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Rodrigo Petronio




As Palavras e as Coisas




 

Provavelmente no dia 29 de setembro, dia de São Miguel, do ano de 1547, nascia na cidade espanhola de Alcalá de Henares um tal Cervantes Saavedra. Foi batizado apenas no dia 9 de outubro, porém. Nesse mesmo ano, morrem dois dos maiores inimigos dos habsburgos: Francisco I da França e de Henrique VIII da Inglaterra. Também nesse ano a perseguição étnica e religiosa se acentua; aparece o primeiro Index Exprobratorum assinado pelo Vaticano, que estreitava a vigilância em torno da pureza do sangue e fazia mais rigorosas as inspeções das vidas dos cristãos conversos, de ascendência árabe ou judaica, processo que viria a ser satirizado pelo próprio Cervantes em um entremez teatral, El Retablo de las Maravillas. Se confiarmos no retrato que o próprio autor pinta no Prólogo de suas Novelas Exemplares, publicadas em 1613, ou seja, quando contava com a idade de 65 anos, era um homem de cabelo castanho, face lisa, olhos alegres e nariz curvo, embora não desproporcionado. Os bigodes eram longos e a boca pequena. Os dentes nem pequenos nem grandes, porque os tinha em número de apenas seis. Não bastasse isso, nos diz que estão mal ajustados e sem correspondência uns com os outros. Sua pele era viva, nem branca nem morena. Foi soldado durante muitos anos e passou cinco anos e meio cativo. Perdeu os movimentos da mão esquerda por causa de um acidente de guerra, ferimento que, se para alguns pode parecer feio, para ele é formoso. E é com muito orgulho que nos relata esse episódio e sua conseqüência em uma passagem de seu poema Viaje del Parnaso, e fecha a terza rima com uma máxima moral: o que perdeu com a mão esquerda lhe compensou em glória a destra. Para a sua fama e a nossa felicidade – poderíamos concluir.

A despeito do tom burlesco dessa pequena tela, e levando em conta outros aspectos da obra de Cervantes, dificilmente podemos pensar que esse seja um retrato tipológico, onde ele, no intuito de criar algum efeito cômico, esteja apenas lançando mão de algumas tópicas e assim tecendo uma caricatura, indiferente à verossimilhança e às nuanças da individualidade do retratado. Tudo indica que haja aqui um misto de representação fisionômica e de convenção satírica. E pensando em uma dimensão mais ampla, podemos encontrar ressonâncias e equivalências entre esse retrato e uma série de episódios consignados pelos seus biógrafos, muitos dos quais não completamente solucionados em suas dificuldades interpretativas. E nada mais justo para com um autor que ergueu um monumento ao paradoxo e levou as letras ao limite mesmo da representação, àquele ponto delicado onde a poesia e a história encenam sua farsa a ponto de não podermos distinguir uma da outra, ou sequer estipular um limite entre o fato e a ficção, do que começar suspeitando da própria impessoalidade de sua obra. O que me leva a crer que esse retrato seja fiel demais ao personagem Miguel de Cervantes para ser mera realidade, e fictício demais como retrato para ser apenas um personagem. Afora esses jogos de conceitos de gosto duvidoso, não estou propondo uma interpretação de sua obra a partir de uma frivolidade biográfica que tente explicá-la pela sua vida e vice-versa, mas sim que a arte de Cervantes faz da própria representação a encruzilhada onde essas dimensões se unem, e onde o mundo vira um palco onde essas máscaras se encenam. E é assim que nos presenteia com a sensação assustadora de que a vida talvez não seja mais que um sonho, como já sugeriu Calderón de la Barca de maneira magnífica.

