Soares
Feitosa |
Jornal
de Poesia
|
Salomão
O
Relato
do Bibliotecário
Um
aviso:
Isto
aqui é apenas um rascunho. Com muitos erros, gramaticais até. Deixo a revisão para depois. Anote-me, por
seu favor, os erros. Mande sugestões, palpites, reprimendas
até. Mando o abraço.
8
- Chegam os primeiros convidados: a senhora negra, a
jovem muito pálida, o velho padre e um negro, um negro
muito forte
No
mesmo instante vinha chegando uma pequena multidão. À frente
de todos ,
um ancião (era um padre), seguido por uma senhora,
negra, e por uma adolescente muito alva, tão pálida como se
todos os poucos anos que tinha, os tivesse passado escondida
dentro de alguma furna, sem ter visto jamais a luz do Sol.
Atrás dos três vinha um negro, um negro muito forte.
Estranho
que o negro, em sendo forte, tremesse tanto. Ele trazia um
facho, exatamente como se fosse uma estaca de madeira. (Contava
o Capitão que quando precisavam iluminar alguma
"mercadoria" no tal veleiro brigue, do tempo da
escravidão, e, como não dispunham de lanternas nem de faróis,
davam vários golpes na ponta de uma estaca de madeira, abrindo-a
em dezenas de felpas, como se fosse um espanador, e lhe tocavam
fogo, que seria um fogo duradouro a depender de ser uma madeira
grossa e resistente). Pois o negro trazia um facho, aceso, que
não sei como não se apagava, lá no alto da vara, o fogo, pra
lá e pra cá, tremendo.
Os
guardas cochichavam que ele seria um lutador de luta-livre;
outros diziam que seria o tal Pajeú, o lugar-tenente do chefe
da Guarda Católica, de um bando de fanáticos que
os militares degolaram lá no sertão. Também admitiam que ele
poderia ser o chefe de uma rebelião de escravos, um tal Zumbi.
Em suma, cada um dava uma versão diferente à mesma
pessoa, o tal negro tremedor. Todos, porém, eram unânimes em
lhe justificar o facho.
Se
ele for mesmo o lutador, espero que não vá esborrachar a
cabeça do inimigo com aquela acha de lenha acesa. Prefiro que o
tal facho venha a servir apenas para acender alguma fogueira de
justa comemoração. Se for o Chefe dos Jagunços, a estaca
também estará adequada porque dizem que era nas estacas das
cercas e nos garranchos das árvores que eles espetavam os
inimigos (vivos!) do Conselheiro. Se
for o tal escravo rebelde, a acha de lenha também estará
correta, porque eles faziam uma paliçada em volta do
acampamento com estacas pontiagudas para espetar o branco
invasor, mas tal paliçada de nada adiantou porque um certo
Diogo os esmagou a todos, impiedosamente, inclusive ao chefe
deles, o tal Zumbi.
Em
qualquer caso, o negro estava a caráter com aquela estaca na
mão. O tremor é que não tinha explicação num negro tão
forte, porque, afinal, nem o padre, tão alquebrado, nem a
senhora negra, nem a jovenzinha mostravam medo algum.
O
padre sempre à frente no grupo dos quatro, e logo atrás a
pequena multidão propriamente dita, e nela se destacavam, pela
algazarra, três cegos e já falaremos deles.
Todos
aguardaram, inclusive a senhora de cor, a jovenzinha, o negro da
tocha, e o resto da multidão, que o padre, ele mesmo, abrisse
completamente o portão de minha cela, e, depois dos
cumprimentos a mim dirigidos, dissesse:
—
Ufa!, chegamos! Como estou cansado. Louvado seja o Menino.
