Soares
Feitosa |
Jornal
de Poesia
|
Salomão
O
Relato
do Bibliotecário
Um
aviso:
Isto
aqui é apenas um rascunho. Com muitos erros, gramaticais até,
mas é assim mesmo. Deixo a revisão para depois. Anote-me, por
seu favor, os erros. Mande sugestões, palpites, reprimendas
até. Mando o abraço.
1
- Do massacre — é de lá que eu venho
No
mesmo instante, o Capitão apagou. Não sei se está morto ou se
apenas dorme, mesmo porque, neste Século Cem, de Ésquilo, é
muito difícil falar da "morte real virtual", ou se se
trata apenas de uma licença, como se uma suspensão da vida
para um leve acordar mais tarde, alguns séculos depois, ou
alguns séculos antes; afinal, perdemos completamente a noção
do Tempo.
Isto,
a morte ou a "licença" do Capitão, investigaremos
depois. Agora não há tempo. Preciso ajudar nos serviços da
Festa do Menino, a se iniciar daqui a pouco, no primeiro minuto
do dia 14 de março do Ano Dez Mil, conforme instruções
recebidas do tal Coronel-cantador, que ontem mesmo conheci.
Agora
eu lhes trago — afinal o Capitão dorme ou morre — O Relato
do Bibliotecário.
Sou
o prisioneiro Djalma Vicente de Souza Carvalho, Prontuário de
nº 490.822.317-17, Casa de Detenção de São Paulo, prisão
conhecida em todo o universo pelo nome de Carandiru.
Os
motivos de minha prisão, por favor me poupem de contar. Em
especial depois que um senhor que escrevia sobre insetos que se
transformavam em homens — ou era ao contrário? — em
definitivo resolveu o problema estar preso ou estar solto,
porque, em qualquer caso, as razões são as de Sua Excelência,
o Magistrado.
Estou preso. Isto basta.
Com todo o respeito, se
querem mesmo saber, perguntem a ele, o titular da 988.117ª Vara
do Crime, onde, há muitos séculos, correu ou ainda corre o meu
processo.
Venho
do massacre: 111.
Reinava
um Coronel, dito Fleury, dizem que apenas virtualmente, pois o
Coronel verdadeiro seria um tal Orestes. Isto, de quem reinava,
nunca ficou esclarecido, porque esses assuntos coronelianos
jamais se esclarecem completamente.
2
- De como surgiu uma biblioteca: um livro inesperado e algumas
revistas velhas, dessas de consultório médico.
Mesmo assim, uma biblioteca, e que biblioteca!
Um
dia, nem sei por que, me deu vontade de ler. Leitura pouca, a
minha; mesmo assim quis ler. Meus companheiros disseram que era
melhor jogar bola. Gosto de esportes, sim, mas preferi ler.
Outro disse: melhor participar da batucada. Também gosto de
animações, mas, naquele dia, preferi ler.
Aqui
não havia livros. Nunca houve. Nem jornais, nem revistas. A
diversão — nem sei se é justo pronunciar este nome,
diversão, aqui dentro do Carandiru —, mas diversão, se havia
alguma, não passava pelos livros.
Jornais?
Muito raro encontrar um jornal inteiro. Geralmente, bandas
e ou rasgões de
páginas, embrulhando ou disfarçando alguma
"mercadoria" — coisa de fumar ou cheirar, mas isto é
outra história e, por favor, não me perguntem nomes. Só assim
os jornais chegavam: aos pedaços.
Num
daqueles "jornais", procurava desesperadamente
qualquer coisa para ler. Era uma meia folha,
toda amarfanhada, ainda recente de algum "transporte". Retirei aquele pedaço de papel imundo
de dentro da lixeira, em meio a outras sujidades, uma fedentina
insuportável, e, mesmo assim, por entre os borrões, li a
notícia de um livro.
Emendando
uma letra aqui e outra acolá, consegui o nome do poeta, um tal
Antônio. Fiz a carta, a primeira em toda a minha vida.
Para
surpresa minha, o poeta mandou o livro e, completamente louco,
mandou dizer que o livro sempre fora meu (meu?), e ainda pedia
desculpas por tê-lo retido tanto tempo. Até hoje não entendi.