Miguel de Cervantes foi o quarto filho dos seis que tiveram o casal Rodrigo de Cervantes e Leonor de Cortinas, família que desde cedo teve que migrar por várias cidades como Valladolid, Córdoba e Sevilha em busca de melhores oportunidades. Seu pai era médico cirurgião, profissão que não tinha na época o status que tem hoje, e é bem possível que sua função consistisse em cuidar de ferimentos de soldados e tarefas afins. Tinha sido abandonado pelo avô do escritor, Francisco de Cervantes, que rumou com uma amante e seu escravo para Córdoba, deixando a família em péssima condição. Sabe-se pouco da infância de Cervantes, e tudo se reduz a hipóteses. Carlos V está no auge de seu poder e o Império Espanhol se estende pelos Países Baixos, de onde vem a grande semelhança de tendências entre a pintura flamenga e a dos mestres espanhóis, além das afinidades filosóficas e da forte penetração do estoicismo, que eu acredito que se faça por meio de nomes como dos holandeses Erasmo de Rotterdam e Justus Lipsius. Além disso abrangia Milão, o Reino de Nápoles, a Sardenha e tinha possessões na África e nas Novas Índias, vulgo América. Até Portugal fazia parte de seus limites e viveu sob o domínio da coroa espanhola de 1560 a 1640, aproximadamente. O que sabemos é que por volta de 1568 freqüentava o colégio Estudio de la Villa fundado por jesuítas. Mas o episódio marcante, e muitas vezes escamoteado sem qualquer necessidade pela crítica, ocorre em 1569. Cervantes, por motivos que desconhecemos, trava um duelo com um nobre e o fere gravemente. A pena para alguém como ele que tinha algum título de nobreza, que era um fidalgo, não um completo despossuído, era bem mais amena: exílio de dez anos, uma das mãos cortadas e mais um ônus em dinheiro.

Esse ocorrido está registrado em atas, e o nome do réu vem bem destacado: Miguel de Cervantes. Dificilmente pode ser um homônimo, hipótese que a crítica chegou a aventar. O fato é que não sabemos como ele comutou ou pagou a pena; sabemos apenas que pouco depois desse incidente ele está na Itália, com as mãos intactas e a cara limpa, trabalhando entre os criados do cardeal Giulio Acquaviva. Mas os serviços ao cardeal não vão durar muito. Logo se alista na Santa Liga, uma coordenação guerreira que tinha por objetiva combater os mouros que entravam pelo Mediterrâneo, comandada pelo insigne Juan de Austria. Participa da batalha de Lepanto em outubro de 1571, onde finalmente sofre de fato o ferimento na mão que viria a caracterizá-lo, mas onde também se revela por suas atuações, a ponto de receber distinções que lhe foram especialmente conferidas pelo próprio comandante Austria e pelo duque de Sessa, e passa desde então a integrar a companhia de Lope de Figueroa. Outras batalhas se seguem: de Navarino, em 1572, a ocupação de Tunis, em 1573, e a tentativa malograda de retomar a Goleta, em 1574. Depois de cerca de dez anos de viagens e batalhas, Cervantes decide voltar com seu irmão Rodrigo, que também era soldado, e tentar a vida na Espanha com as indicações e as distinções que havia obtido pela sua coragem. Ao navegar rumo à Península são assaltados por corsários mouros, e ambos caem em uma prisão da cidade de Argel, então sob o domínio do rei árabe Azán Agá. A sorte de Rodrigo não é das piores, e logo consegue sair em liberdade. Já Cervantes, vê a reviravolta de seu destino sair pelas suas próprias mãos. Afinal, quão mais valioso e digno de humilhação não é um soldado que traz consigo uma carta de recomendações daquele quilate? Isso sim é que se pode chamar de uma revolução da Fortuna.

Durante mais de cinco anos Cervantes permaneceu nesse baño, que é uma espécie de cativeiro bastante precário e cruel, criado pelos árabes especialmente para prisioneiros cristãos. Sua mãe e suas irmãs, às custas de muitos endividamentos e do sacrifício de seus dotes femininos, o que as impediu de casar futuramente, conseguem finalmente libertar o poeta, sob o pagamento dos quinhentos ducados que se exigia como resgate. De volta à Espanha, qual não foi a sua surpresa ao saber que o general Juan de Austria havia sucumbido no campo de batalha e que o duque de Sessa morrera há pouco. Quem então, nessas condições, lembraria de um tal Miguel de Cervantes, que há anos se destacou lutando em Lepanto, naquela que é hoje considerada uma das batalhas mais memoráveis da história da Espanha? Cervantes passa então a Portugal, onde Felipe II está com a sua corte e a Armada Invencível, e tenta prestar serviços para o soberano. E assim segue seu destino, cheio de calmarias, intempéries e acidentes. E é justamente nesse episódio do seu cativeiro que as peças começam a se juntar, e que a vida e a ficção começam a construir suas encruzilhadas.

