo paletó xadrez grande, amarelo-preto, de frente, olhando para nossa casa. Puxei depressa a janela, apaguei a luz do quarto, avisei minhas irmãs e ficamos olhando pelas venezianas e frestas do lado. Nós não o víamos, mas ouvíamos seus passos pra lá e pra cá ...

Telefonamos para os vizinhos do lado:

- Já repararam?

- Não, mas não deve ser nada.

Deitamo-nos preocupadas.

Na terceira noite abri, corajosa, a janela. O paletó xadrez estava lá. Fiquei olhando para ele um bom tempo e, então, o homem atravessou a rua em minha direção. (“Jesus do Céu, vem ele!”)

- Boa noite, senhora !

- Boa noite. (Eu estava toda arrepiada!)

- Eu estou reparando que a senhora está preocupada, vendo-me aqui todas as noites...

- É...é...

- Mas não há motivo, eu sou detetive. (“Detetive? Neste paletó xadrez, amarelão-e-preto, cigarro aceso? Neste estilo assim, tão “chamativo”? - pensei)

- Detetive? E o senhor está “detetivando” o quê, aqui na nossa rua? - perguntei.

- Estou a serviço do Dr. Walter porque a casa dele foi assaltada, não sei se a senhora ficou sabendo. Mas eu peço à senhora sigilo, porque ninguém deve saber que sou detetive e nem desconfiar disto e reparar que estou por aqui observando. Certamente a senhora sabe como é o trabalho de um detetive, não? (“Com este paletó e esta língua solta?” - pensei).

- Então, boa noite, pode ficar sossegada.

- Boa noite, senhor. (“Incrível! Com este paletó, como não ser visto e reparado?”)

- Gente! O homem é detetive do D. Walter ! - falei pra dentro da casa.

- O quê? Será verdade?

No dia seguinte, esperei Dr. Walter almoçar e descer para o consultório. Entrei, contei tudo para ele e perguntei :

- É mesmo detetive a seu serviço, Doutor?

- Bem, eu contratei um detetive sim, mas nem averigüei se ele está em serviço, até esqueci! Mas se ele está usando este paletó xadrez amarelo-e-preto, tão pouco discreto, vou verificar.

Naquela noite não vi o paletó, nem o detetive.

Na manhã seguinte, quando cedo saí para o trabalho, Dr. Walter estava calmamente debruçado sobre a gradezinha da entrada de sua casa, no seu pijama azul.

- Olhe, minha filha, não é preciso preocupações: não há mais detetive. Bobagem minha, quem vai entrar em minha casa? E também, com aquele paletó e assustando vocês, de bom detetive ele não tinha nada!

Rimos e eu lhe agradeci.

Sempre bom e santo Dr. Walter! Inesquecível !
 

 

 

 

 

20.07.2005