A
minha atitude foi imediatamente ceder o único banquinho de
minha cela ao cansaço daquele ancião. Por coincidência, o
dito banquinho estava repleto de revistas velhas, à tarefa de
recuperação das palavras cruzadas da Biblioteca. O padre tomou
a iniciativa de dizer que naquele assento a única pessoa que
haveria de se sentar seria aquela senhora, e lhe pronunciou o nome
com muita emoção — Dona Rosa Parks! — para quem,
segundo ele, aquele único assento sempre estivera reservado. E
que ele, não obstante todo o cansaço, ficaria em pé, no
máximo se permitindo recostar, por um instante — e fez
questão de dizer: por um instante só! —, à parede.
Para
surpresa de todos, Dona Rosa declarou que não se sentaria de
maneira alguma, porque o banquinho (e logo o desocupou das velhas revistas) seria utilizado como
escrivaninha por uma secretária, aquela jovenzinha que os
acompanhava, especialista em
diários, a senhorita Ana,
parece que Ana Francisca. Ela, e ninguém mais, as faria.
A
jovenzinha pegou as revistas, já no chão da cela, e as
empilhou, ali mesmo, no chão, como se fosse um banco; nele
sentou-se, com algum desconforto certamente. Em seguida assumiu meu
banquinho ,
abrançando-o,
como se uma escrivaninha de alto luxo. Abriu um estojo
de lápis, conferiu se estavam apontados, retocou um deles
rapidamente, e disse:
—
Senhor Bibliotecário Djalma, meus cumprimentos. Em nome do
Menino, gostaríamos que o padre Kolbe abrisse esta reunião,
afinal ele é o primeir...
9
- Da chegada dos cegos, três, e, com eles, a balbúrdia.
De quebra, o engenheiro militar
Quem
disse que a jovenzinha conseguiu terminar a frase? Os cegos,
que, seguidos do restante do pessoal, já haviam adentrado à
minha pequena e modesta cela, iniciaram, os cegos, a maior
balbúrdia, certamente porque não estavam "vendo" a
solenidade daquele momento. Nem o pobre padre conseguiu falar
coisa alguma, de modo que a reunião iniciou-se assim mesmo. A jovenzinha continuou anotando tudo, sem reclamar.
Antes
de falar dos cegos propriamente ditos, merece registrar a
interferência de um senhor que se dizia engenheiro militar (e
repórter enviado por um jornal) garantiu que ali estava para anotar toda a
reunião, com especial destaque ao que o fanático e seu
grupo de facínoras disserem. Olhou rapidamente para o negro
da acha de lenha e foi logo comentando:
—
O espécime deve ser um sertanejo, que do litoral não é. Um
forte!
Dona
Rosa Parks pediu-lhe, com cortesia, que ficasse quieto, porque o
banquinho que servia de escrivaninha à jovenzinha das
anotações não seria de maneira alguma cedido a ele. Garantiu
entregar-lhe, no final da reunião, uma cópia das anotações
da jovem; que ele poderia, depois, no conforto da cidade,
acrescentar o que bem quisesse, mas não esquecesse de fazer
referência à fonte.
A
surpresa, de imediato, foi um dos cegos (era um cantador),
tentando fazer um improviso com o "Canudos não se
rendeu!". Gritaram lá de trás que aquilo já havia
sido escrito por outro militar, um tal Macedo. O repórter
militar pediu licença para se retirar, como de fato se retirou,
prometendo que depois leria o diário da jovem.
Os
cegos então tomaram conta. Um deles, de nome Jorge, um monge
bibliotecário saído diretamente de um livro da Idade Média,
de um mosteiro de estranhos assassinatos, passou a dizer, sob
insistência grave, como se as palavras rígidas lhe saltassem
diretamente das órbitas escurecidas:
—
O Cristo nunca riu. O riso é uma encarnação do demônio. Só
o demônio ri. O Cristo não ri! Jamais riu!
Veremos que
este assunto ainda vai render. E muito.
10
- Da estranha cantoria das pacas. Do deus mais terrível
e do menino mais amado.
Outro
cego e de igual nome, Jorge, indagava sobre a Biblioteca.
