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Soares Feitosa

Salomão

O Relato do Bibliotecário

 

 

231 - Sobre a estética - silêncios

 

Mal terminaram de bater nas latas, conferindo-as vazias, outro barulho tomou conta de minha modesta cela. Era o senhor Piloto nº 1, em sua carruagem de fogo, apeando-se, descarregando, desdobrando e armando, rapidíssimo, uma mesinha dessas de bar-de-calçada, já com toalha e tudo. Aliás, para ser honesto, não lembro se havia toalha.

Antes de qualquer função porém, Sávio, o estudante, disse que queria dar um testemunho sobre a estranha "viagem" que o Coronel fizera, de jumento, em torno de uma árvore. Contou que um dia o pai o levara, ainda muito pequeno, para um passeio na linha Sul, de trem, até Quixeramobim. 

Alguns protestos por conta da interrupção, mas não era eu apenas que estava curioso para saber o que Sávio, o estudante, teria "visto". Acenei que sim. 

Ele contou que na curva do "S", na subida da serra de Baturité, quando menos se deu conta, o carro em que iam, o último da composição da antiga RVC, quase pegou a máquina do trem, assim tão de perto que lhe deu vontade de esticar a mão pela janela para segurá-la. Aliás, até esticou não só a mão, mas o corpo inteiro, e que nem sabe como não caiu lá embaixo, no abismo, salvo que foi pelo pai que lhe agarrou, ligeiro, as pernas. E, susto maior, a locomotiva, imediato, "mudou-se" para o outro lado. E tudo aquilo que estava à sua esquerda mudou-se para a direita. Disse que fez carreira para também mudar-se à outra janela, mas o pai, assustado, o segurou pela mão.

Contou que reparou no semblante do pai enquanto este o segurava. Disse que o pai lhe pareceu por demais enlevado com vagão deles pega-não-pega a locomotiva que ia lá na frente, polmando fumaça, na subida, nas curvas.

— Agora eu sei, meus amigos, como é esta "vertigem"! — disse Sávio, o estudante, com redobrado fervor, tanto pela história em si mesma como também pela lembrança do pai — o melhor pai do mundo! — como ele costuma dizer, já se benzendo e levantando a mão direita aos céus não sei quantas vezes.

A súbita emoção de Sávio, o Estudante, parece que despertou em cada um de nós algo semelhante para contar. Até os cegos, os surdos, os mudos, os coxos e os aleijados teriam, cada qual, a sua respectiva "viagem". A minha? Não. Não! 

Desculpem-me.

Os trabalhos foram então retomados em direção à mesinha de ferro que o senhor Piloto acabara de armar. 

Rapidamente, a senhora mãe do Coronel achegou-se à “tenda” recém-armada. Confirmou-a em ordem, e desculpou-se:

— Falha minha, senhor Bibliotecário! Meu filho não avisou... As frutas do quadro mostrado há pouco, desse tal Rugendas, estavam aqui mas não havia mesa para servi-las...

Eu disse que sim. Maldade minha porém, tenho que ela as mandou buscar pelo Piloto, ligeiríssimo, já sabemos de suas velocidades. Bom, de uma forma ou de outra, se as frutas estavam em sua indecifrável bolsa de palha de carnaúba ou se o Piloto as pegou, nenhuma diferença, porque todos fomos servidos, e bem, com destaque ao monge cego, Jorge, do Sancto Officio.

O monge ficou muito admirado com o mamão. E com os seus respectivos doces: o branco, de só-açúcar, que pode ser com ou sem coco; o escuro, bem mais saboroso, opinião quase unânime na sala, com rapadura ou mascavo (no lugar do açúcar), coco, cravo-da-índia, raspas de casca de limão e fragmentos de cascas cristalizadas de laranja.

Grande admiração também aos tomates, que só foram introduzidos na região do mosteiro do senhor monge alguns séculos depois. A mãe do Coronel os garantiu saudabilíssimos para a próstata, um tal licopeno pelo meio. E, surpresa minha, os tomates também foram servidos em compota. Doce de tomate, quem já viu!? A madrinha afirmou que é facílimo de fazer. E, no ato, passou a receita:

— Pegar uns tomates não excessivamente maduros, metê-los na cuscuzeira de vapor para lhes retirar a película. Pode fazer também sem retirá-la, mas é melhor retirar porque o tomate é uma das hortaliças mais maltratadas com o veneno de combater insetos. Preparar uma calda de açúcar, cravo e um fio de mel. Não dispensar a raspa de casca de limão nem os fragmentos de casca de laranja secos ao sol. Adicionar os tomates inteiros, com ou sem sementes, tanto faz. Dar o ponto, evitando que fique rala a calda. Botar para esfriar e gelar numa bela compoteira ou até mesmo numa tigela. Servir no estilo e arrebatar o elogio. E se botar dentro uma bola de sorvete de baunilha?! Melhor nem botar, frei Jorge, se não a visita retornará todas as noites. É prejuízo garantido!

