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Soares Feitosa

 

 

Sobre as mãos

 

 

225 - Sobre as mãos

 

O Coronel falou sobre as mãos. Direcioná-las aos punhos de uma rede, não para armar uma forca, mas a desmanchá-los e refazê-los novos, quando rotos, no dia de alguma grande chateação.

Confirmou que o processo mais eficiente para aplacar a tempestade interior é com as mãos, justamente elas, disponíveis porque do lado de fora do compasso, tal qual nos desenhos que há pouco nos mostrara. Serrar madeira para fazer uma porta, consertar um ventilador. Ou até mesmo bater um ovo. Isto mesmo! Comentou que haveríamos de abordar também a técnica de bater ovos, com as mãos, de prato e garfo, no momento em que fôssemos discutir a didática.

Didática? Seria ele também professor além de eletricista de ventiladores e tecelão de punhos de rede, como acabou de afirmar? Tenho todo o direito de pensar que este relato maluco e respectiva reunião da Biblioteca “viajam” em espiral, a cena seguinte ganhando complexidade sobre a anterior. Vejam, neste lance das mãos, lembrei-me imediatamente da história do Coronel adolescente, na casa do padre, partindo para uma bomba de puxar água, possesso, louco, dizendo à beata que ia passando que estrangulava o rival com uma mão e com a outra alisava o lombo de uma novilha gorducha; desculpem, de uma noviça, quando, real, apenas puxava água em grande fúria, em tempo de rebentar os encanamentos e secar a cisterna da casa paroquial.

Seriam aquelas mesmas mãos de pura fúria de então que ele dizia agora capazes de mostrar o caminho de errar ao descaminho? Antes mesmo que eu formulasse a pergunta, ele já veio com a resposta:

— Sim, meu caro Djalma, elas mesmas! Temos que “amarrá-las”! E, para isso, nada mais proveitoso do que botá-las a trabalhar. À caixa de ferramentas, meu caro Bibliotecário! Toda casa tem uma caixa de ferramentas! Talvez aqui mesmo em sua cela tenha uma. [Tem, é claro, das ferramentas de restaurar as velhas revistas e reencadernar algum livro mais precioso]. E mais falou:

— Derramar tudo no chão, em cima de um jornal. Limpar todos os parafusos, catalogá-los pelo tamanho em vidros vazios, desses de azeitona ou palmito. Botar rótulo em cada um, bem legível, coberto com fita gomada transparente para sujar depois. Azeitar o mandril da furadeira. Amolar as brocas, lubrificá-las e guardá-las em papel manteiga, devidamente catalogadas, embrulhando a maior com uma volta completa do papel, melhor com duas voltas; depois a seguinte com mais duas voltas, e assim sucessivamente, sempre da maior para a menor. 

E, tomando-se de um novo fôlego, concluiu:

— Pronto, senhor Bibliotecário! Levantar-se do chão! Nesse contato com a terra, justamente pelo lado correto do Compasso da Terra, com a bunda diretamente enfiada no chão — e as mãos em boa porfia! — quando menos você se der conta, terá “matado” todos os inimigos. Em paz. Pacificado. Um banho frio, uma espiga de milho assado. Um bom pedaço de queijo de coalho com rapadura do Cariri. Um copo d’água gelada. E café! E se tiver tapioca, tanto melhor que seja com tapioca e manteiga da terra. E a rede! É evidente que a rede, agora de punhos novos, já deve estar armada para receber um corpo inteiramente combalido depois de luta tão severa: a luta consigo mesmo, da parte alta, as mãos; com a parte baixa, a serpente. 

Foi o suficiente para me ocorrer um pensamento cruel: seriam aquelas mãos, isto mesmo, as mãos do senhor Coronel, quando enfiadas na bagaceira da gaiola quebrada pela mãe... Teria sido aquele ato de enfiá-las, mãos, em novo labor, sentado no chão, à luz de uma lamparina, reconstruindo a gaiola, fazendo o alçapão, que o livrou, ainda menino, de estrangulá-la?

Não me atrevi ao comentário. Nem a olhar para ela. Nem para ele. Apenas olhei para o judeu do cavanhaque, que alisava as dele, mãos, e com elas tentava enrolar uma cigarrilha. Enrolou e enrolou, mas desistiu, ainda bem, de fumá-la. Perguntei:

— Coronel, o senhor me desculpe, mas o Professor sem braços não tem mãos...!

— Claro que tem, meu caro Djalma! Embora não as tenha porque as perdeu para a gangrena, mas as mãos, ainda que aleijadas pela talidomida, só os botões no alto do ombro, sempre estarão presentes no homem, senão pelo físico, hão de estar pelos olhos, pelos pés, pela boca... Você já viu, meu claro Bibliotecário, como é que Professor sem braços pega num copo d’água para beber? Claro que é como qualquer um de nós... Com os dentes! Ele morde o copo e bebe a aguinha dele sem derramar um trisco! Sim, só as mãos é que são algo irremissível! O Homem, o Homo Faber, de pura luz...  As nossas mãos... Em busca do rosto do outro, que quanto mais distante, mais legítimo. Não! Não há desastre que nos rompa as mãos! — e concluiu:

— O senhor quer violência? Saia por aí, com elas, mãos,  gesticulando, esbravejando, bradando e brotando. É morte certa, de matar ou morrer.

— E os algemados, Coronel, como ficam os algemados?

— É soltá-los imediatamente! Todo aquele que tiver sido condenado com base em depoimento sob algemas, tem o direito à imediata liberdade!

Não preciso contar o tamanho da salva de palmas ao senhor Coronel, afinal de contas isto aqui é um presídio. Ele disse:

— Vejam, meus amigos, se o cidadão for culpado, o seu aspecto aterrorizado e aterrorizante — pelas algemas — induzirá a “mais culpado”, um agravante à margem da lei. Se for inocente, as algemas lhe desfigurarão a face. Em qualquer caso, inocente ou culpado, as algemas, sobretudo na hora de se entrevistar com a autoridade, são um absurdo.

— E o camburão, Coronel?

— Veja, meu caro Djalma, a lei de trânsito determina que ninguém pode viajar no espaço da bagagem. Muito menos que não esteja sentado e com o cinto de segurança devidamente afivelado. Ora, se o preso vai conduzido a granel, igual a porco e bode, no vão da bagagem, é claro que não estão zelando nem um pouco por sua integridade. Como se dissessem: se morrer, um a menos! 

Marton, meu segundo auxiliar de bibliotecário, sugeriu que seria razoável verificar se haveria alguma viatura transportando alguém a granel, ali, naquela hora. Claro que havia! Era meu compadre Manoel Severino de Souza, libertado recentemente, e preso logo depois, quando tomava, de assalto, um televisor de uma farmácia na Vila Matilde.

Manoel ficou muito encabulado em retornar assim tão ligeiro e encontrar a prisão sob aquela aparente festa que era a reunião da BIblioteca. O Coronel deu ordem que o soltassem daquele chiqueirinho dito camburão. Soltaram-no sem discutir

— Uma falha do sistema previdenciário! — disse o Coronel.


Este texto é um capítulo de Salomão

um livro em processo. 

E prossegue neste outro:

Um cronômetro para piscinas 

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[Soares Feitosa é o editor do Jornal de Poesia]

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