Insistia em saber tudo da nossa Biblioteca, a média de
leitores, o número de autores, quantos livros, essas coisas
próprias de um Bibliotecário cuidadoso como sempre me esforcei
para ser... — e meus temores se acenderam, quanta aflição, a
nossa pobre Biblioteca iria mesmo cair nas mãos de um cego!
Muito estranho também que esse novo Bibliotecário, em sendo
cego, tenha perguntado com insistência se os vidros da estante de algumas obras raras eram espelhados.
Espelhados?,
para que os espelhos? Então ele não seria um cego verdadeiro?!
Espelho?! O novo Bibliotecário queria implantar um sistema de
labirintos para guardar os livros de alquimia, que são muito
poucos.
—
O livro da fundação tem que ficar na parte mais
inacessível do labirinto. Como também, muito bem guardado
será o livro que contém parte das decifrações da letra E
— disse o escritor cego.
Cego?
Ah, meu Deus, adeus Biblioteca, agora nas mãos desses loucos!
Finalmente,
o outro cego, Aderaldo, com a cara de flagelado da Seca —
talvez fosse um cearense —, queria porque queria iniciar uma
"peleja" com o Capitão, dizendo que o Capitão seria
um tal negro Zé Pretinho dos Tucuns, e, imprudente, o tal
Aderaldo sapecou um repenteio de viola no meio daquele ambiente
solene (a minha modesta cela), para acompanhar uma
muito esquisita história de pacas, que ele mesmo respondia em
voz de falsete, imitando o outro Cantador, como se o Capitão
fosse o tal Pretinho dos Tucuns. Acho que anotei corretamente,
de memória:
Cego:
Amigo José Pretinho,
Eu nem sei o que será
De você depois da luta —
Você vencido já está!
Quem a paca cara compra
Paca cara pagará!
Pretinho:
Cego, eu estou apertado,
Que só um pinto no ovo!
Estás cantando aprumado
E satisfazendo o povo —
Mas esse tema da paca,
Por favor, diga de novo!
Cego:
Disse uma vez, digo dez —
No cantar não tenho pompa!
Presentemente, não acho
Quem o meu mapa me rompa
Paca cara pagará
Quem a paca cara compra!
Pretinho:
Cego, teu peito é de aço —
Foi bom ferreiro que fez —
Pensei que cego não tinha
No verso tal rapidez!
Cego, se não é maçada,
Repete a paca outra vez!
Cego:
Arre! Que tanta pergunta
Desse preto capivara!
Não há quem cuspa pra cima
Que não lhe caia na cara —
Quem a paca cara compra
Pagará a paca cara!
|
Pretinho:
Agora, cego, me ouça:
Cantarei a paca já —
Tema assim é um borrego
No bico de um carcará!
Quem a caca cara compra,
Caca caca
cacará!
Houve um trovão de risadas,
Pelo verso do Pretinho.
Capitão Duda lhe disse:
— Arreda pra lá, negrinho!
Vai descansar o juízo,
Que o cego canta sozinho!
Ficou vaiado o pretinho,
E eu lhe disse: — Me ouça,
José: quem canta comigo
Pega devagar na louça!
Agora, o amigo entregue
O anel de cada moça!
Me desculpe, Zé Pretinho,
Se não cantei a teu gosto!
Negro não tem pé, tem gancho;
Tem cara, mas não tem rosto;
Negro na sala dos brancos
Só serve pra dar desgosto!
Quando eu fiz estes versos,
Com a minha
rabequinha,
Busquei o negro na sala,
Mas já estava na cozinha —
De volta, queria entrar
Na porta da camarinha!
|
Nisto,
para desespero do monge cego, caímos todos numa risada
geral. Confesso que nunca ri tanto em minha vida! Por outra,
não vi se o monge Jorge riu. Acho que não. Ante a risadaria que não havia jeito de acabar, muito sério,
o Coronel impôs a ordem:
—
Viemos comemorar o Menino. Isto é sério! O Capitão jaz
neste catre como um morto, e vocês todos neste pagode! — e
apontou para o Capitão, que parecia acordar.