Daquele
livro, fundou-se a Biblioteca que administro. Faço cartas.
Cartas e mais cartas aos escritores, especialmente aos
estreantes, os que melhor atendem, pois sempre estão à cata de
leitores. Alguns "veteranos" que se julgam os tais,
ainda bem que a minoria, de pura arrogância
(ou por timidez?), nunca respondem.
Escrevo
também às atendentes dos consultórios,
pedindo revistas. Nunca chegou uma revista nova. Mesmo assim,
não tem importância que cheguem velhas, a maioria com
alguns rasgões e muitos riscos de caneta. Bigodes nas figuras
de mulher; chifres na cabeça dos homens; datas que parecem de
nascimento ou de partida; apontamentos de jogo; triângulos
trespassados por setas rijas, desenhados pelos adolescentes;
essas coisas assim.
Mas
isto também é saudável porque montamos quebra-cabeças de
modo a ajuntar uma meia-página do pavilhão 17 com um outro
terço de página do pavilhão 28 e mais umas linhas quebradas
de outras celas, e... heureca! — ganhamos a história
completa, "novinha" em folha! Que diferença faz de
uma revista nova? E ainda nos divertimos com a montagem!
Sempre
converso com o Capitão. Ele está absolutamente convencido de
que a Biblioteca prevalecerá sobre as muralhas da grande
Carandiru. O túnel?! O capitão não fala em túneis. Ele diz:
«Só a Arte, Bibliotecário Djalma, só a Arte!»
Ah,
negro resoluto! Agora a foto do negrinho dos abutres, e começo
a entender o penar da alma do Capitão. Pobre Capitão!
3
- O único legado, a Arte. Só a Arte, senhor bibliotecário
Djalma! Só a Arte!
O
Capitão me contou que essa história de Só a Arte! é coisa do tempo do
Coronel. O Coronel, um dia, conversava com um certo poeta sobre
quem era quem na literatura. O outro elogiava um escritor que
gostava de umas histórias mirabolantes, um tal Gabriel, dito
Márquez. O Coronel disse:
—
Nunca li, e não gosto desse sujeito. Ele defende
lambre as botas do tirano.
Aí
o outro teria dito, assim relata o Capitão — até desconfio
que o outro seja o tal Antônio que mandou o livro da fundação
da Biblioteca, e muito gostaria de ter essa certeza! — pois
bem, o amigo teria dito:
—
Coronel, as posições desse escritor, e de outro escritor
qualquer, até mesmo as posições de um antiqüíssimo manual
da arte de amar, o Kama Sutra, não interessam em absoluto!
Ainda
segundo o Capitão, na noite do mesmo dia, o amigo do Coronel
trouxe o livro do tal Gabriel, em finíssimo estojo
de presente, e
no livro a dedicatória ao Coronel.
Na
mesma noite, o Coronel teria lido o livro inteiro — parece que
o título tinha a ver com solidões — e declarado no dia
seguinte, agradecido, que o tal Gabriel poderia defender até
mesmo o satanás, que ele, Coronel, não se importaria. E até
ficaria na obrigação de examinar se as posições defendidas a
favor de satanás não seriam razoáveis.
O
Capitão se orgulha desta frase: Só a Arte, Djalma, só a Arte!
— e reforça a garganta na hora em que pronuncia Arte. Parece
que é mesmo escrita em letras maiores: ARTE! Ah, Capitão!
Agora, justamente agora, me aparece essa história do negrinho
dos abutres!.
O
Capitão não gosta de falar sobre esse episódio da vida do
Coronel, talvez para que não digam que a frase que ele tanto
aprecia repetir seja a mesma da dedicatória do tal Antônio ao
Coronel e não uma frase dele, Capitão, como faz, talvez
inconscientemente, transparecer quando diz: Só a Arte,
Bibliotecário Djalma, só a Arte!
Num
dia em que o Capitão dormiu além da conta, eu, remexendo nos
papéis dele, do que muito me envergonho agora, encontrei a
dedicatória que certamente ele copiou do livro presenteado ao
Coronel. Ei-la:
A
SF.,
Porque
ao Ésquilo do Século C legamos tão-somente a
nossa arte.
E
nada mais.
Minha
súplica e meu direito: leia!