Ah, ia-me esquecendo: o doce de mamão, tem que ser com a fruta ainda verde, cortada em tirinhas bem finas — assim instruiu a tal madrinha-preta. Pode usar o cortador de cenoura. Bom, depois desse pequeno ensaio gastro-culinário, o monge bem mais calmo, pediu ao senhor Coronel que explicasse melhor a tal estética de superfície, mas advertiu que o Sancto Officio seria impiedoso com blasfêmias e desrespeito aos santos da Igreja, única e verdadeira, segundo ele, a de Roma.

Contudo, a curiosidade maior era mesmo a minha. Pedi licença e interrompi:

— Coronel, por favor, qual é mesmo a mágica do delicioso bolo-só-casca?

— Ora, meu caro Djalma, é muito fácil! Tenha em mente que o sabor do pão e do bolo é dado pela área exposta à fonte de calor. A rigor, saboreamos a “quantidade de fogo” de que se impregnou o produto, nem de mais, nem de menos... Não há quem consiga comer a massa crua...

— ?

—Veja, uma rede de dormir estendida ao sol, para secar, bem espalhada, quanto mais espalhada, melhor. Contudo, você pode secar a mesma rede na sombra do vento, dentro de casa ou na secadora elétrica. Mas quem disse?! Sabor de sol, cheiro de sol, gosto de sol e saúde de sol, só se a rede estiver muito bem esticada no caramanchão de sol. Pode até ser no lajedo, que grandes lajedos para secar redes é o que não falta por lá, no sertão...

— ?

— Agora experimente embolotar uma roupa para secar. Por mais bem lavada que tenha sido, ficará fedendo! É uma questão de fonte, seja do calor, seja do frescor  da noite, no caso da água de beber...

— Cuidado, senhor Coronel! Não me venha com as “artes” da noite! Isto começa a perigar feitiçarias.

— Não, frei Jorge! Veja, por seu favor, uma questão de emanação... Como diria o filósofo que andava pra lá e pra cá na sala de aula...

— Aristóteles — gritou alguém.

— Sim, ele mesmo! O primeiro motor... Qual, meus amigos, o primeiro motor do assado? É o fogo, é claro! Qual o primeiro motor da rede cheirosa? É o sol-quente. Logo, se você aumenta a área de exposição ao fogo, ao sol... Rudimentar, meu caro Watson!

— Elementar, Coronel! — corrigiu alguém, mas ele nem se tocou.

— Tem um porém, senhor Bibliotecário! Cada fogo é um fogo diferente! Nem pense que assar bolos no forno de gás é a mesma coisa que assá-los no “joão-de-barro”. Churrasqueira elétrica? Só se for para passar mal! Tem que ser na brasa de lenha seca. Se a lenha ou o carvão for de sabiá, uma madeira de aroma culinário, o elogio será em dobro. Todo mundo sabe que se o fogo for feito no barro será muito proveitoso. Tanto melhor se diretamente no chão. Ah!, senhor Djalma, prepare-se para comer além da conta!

— Aroma culinário, senhor?

— Sim! Cada madeira, em seu respectivo fogo, tem suas características, de temperatura também. As brasas da aroeira e do angico são muito mais quentes do que quaisquer outras. É impossível assar carnes com troncos de coqueiro. Nem do caule do mandacaru se extrai madeira aproveitável para lenha e carvão. Não é apenas a quantidade de calorias. Um termômetro apenas para conferir o fogo não é suficiente...   

— Sim, Coronel. E o bolo-só-casca, qual a mágica?

— Bastou ampliar a área em contato com a fonte de emanação... moldando a massa do bolo em tiras bem finas, redesenhando a assadeira numa espiral necessariamente destra senão adoeceríamos todos. No pão não foi diferente: uma pequena bolota, de modo que, por quilograma de massa, tivéssemos uma maior área de contato com a fonte do sabor, o braseiro do forno.

— ?