O
Capitão, surpr eendendo a todos menos ao Coronel, que sempre o
soube cabra ligeiro, mete os pés e se levanta, os olhos
esbugalhados num fogo intenso, e do fundo da garganta grita:
—
Qual o mais terrível Coronel?
—
?
—
Qual o mais perverso Capitão?
A
angústia de Salomão estampava-se nos olhos incendiados —
que se apagaram novamente, morte definitiva, ou, quem sabe,
simples "desligamento" sem nenhum compromisso com o
Tempo, assim os homens do Século Cem, de Ésquilo.
O
cego Jorge, o novo Bibliotecário, tomou a palavra e disse,
solene e grave, que ali seria
muito importante definirem não o Capitão mais terrível ou o
Coronel mais perverso, porque afinal isto — Capitães e
Coronéis — não tinha a menor importância. Importava, sim,
saber qual o Menino mais amado. O
Menino!? E todos repetimos a uma só voz:
—
O Menino mais amado! Qual? O Menino!? Quem? O mais amado!?
Quem é?
Ah,
meus senhores e minhas senhoras, o pau quebrou na minha
modesta cela. Um disse: O negrinho do
abutre, meu voto é dele. Outro
garantiu que votaria no Menino da
manjedoura, sem referir muito claramente que Menino seria
esse. Também houve votos em favor do molequinho dos
carcarás. Contudo, ninguém votou na menininha da onça
pintada, certamente de puro machismo.
11
- O papel da fundação da biblioteca, um papel...
Quando,
repentino, chegou um detento que participara do massacre do
veleiro do Naval, coisa da mesma época da sinistra data não
comemorada no fatídico sesquicentenário.
Pois
bem, o tal detento, que atendia pela alcunha de Ra nze, adentra
a cela com um pedaço de papel na mão, aos gritos e em estado
de choque, chamando por mim e pelo Capitão:
—
Pronto, Bibliotecário Djalma, estamos salvos, a Biblioteca,
senhor Bibliotecário, a Biblioteca! Acorda, Capitão, a
Biblioteca! Eu achei, eu achei! Veja, Bibliotecário Djalma,
vejam todos, vejam, eu achei! Eu achei! A Biblioteca! Eu
achei!
—
O que achaste, meu filho? — indagou-lhe um ancião que até
ali estava calado, um camisolão azul, um cajado imenso, uma
barba imunda, todo desgrenhado, mas uma voz rija, um olhar
inquebrantável.
—
O papel, senhor!, o papel da fundação da Biblioteca !
Vejam,
é o velho jornal do maconheiro, retirado aos pedaços da lata
de lixo, em que o nosso Bibliotecário Djalma leu a notícia do
lançamento de um certo livro, e foi neste papel que ele conseguiu o endereço do poeta que remeteu o
livro... E, do livro, os livros... Vejam, o papel é imun... —
No que foi atalhado, em tom de conselho, pelo senhor do
camisolão azul:
—
Imundo, meu filho, e isto não tem a menor importância! Que o
jornal da fundação da Biblioteca seja imundo, não importa!
Daqui lhe vejo as sujeiras e lhe sinto a fedentina, mas isto
não tem a mínima importância, porque também imundo era o
papel em que o carrasco um dia marcou com tinta imunda os dez
dedos desta senhora! — e apontou para Dona Rosa Parks.
Também imundo o estábulo, onde a manjedoura... Porque
igualmente imundo o chão dos abutres, onde o negrinho... Ah,
meu filho, nem dá para descrever como era imundo o
carrapichal, onde o casal de fiéis apodrecia... O molequinho
alimentado sob as mãos dEle... Pelo bico das feras dos
céus... Amém!
—
Louvado seja!
E
todos, ali, nos ajoelhamos e, contritos, rezamos ao Menino.
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Continua
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