L.A.,
naquele tempo.
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4
- Um cego será o novo Bibliotecário. Será ele, cego, capaz de
apagar e corrigir as palavras-cruzadas das revistas riscadas?
O
Coronel esteve ontem aqui na prisão recitando um poema de
nome Salomão e me garantiu que a partir de amanhã a
Biblioteca será administrada por um senhor, dito Luís ou
Jorge, não gravei direito. Quem sabe, pode até ser que seja
o tal Antônio — ele também é Luís —, aquele que mandou
o livro da fundação. Se for, será bom, mas se entendi
direito, a Biblioteca será administrada por um cego. Será
ele cego?
Esse
novo administrador, me disse o Coronel, será para aumentar o
projeto inicial da Biblioteca, estendendo suas atividades aos
demais presídios do mundo inteiro. Continuarei como
Bibliotecário, porém de nº 2; e de nº 3, o Capitão.
Se
é para isto, ampliar a Biblioteca pelo mundo, acho o projeto
do Coronel uma coisa abençoada. O estranho é que seja um
cego quem vai ficar à frente. Esse pessoal é mesmo
completamente louco. Se eu, que tenho vista inteira, padeço
horrores para administrar essas revistas velhas, para colar
pedacinho com pedacinho, me imaginem agora um cego!
Esqueci
de contar que uma das tarefas mais penosas na Biblioteca é
apagar as palavras-cruzadas, que, nas revistas
velhas, recebidas dos consultórios, estão todas preenchidas a tinta
e geralmente com erro.
Apago-as,
uma a uma, para que nossos leitores, cada vez em maior
número, possam, eles também, se distraírem um pouquinho com
esse interessante divertimento, as palavras-cruzadas.
O Capitão muito me ajuda nessa tarefa, e ele, por sua vez, é
um exímio palavra-cruzadista.
Como
será possível a um cego fazer isso? Como o tal cego achará,
numa palavra-cruzada inteiramente preenchida, com erro,
geralmente, o quadrinho certo a apagar? E se apagar na
linha errada?
Louco,
com certeza, esse cego; louco o tal Coronel. Ah, meu Deus,
será que a Biblioteca, tão penosamente construída, vai
acabar nas mãos desses lunáticos?!
E
por falar em lunáticos, os guardas e os carcereiros falam o
tempo todo num cometa. Dizem que já é possível, em raras
horas da madrugada, avistar alguma coisa. O tal cometa passou
a última vez por aqui no longínquo ano de 1997, quando os
ímpios deixaram sem nenhuma comemoração o aniversário do Menino. Agora, o bicho volta oito mil anos depois, não se
sabe porque demorou tanto, estranhíssima conjuração, para
vir colado na profecia de Ésquilo, do Século Cem. Estranho,
muito estranho.
Muito
estranho também o Coronel andar-se pabulando de que teria
sido no Ceará, naquele 1997, que o cometa apareceu primeiro e
foi mais visível, justo no aniversário do Menino. Ele agora
está crente de que vai ser no Ceará outra vez onde terá
brilho mais intenso.
5
- Onde se lia José, leia-se Antônio
Esse
pessoal realmente não tem jeito; o bairrismo os enlouquece!
Vejam a que ponto esse Coronel subverte as coisas: ele anda
com um livro debaixo do braço, de um certo Alencar, cujo nome
sempre foi José, mas ele já escreveu por cima, apagando o
José: Antônio, Antônio de Alencar!
Ele
me disse que com a chegada do novo Bibliotecário, eu e o
Capitão teremos folga para uma longa viagem em torno de uns
papéis muito antigos.
Deveremos
descobrir pelo sim e pelo não porque um certo "dos
Anjos" não se chama Antônio. Ele acha que nos velhos
"baptisterios" de uma capela da Paraíba, que ele
não sabe qual, eu e o Capitão encontraremos a prova
definitiva de que Augusto é Antônio, e que esse
"Augusto" entrou aí de pura vingança de uma tia,
que se sentia desprestigiada pelo santo casamenteiro que a
deixara moça-velha.
—
O Augusto é Antônio, senhor Bibliotecário Djalma! Não pode
deixar de ser.
