Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

Alguém me viu?

 

Eu jurava que era eu. Tinha tudo para ser eu: o mesmo porte, a mesma silhueta e a mesma sombra magra. Eu morava no décimo andar, mas podia ver tudo. Estava sentado numa pedra, o cotovelo apoiado na coxa, a cabeça abaixada e a mão direita sustentando a mandíbula. Exatamente, como no “O Pensador”. Não me contive. Desci correndo as escadas. Sequer paciência para esperar o elevador. Frustração, ódio, quase desespero: não era eu. Nem parecia comigo...

Me meto em situações ridículas: interrogo transeuntes desconhecidos, sinalizo e paro transportes coletivos, telefono para estranhos. As pessoas riem. Certamente cuidam que sou louco, por procurar aleatoriamente alguém numa cidade tão grande quanto esta. Afinal, são três milhões de habitantes. Mas, como poderia fazer de outra maneira? Não tenho meu endereço... Sim, já pus anúncios em jornais, inclusive com a minha foto. Nenhuma pista convencional.

Outras vezes, caminho à toa pelas ruas observando lugares onde poderia ser encontrado: bares, livrarias, açougues, bibliotecas, curtumes, cinemas, cerâmicas, parques de diversões e matadouros. Nada. Desconfio que me escondo de mim. Um dia desses contratei um detetive. O relatório dizia isso mesmo. Quando não há vestígios de uma pessoa desaparecida, é quase certo que utiliza toda a energia e capacidade mental para esta única finalidade: esconder-se.

Numa certa madrugada me alevantei, apanhei a maleta velha, examinei mais uma vez o conteúdo e saí. Podia ser a hora que costumasse sair de casa. Para não ser visto. Para não se encontrar comigo. Moro nas proximidades da rua Treze de Maio, entre Assunção e Floriano Peixoto. Caminhei em direção ao centro da cidade. O modo como segurava a maleta parecia suspeito. Pressionava-a contra o peito, com ambos os braços, como se protegesse um bebê.

Na Praça dos Voluntários, entrei na Secretaria de Polícia e procurei como se estivesse buscando um alfinete. Continuei a caminhar pela General Bezerril, para a Praça do Ferreira. Prossegui pela rua Major Facundo até o Passeio Público. Vasculhei cada metro quadrado Depois me masturbei mais uma vez na calçada do hotel. Mas sem largar a maleta. Segui, em linha reta, pela rua Castro e Silva, caminhando pela calçada da Santa Casa, onde entrei. Examinei todos os leitos das enfermarias de homens. Nos fundos do hospital, uma agência funerária. E anexo a esta, o necrotério. Era o último lugar onde faltava procurar. Havia um único funcionário de plantão. Naquele dia, esperei até que raiasse o dia. Depois da longa espera, a desinformação: “Não, não consta nada nos nossos registros. Pesquisei de 1945 para cá. Nenhum cadáver deu entrada que pudesse ter sido o senhor”.
 

 

 

 

 

25.10.2005