No capítulo XXXIX da primeira parte do Quixote, depois de algumas andanças e aventuras sem sucesso, o cavaleiro e seu fiel escudeiro resolvem cear na estalagem de Juan Palomeque. Mal se acomodam, chega um senhor de braço dado com uma jovem bela e discreta que parecia ser sua filha. Suas roupas são de uma mulher árabe, mas seus modos tipicamente cristãos, o que estimula a curiosidade de todos os que estão à mesa. E é ao ser interpelado pelo dono da venda que começa a narração da sua história, que se desenvolve até o capítulo XLI. Trata-se de Ruy Pérez de Viedma, capitão cujo percurso foi tão ou mais acidentado do que o de Cervantes. Cedo deixa os pais e irmãos e participa das excursões espanholas, viajando por Gênova, Milão e Flandres. Participa da batalha de Lepanto, está em Tunis quando da sua tomada e entre os soldados da expedição fracassada da Goleta. Mas entre 1567 e 1574 cai prisioneiro em Argel. Quando sua esperança de liberdade está prestes a se desintegrar por completo, consegue estabelecer contato pela janela da prisão com Zaraida, filha de um homem poderoso chamado Agi Morato. E ela lhe conta então a sua desventura: desde que instilada por uma ama cristã ao amor à Virgem Maria nunca mais conseguiu tranqüilidade de espírito. Quer fugir e desposar um cristão, pois só assim poderá realizar o seu sonho: ser convertida. E é exatamente o Capitão Cativo o homem pelo qual tanto esperava. Trama a fuga de ambos, que ocorre com sucesso, apesar da cena melancólica de seu pai em terra firme de joelhos clamando aos céus por aquela atrocidade e dizendo em árabe palavras com as quais escorraça e deserda a filha. Passam por toda a costa da Espanha, penetram o continente e eis que chegam, a cavalo, à venda do senhor Palomeque.

É desnecessário ressaltar a quantidade de semelhanças entre o perfil do Capitão Cativo e o de Miguel de Cervantes, por mais que haja discordância entre algumas datas e fatos. Também não cabe enumerar aqui a quantidade de peripécias e reconhecimentos que ocorrerão nessa mesma venda, em uma das quais o Capitão identifica entre os que comem à mesa ninguém menos do que seu irmão, que não via desde a sua partida para a guerra, hoje um licenciado, já que as poucas vias para os homens de baixa nobreza consistiam em assumir as armas ou as letras, seguir a carreira de soldado ou se entregar ao ofício eclesiástico e suas variantes, o direito canônico e a jurisprudência, o que vem assinalado de maneira exemplar nos emblemas que pintam um homem com uma pena em uma mão e uma espada na outra, e que representa uma das faces do ideal do homo universalis da Renascença. Esse relato do Capitão Cativo se intercala ao Quixote como se fosse uma novela independente, e sabemos que ele foi escrito bem antes da redação da primeira parte. A cena do cárcere mouro aparecerá também em uma peça de teatro de Cervantes, Los Baños de Argel, e cria uma relação de tripla representação de um mesmo episódio, cuja inspiração é nitidamente biográfica. Um papel parecido também desempenha a narrativa do Curioso Impertinente, que foi interpolada ao Quixote bem depois, na qual um jovem italiano narra suas aventuras amorosas e sua necessidade de confirmar a fidelidade de sua mulher, que o leva a estimular uma traição com seu melhor amigo.

