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			Gilberto Mendonça Teles 
   
			Respiração boca a boca  
 
			in Jornal do Brasil, Idéias, 13.11.1999
 
			
 
			Em seu livro de estréia, Alexandra Maianão foge da emoção nem do erotismo
 Poesia
 
 
			CORAÇÃO NA BOCA Alexandra Maia
 Sette Letras, 72 páginas
 R$ 15
 GILBERTO MENDONÇA TELES
 
 
			  
			Em uma de suas conferências, de 1944, T. S. Eliot trata da 
			dificuldade do crítico diante do poeta novo e iniciante, dizendo que 
			um bom critério para avaliar a possível originalidade (ou não) de 
			sua obra é o de "deixar a nossa sensibilidade livre para reagir 
			naturalmente". Mas o melhor teste - escreve - "é quando alguma 
			expressão, alguma imagem (ou verso) voltam à nossa memória".  
			Pois foi o que se deu com este Coração na boca, de Alexandra Maia. 
			Li-o à noite e, de manhã, na minha caminhada, algumas imagens, 
			versos, temas e até o jeito especial de terminar o poema foram 
			surgindo e me acompanhando, atraindo a minha atenção, por mais que 
			eu insistisse em olhar as palavras que passavam pedalando e as ondas 
			que se movimentavam pelo calçadão.  
			Assim, boca a boca, fui fazendo respirar o corpo inanimado dos 
			originais que me olhavam de cima da mesa, a me fazer a mesma 
			pergunta do poeta: Trouxeste a chave? O título servia para a 
			percepção da diferença entre os significados lingüísticos das 
			expressões "com o coração na boca" (o suspense) e "com o coração na 
			goela" (a fraqueza) e a significação literária de Coração na boca, a 
			exprimir, na redução do título, o elevado grau de emoção que 
			percorre o sentido mais profundo deste livro.  
			A idéia de um corpo de emoções em Coração na boca - o corpo 
			despedaçado de Osíris ou de Orfeu - me ajudou a organizar um 
			itinerário de leitura, a partir das duas palavras do título, vistas 
			numa cadeia descontínua de imagens corporais. Reunidas pelo olhar 
			amoroso do leitor, elas compõem o eu lírico que fala sempre em 
			primeira pessoa e se deixa perceber, de maneira fragmentada, ao 
			longo dos poemas. Isto explica a freqüência de palavras como corpo, 
			braços, mãos, dedos, pernas, coração, sangue, pés, rostos, língua, 
			olhos, boca, seio, cabelos, peito, pulmões, cotovelos, sem as 
			repetições, e na ordem em que aparecem no volume. É claro que a 
			enumeração aumenta se se contam as citações indicadas e metafóricas 
			que fazem do livro de Alexandra Maia um todo emocional que enleia o 
			leitor, como no canto amoroso da Iara.  
			Esse corpo fragmentado se mostra mais facilmente nas suas duas 
			vertentes de emoção: a do Amor, com a sensualidade percebida mais 
			nas imagens que nas palavras, e a da Terra, projeção quase mítica do 
			imaginário amoroso no sentido da fertilização. Os poemas iniciais 
			deste livro passam a imagem do amor como coisa do passado, como uma 
			grande emoção recolhida na tranqüilidade do poema, como diria o 
			poeta inglês; são "memórias ecoando em meus vazios", são "as pernas 
			cada vez mais distantes,/ cada vez menores/ diante de um chão 
			impossível". Mas a partir do poema "Diário" , o amor se transforma e 
			se presentifica, torna-se mais sensual e atinge o erotismo numa 
			linguagem expressiva e original.  
			Versos como "E sobram pernas, línguas e estremecimentos/ até o 
			amanhecer" (de "A noite"), "tocamos o inefável"(de "Ah") e os do 
			pequeno poema "Copo de leite" dão a dimensão maior do amor sem 
			fronteiras com o corpo atingindo sua plenitude erótica (no bom 
			sentido latino) e esbarrando na frustração da continuidade, da não 
			maternidade, como no poema "Todo mês".  
			Logo a seguir, o poema "Enfermaria" leva a metamorfose a um nível de 
			alta sensualidade: o sujeito lírico se diz terra e fala no 
			"movimento da língua escavatória" e em "desejo escorrendo no azulejo 
			branco", num belo verso nominal que deixa o poema em suspense. 
			Vacilando e transitando entre o amor e a natureza, em busca de uma 
			saída para o impasse de uma filosofia existencial que se documenta 
			em vários poemas ("Recorte" e "Estar humano", por exemplo), 
			Alexandra Maia se vê diante de uma dupla solução: de um lado, Deus, 
			mas um Deus um tanto anestesiado, mítico ou metafórico; e, de outro, 
			a consciência da construção de uma linguagem poética à solução na 
			Poesia.  
			Assim, quando fala em Deus é como se estivesse falando de limites, 
			como no poema "Ah", onde o amor atinge o "inefável" e os amantes 
			encostam-se "nos pés de Deus" para depois caírem de novo na cama. 
			Mas é em "Sinal" que Alexandra Maia cria a mais bela imagem de Deus: 
			falando da garça que vive nos esgotos da Visconde de Albuquerque no 
			Leblon, escreve: "É o desenho livre de Deus amassado no chão".  
			O livro de estréia de Alexandra Maia, Coração na boca, se não revela 
			ainda uma artista capaz de fundir as técnicas tradicionais com a 
			modernidade, mostra, de maneira exemplar, uma vocação poética 
			indiscutível, uma linguagem nova, uma dicção límpida e convincente, 
			uma intuição admirável na conclusão dos poemas, quase sempre com 
			versos apodícticos, como em "Pesadelo", cujo último verso, melhor 
			diria monoverso, tem a serenidade de uma proposição poética 
			necessária: "O saber do mundo me escorre das mãos".  
			Ou como no final de "Eternidade", perfeito no pórtico do terceiro 
			milênio: "Olho para frente/ Espero em paz,/ sentada no topo de mim."
			
 * Poeta, crítico e professor Titular de Literatura Brasileira na 
			PUC-RJ
 
 
			  
			Leia Alexandra Maia 
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