—
Capitão, por favor, me dê um jeito nisso! Fale com o padre e
com o sacristão-anotador, leve todo o dinheiro necessário,
mas me traga as provas de que Augusto é Antônio! — disse o
Coronel ao Capitão, como se fosse nos velhos tempos, ao que o
Capitão respondeu:
—
Ah, Coronel, se fosse nos antigamentes, eu traria a Paraíba
inteira batizada de Antônios para o senhor! Até um certo
Pessoa mudaria de João para Antônio, e não haveria nego que
desse jeito... — disse, prosista, porém respeitoso, o
Capitão.
—
Nego, Coronel?
Ele
explicou que a palavra Nego, da bandeira da Paraíba, não é
exatamente "nêgo", e sim "négo", um
cambalacho dos coronéis, naquele tempo.
Muito
estranho que se coloque um "nêgo" ou um "négo"
— tanto faz! — numa bandeira, assunto que hei de
aprofundar depois, com algum historiador.
O
Coronel acrescentou-nos mais uma missão, aliás duas,
mostrando primeiro o livro que trazia debaixo do braço, do
tal "Alencar", sobre umas histórias do tempo dos
índios:
—
Esse Alencar é Antônio, senhor Bibliotecário Djalma! Não
pode deixar de ser. O Alencar é Antônio, deve ser,
ninguém escreve tão perfeito sem ser Antônio! Essa outra
missão, do Alencar, é para quando terminarem a da Paraíba.
A terceira e última, quando voltarem de Messejana, por favor,
senhor Capitão e senhor Bibliotecário Djalma, me revirem
todos os batistérios das redondezas das terras-do-sem-fim, de
Ilhéus: aquele senhor que sempre se disse Jorge, com certeza
é um Antônio! Jorge coisa nenhuma!
6
- Um nome (Antônio), ainda que só nas poeiras do vento
—
Porque eu também — disse-nos o Coronel —, antes de ir ter
com o Século Um, de Ésquilo, tenho para mim uma tarefa
inadiável nuns grotões de lá do Ceará. Primeiro, na Serra
dos Cocos, antiga Matriz de São Gonçalo, dos tempos
coloniais, de que resta apenas uma igreja velha caindo aos
pedaços, e onde reinaram uns antepassados meus. Lá, preciso
correr, folha por folha, todas as anotações da vila, pois um
certo Mourão, que se diz Gerardo, jamais Gerardo foi. Ele é
Antônio. Com certeza que é! Sempre foi.
—
Depois, desço as quebradas da serra, uma caminhada que só
pode ser feita a lombo de burro, para uma pesquisa na vila do
Ipu, onde um casal de retirantes ia passando e, não se sabem
os motivos, mas agora vou sabê-los, o nome de um menino, ali
nascido, originariamente Antônio, foi mudado para Francisco.
—
Dizem alguns — continuou o Coronel, agora sob intensa
emoção — que a mudança para Francisco teria sido a única
maneira que a mãe do recém-nascido encontrou para homenagear
o marido, inesperadamente morto quando, migrantes e tangerinos
de uma tropa de jumentos, se arrancharam naquelas terras
estranhas, a vila do Ipu.
O
pai do menino, ele sim era Francisco, mas o inocente que
estava por nascer, e nasceu quando o pai acabava de falecer,
sempre fora Antônio, de escolha antiga, tanto que os quatro
paninhos e uns pedaços de fralda de há muito estavam
bordados em ponto-de-cruz com o nome Antônio.
E
se fosse uma menina que viesse ao mundo no lugar do menino
desejado (naquele tempo não havia esses exames para saber
previamente o sexo, nem as técnicas para escolhê-lo), ela
seria Antônia, no que bastaria bordar, na letra "o"
do final do nome Antônio, com uma linha vermelha, uma
perninha para baixo, formando um "a", e assim
ficaria o nome... o nome dela.
—
Dela, Coronel?! A mãe do menino era Antônia?
O
Coronel não respondeu. Raspou a garganta e continuou:
—
Naquele tempo, Bibliotecário Djalma, correu uma lenda, de que
a mãe do menino teria pedido em segredo de confissão ao
padre Cauby que fizesse uma anotação lateral, nem que fosse
só a lápis, no livro dos batistérios: «Onde se lê
Francisco, leia-se Antônio»".