Creio que o auto-retrato de Cervantes e essa narrativa de caráter biográfico inserida no conjunto de sua obra máxima possam nos levar a algumas reflexões interessantes. Se muitas vezes e durante muito tempo o Quixote foi visto como uma das mais consumadas paródias de um gênero literário, as novelas de cavalaria, já levadas a cabo por um escritor, essa análise parece insuficiente, na medida em que nos oferece a contrafação artística como sendo o coração de seu sentido, sem levar em conta implicações filosóficas mais sérias que podemos inferir de diversos episódios isolados da obra. Porque se dom Quixote representa o último estágio da loucura, aquele onde os dados da ficção não mantêm mais nenhuma relação de dependência entre si e não têm mais lastros com uma natureza comum, podendo muito bem ser permutados e tomados pela própria realidade, isso quer dizer que a missão do herói não é apenas restaurar a Idade de Ouro da cavalaria andante, como ele insiste em dizer, mas provar para todos, e muitas vezes em contradição com as evidências, que ela ainda é possível. Em outras palavras, se o mundo foi capaz de gerar a quantidade de mentiras e absurdos de que os livros de cavalaria estão empanturrados, Quixote usa desse mesmo veneno para transformar o mundo em um enunciado e em signo, e faz aquilo que Dostoievski disse que ele faz: paga a mentira com a mentira, a tal ponto que acaba transformando-a em regra. Com a figura de dom Quixote Cervantes elevou a poesia ao estatuto de única verdade possível. Tudo o que venha a se agregar a ela será mero acidente ou contingência. A cruzada do fidalgo manchego contra o mundo tem como último objetivo demonstrar que este mundo está e estará sempre aquém de si mesmo enquanto não estiver à altura da fantasia, e que se os moinhos de vento não são gigantes é culpa dos moinhos e não dele, dom Quixote de la Mancha. Se tudo é representação e teatro, o rosto que não se adequar à máscara não existirá ou será sempre um defeito e uma falha diante da potência ilimitada da imaginação, esta sim o ponto de partida e o substrato da verdadeira realidade. Nesse universo, os acidentes dão forma à Essência, e se a poesia era uma maneira de potencializar o real, de plasmá-lo e transfigurá-lo, sem modificar a sua natureza irredutível, agora ela vira o paradigma, o eixo, a norma, fora da qual real algum sequer existe.

Aqui não estamos no âmbito da pura representação ou no campo estreito da paródia somente, mas em um tipo de relação especular que possui várias camadas de significado. E isso parece invalidar a alfinetada arguta que Baltasar Gracián parece ter desferido contra Cervantes em uma das crises do Criticón, ao dizer que reproduzir novelas de cavalarias pela negativa é ocorrer na dupla loucura de duplicar aberrações do entendimento e extrair do veneno mais veneno. Porque em primeiro lugar, Cervantes criou um mito capaz de realizar algo que era quase impensável até então e de conseqüências drásticas: positivar a mentira, a falsidade e o simulacro. Esse aparente paradoxo é confirmado pela maneira como ele pinta o caráter de dom Quixote, já que, se na maioria das vezes ele é apenas um louco descontextualizado e objeto de riso de todos, outras tantas ele demonstra ser a pessoa mais inteligente e sensata do mundo. Embora sua postura não tenha coerência com os dados da realidade imediata, suas falas têm coesão e sabedoria; sua reivindicação de nobreza guerreira e sua tábua de valores estão em total concordância com seus propósitos. Em outros termos, há ética em cada um de seus passos falsos, na mesma proporção em que há método na loucura de Hamlet, como nos diz Polonio. Isso nos desautoriza de vê-lo como um personagem eminentemente cômico – embora ele esteja a quilômetros de distância da tragédia. E essa é a questão difícil de deparar. Porque se Quixote fosse apenas cômico, como estava previsto que fosse, ele cumpriria a função do gênero baixo em que está inscrito e geraria apenas aquele riso sem dor, de que fala Aristóteles ao diferenciar a comédia da sátira. Mas há sempre algo que escapa dessa análise, e uma espécie de devir que não se deixa aprisionar por essa etiqueta. Acredito que boa parte dessa complexidade advenha de um fator comum, e que parece ser o fio que orienta toda a obra e chega a ser a sua própria essência: a negação. O Quixote é uma espécie de épica da negatividade. Tudo nele é refutação de dados, inversão de preceitos, o avesso do direito, o real que é ficção, a verdade inacessível e a poesia como única via de acesso ao mundo, com todos os fantasmas, paradoxos, ambigüidades e fantasia que essa via comporta. Por isso, quando dom Quixote se depara com um pobre barbeiro viajando em seu burrico de uma vila a outra, a bacia dourada debaixo do braço, por obra da imaginação transforma-o em um guerreiro e a bacia, no elmo dourado de Mambrino, personagem insigne do Amadis de Gaula, um dos mais famosos romances de cavalaria. Cabe a ele resgatar o elmo, e para isso investe contra o pobre homem e os dois se arrebentam no chão.