— Veja, meu caro Djalma, aqueles furinhos aparentemente inúteis nas bolachas e biscoitos, para quê? Ora, ora, aqueles furos todos são “área de assar”! No mesmo propósito, aqueles desenhos de superfície que todo biscoito de qualidade tem, relevos, sulcos e socavões. Para quê? Para produzir maior contato com a fonte de emanação, o fogo, o sabor. O fabricante coloca o nome nos biscoitos, em relevo, alto ou baixo, tanto faz. Divulga a marca e os assa melhor!

— Coronel, o senhor me desculpe, mas ainda não consegui entender o que essa sua culinária provaria no campo da estética! — interferiu o professor Pedro César, mas cá para nós, sem demonstrar convicção mais firme. Foi um dos que mais comeram.

Veja, senhor professor, a beleza de um desenho de Da Vinci não está no intrínseco da tela... Por favor, pegue este prospecto. [Era um dos cartazes de turismo das ilhas onde se refugiara, num tempo distante, aquele príncipe denunciado pelo irmão]. Peça, por favor, a lente do Historiador. Repare agora: a imagem se compõe de múltiplos pontinhos... Só superfície, só silêncios... 

—?

De fato, professor, a Arte se compõe mesmo é de ausências... De três únicas cores, o vermelho, o amarelo e o azul que os fabricantes de cartuchos de tinta para impressora chamam magenta, yellow e cian. Mas não será misturando as tintas num tinteiro que se vai obter o matiz desejado... É “misturando”, sim, as três cores... uma se ausentando das outras, de modo que cada uma reflita uma pequena ligação na seguinte e vice-versa, em rede... em web... em pensamento... Na cabeça do pintor... Só silêncios!

— Em... em sinapse...?

— Isto mesmo, senhor professor! Da mesma forma, num prato qualquer, o sabor verdadeiro é apenas uma alternância do salgado, do doce, do azedo e do amargo, cada um se ausentando do outro...

—?

— Também na música, com maior destaque na música, onde há muito mais silêncios do que barulhos. E na fala, senhor professor!

— Na fala, Coronel? — indaguei, assombrado porque nunca me ocorreu alguém possa falar em silêncio, a não ser os mudos, pela linguagem dos sinais.

— Sim, meu caro Djalma, na fala também. Sobretudo na fala. Veja nesta pequena frase que você terminou de pronunciar: «na fala, Coronel?», há toda uma perfeita alternância de som e silêncio. Uma escala de sons e respectivas pausas... Diziam os antigos que na natureza não existe o vácuo... Meu ponto de vista é outro: não existe o contínuo. Tudo é casca, tudo é superfície. Veja [Então o Coronel pronunciou a frase muito pausadamente, acentuando cada ênfase com a mão, sílaba a sílaba]: Na- -fá- -la- - -Có- -ro- -néu?

Não sei porque, mas à medida que ia-me deixando convencer, fui assaltado por outra dúvida:

— Coronel, naquela história do novilho, misturada com a dos talentos, o senhor me desculpe, mas parece que a coisa não fecha muito bem... Um elo perdido...? Por favor, Coronel, como é que o filho rebelde há de ganhar —não falo em nenhum novilho especial, mas numa rês qualquer, ainda que enjeitada e  manca de uma das patas? Como poderá ele receber o mínimo talento? Isto, o senhor me desculpe, não ficou claro.

Rembrandt van Rijn, Holanda, 1606 - 1669

 

A Volta do Filho Pródigo

Antes que o Coronel respondesse, Kolbe, tão prudente, tão calado, disse:

— Tenho que reconhecer o tino nas respostas do senhor Camundo quando ele mencionou a escrita “entramelada” no texto sagrado. De fato, a viagem só se completa quando nos tomamos ao "de-volta", como se fosse naquele salto para trás, no jumento, da história de há pouco, o salto, para ficar de costas à correnteza, simbolicamente a recusa ao passado. A busca ao "de-volta" é que garantiu este outro “novilho”, o verdadeiro novilho e todos os talentos: «Eris hodie mecum in paradiso...»

O monge Jorge traduziu: «Hoje mesmo estarás comigo no paraíso». Foi o suficiente para a senhora mãe do Coronel recitar, aliás, tentar recitar, porque desta vez o advogado Rogério "ganhou": «...lembra-te de mim, quando vieres com teu reino», Lucas, 23.42.

Os crentes se entreolharam e alguém balbuciou: «Uma só palavra...!» E, tão clara como a água da fonte, mostrou-se o entremeio de todas aquelas cousas de ver, ouvir e alisar. 

Não seria " entramelo"

Tanto faz! — disseram os sertanejos.

E, entremelados de susto e assombro, enfiamos a cara de chão adentro — o cimento da cela —, agora rejuvenescido com as sobras das frutas e a acidez dos doces.

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