Consta
que o padre teria feito a anotação não a lápis, mas com a
ponta do dedo sobre o pó que, naqueles sertões de ventania,
já se acumulava na folha do livro onde fora registrado o nome
do recém-nascido.
—
O padre, muito piedoso — prosseguiu o Coronel —, teria
dito à viúva que não poderia fazer a anotação a lápis,
porque seria uma profanação do sacramento do Baptismo. A
anotação com a ponta do dedo sobre a película de poeira,
sim, porque teria a permanência de um risco n’água,
certamente.
O
fato é que, num tremendo drama de consciência, o padre, em
generosidade e à maneira dele, teria cumprido com o dever e
ao mesmo tempo atendido o
desespero da mãe do inocente, não
propriamente com um risco em cima da poeira.
Corre
porém outra versão: o padre, com muito medo de que alguém
viesse a "ler" aquelas letras de poeira, tão logo a
mãe do menino se afastara da sacristia, abriu o livro, soprou
todo o pó, limpou todos os vestígios com a ponta da estola,
mas, em contrapartida fez um risco no ar, como se escrevesse
com todas as letras, assim: Antônio.
—
Tenho, meu Capitão e meu caro Bibliotecário, que aquele
menino é mesmo um Antônio! Seja como for, um risco de lápis
ou um risco no pó, claro que vou achar, ainda que tenha sido
somente um risco no vento. Depois resolvo o enigma de
Ésquilo. Primeiro estes dois "Antônios": Gerardo e
Francisco.
Para
terminar de enlouquecer a todos nós, o Coronel disse que ele
próprio, assim que terminarem as comemorações do Menino e
essa tarefa no Ceará — procurar um risco de poeira, feito
há oitenta séculos..., deve ser completamente maluco esse
Coronel —, estará de partida ao Século
Zero, de Ésquilo,
pois está certo de que o tal Ésquilo jamais foi Ésquilo, e
sim Antônio, o Primeiro!
7
- Um sábio do Mar Morto abre os festejos do Menino
E
a propósito de tanta coisa estranha, neste instante de
silêncio, quase meia-noite, um barulho — o que será?
—
Sou eu, Djalma, o Coronel. Onde está o senhor Capitão? A
comitiva está chegando para buscar vocês. Estão prontos?
—
Coronel, o Capitão talvez nem possa
comparecer. Ele dorme. Nem sei ao
certo se não está morto ou se apenas dorme. O senhor já
sabe a história verdadeira do negrinho dos abutres?
—
Djalma, não sei de história nenhuma, nem quero saber. Não
tenho nenhum compromisso com a história nem com a verdade.
Este assunto, a verdade, sempre o deixei com os historiadores
e muito me divirto às custas deles, que nunca estão de
acordo.
—
?
—
Meu compromisso é com o mito, afinal sou hoje apenas um
Cantador e antigo senhor de negreiros, mas essas coisas do
tempo da escravidão oficial nem eu mesmo lembro direito.
Enfim, meu caro Bibliotecário Djalma, num pergaminho do
início das eras, os Manuscritos do Mar Morto, um sábio
desconhecido escreveu: «Homem algum sabe a história
completa»
—
?!
—
Djalma, pouco se me dá que a fantasia do Capitão seja maior
do que ele. Quem garante que a história de agora seja a
verdadeira, e que a antiga seja a falsa? Ou, ambas
verdadeiras, ou ambas falsas? Só os mitos, meu caro
Bibliotecário Djalma, só sei do Mito! — disse o Coronel,
ao que respondi:
—
Coronel, mas o demônio tem aparecido constantemente ao
Capitão, ganindo impropérios! Acho que o Capit...
—
Por favor, meu caro Bibliotecário Djalma, vá ver que aquele
fiapo de negro imundo, retratado pelo Capitão, seria o
próprio coisa-ruim disfarçado de moleque faminto. Só
poderia ser o coisa-ruim, para botar a perder a alma do meu
negreiro. Deve ter sido, Bibliotecário Djalma! Acorde-o,
vamos, é quase meia-noite! Afinal, o Século Cem, de Ésquilo!
— disse o Coronel.
Subitamente uma
sensação de festejo e liberdade tomou conta de tudo.
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