Mas o que dom Quixote quer que Cervantes queira com isso? Em primeiro lugar, quer somente gerar um episódio cômico e uma situação burlesca que toque os limites do absurdo, ou seja, está se movendo nas fronteiras da arte, das técnicas e dos afetos. Mas pouco a pouco, com a sucessão de episódios desse tipo, começamos a entrar na lógica dessa criação, e a perceber que temos duas alternativas. Confiar na desrazão de Quixote é dizer que o mundo está errado porque ele não é tão nobre e ideal quanto os romances querem que ele seja, e fazer dos seus disparates uma forma de sabedoria, o que não parece nada inteligente. Por outro lado, se desprezarmos as atitudes do herói, padecemos do mau de não perceber o quão absurdo, pobre e ridículo é esse mesmo mundo que não admite nada que saia de seu funcionamento mais ordinário. Ao fim e ao cabo, Cervantes ironicamente nos dá a opção de escolher entre dois paradoxos, atitude que parece sintetizar toda sua malícia, e é justamente isso que possibilita um número quase infinito de interpretações a partir de acontecimentos simples a beirar o simplório. O mais curioso é pensar que esses jogos conceituais que chegam à vias do previsível e que nas mãos de um artista menor se reduziriam às armadilhas ou à graça lúdica do mero jogo, nas mãos de Cervantes servem como entrada para um labirinto que a cada episódio nos abre uma nova porta sem dizer para onde ela conduz, e a deixa assim, aberta, no meio do caminho, sugerindo que a vida dos dois cavaleiros errantes e tudo que a circunda são como um processo que se desenrolasse dialeticamente sem nunca obter uma síntese.

Há vários capítulos do Quixote que apontam nessas direções. E há também uma série de estratégias que o próprio fidalgo cria para validar sua desrazão quando ele se sente ameaçado por alguma coisa que pareça contradizer suas crenças. Um dos recursos mais usuais é um recurso que também aparece nos livros de cavalaria, e diz respeito à esfera sobrenatural. São os encantadores. Tudo o que desmente a lógica da cabeça do cavaleiro da Triste Figura tem que encontrar uma justificativa, pois caso contrário será um erro. Ainda que essa justificativa seja improvável, ela ainda assim será mais real do que as evidências, porque fruto da ficção. Depois de travar um combate arrebatador com um rebanho de ovelhas, achando que ele fosse o exército de um cavaleiro mitológico, e perder vários dentes e ossos na colisão, não era mais possível a dom Quixote sustentar que aqueles bichos que lambiam seus ferimentos eram soldados. Então vem o artifício mágico: isso foi obra do ardil maligno dos encantadores, que são os inimigos número um dos justiceiros e transformaram as ovelhas em soldados (ou vice-versa) para humilhar o mais alto de todos eles, aquele tal Alonso Quijano, procedente de alguma região desconhecida da Mancha, que, depois de devorar uma biblioteca inteira de novelas de cavalaria, vestiu uma armadura e se investiu do poder bélico desses heróis sob o nome de dom Quixote. A magia sobrenatural desmente a realidade e tem mais poder do que ela, porque é coisa ficta, condição que lhe confere mais autoridade do que esta. Assim também a poesia vence a história: por ser o campo do possível mais do que do provável, aquela é mais universal do que esta, diria Aristóteles. No fundo elas são reversíveis, mas apenas até um certo ponto. Quem organiza a permutação entre a realidade e a imaginação é a vontade de quem manipula essa farsa: dom Quixote. E isso mais uma vez nos devolve às artimanhas que se escondem sob sua aparente loucura. Ele envolve todas as pessoas que encontra, a começar pela nomeação de seu vizinho Sancho Pança como seu escudeiro, nas tramas da ficção que deixa de ter um lugar específico e passa a aderir ao próprio mundo. Na primeira parte podemos dizer que dom Quixote é o personagem central da história que criou para si mesmo, e as pessoas que o defrontam, seus coadjuvantes. Essa condição irá se modificando paulatinamente até um ponto de inversão, como depois veremos.

O papel dos encantadores não se resume a isso. E pode-se dizer que eles são uma espécie de fio condutor que perpassa todo o livro e o motor do ideal amoroso de dom Quixote: Dulcinéia de Toboso. Na primeira parte, um pouco antes do episódio do Curioso Impertinente, e a exemplo do grande e fabuloso capitão Amadis de Gaula, dom Quixote tem que fazer algumas loucuras. Essas alucinações e idiotices abrangem os capítulos que se passam na Serra Morena, onde o cavaleiro sobe inteiramente nu ao topo de um dos montes e fica plantando bananeiras e gritando. Isso tem também um quê de demonstração de amor irracional por Dulcinéia, e outro tanto de desespero não correspondido. Não contente com isso, Quixote coage Sancho a ir a Toboso entregar pessoalmente uma carta de amor de sua autoria nas mãos da nobre dama. Sancho o faz; mas é surpreendido por um fato óbvio que ele tenha provavelmente querido esquecer: Dulcinéia não existe. O que fazer? Sancho cumpre as ordens de se amo da melhor maneira possível; chega à cidade natal de sua amada e entrega a carta nas mãos de uma camponesa que lhe parece ter cara de Dulcinéia. Claro que revelar isso a Quixote é impensável, e no final das contas Sancho descreve todos os encantos inimagináveis daquela dama e diz quão feliz o seu senhor será quando estiver a seu lado. A mentira de Sancho vai alimentar a caminhada dos dois justiceiros durante o decorrer de todo o resto da primeira parte, e cultivar os suspiros idealistas e ininterruptos de seu senhor. E chegará até o capítulo X da segunda parte. Nele finalmente está cumprida uma das metas da vida e da peregrinação de Quixote, que é chegar a Toboso e desposar a encantadora Dulcinéia. Mas então Sancho é flagrado na contradição de sua mentira, pois não sabe explicar ao certo onde é a casa, ou melhor, o palácio, onde o cavaleiro deve ir encontrar a sua dama. Mas na perspicácia de sua simplicidade, Sancho encontra a melhor saída. Avistando duas lavradoras que vem puxando uma mula, começa a gritar enaltecido, dizendo a seu amo que lá vem ela, Dulcinéia em pessoa com sua criada. Não é preciso dizer que Quixote não enxerga nada além de duas lavradoras rústicas, tanto na aparência quanto nos gestos. Confuso diante da insistência de Sancho e do absurdo que seus olhos lhe oferecem, Quixote logo percebe por conta própria a sua desgraça, cavada fundo no seu peito por obra desses malditos encantadores que entorpeceram sua percepção, a ponto dele estar diante de Dulcinéia de carne e osso, e em compensação só conseguir ver duas lavradoras desencantadas com a vida.

Essa cena, tramada com a pena mestra de Cervantes, levou Gustave Flaubert à sua famosa exclamação, segunda a qual em nenhum momento o autor refere ou descreve diretamente as mulheres, conseguindo assim pintá-las por supressão. Intuímos seus gestos e jeitos pelo diálogo de Sancho e Quixote, não sendo elas explicitadas sequer por um único momento. E é também nesse episódio que o crítico Erich Auerbach identifica um ritornello, uma mudança significativa no curso da obra. A partir daqui dom Quixote começa a demonstrar certa desconfiança quanto a suas próprias convicções, o que em outras palavras significa que o mundo começa a se tornar desencantado, no sentido estrito do termo. Pela primeira vez, aos olhos do leitor, ele passa a suspeitar de que tudo não seja mais do que uma farsa e todas as suas aventuras, um erro. Ou na melhor das hipóteses, já não é tão ardoroso em suas certezas. Isso é latente para o leitor, não é nunca manifesto. Mas mesmo assim facilmente perceptível. E esse ponto de inversão parece ter vínculos com a própria estrutura da obra e de suas duas partes. Porque a mudança mais notável que vai se operar na posição de Quixote em relação à história. Até então ele havia sacado seu mundo direto dos livros, e sua missão sobre a terra era instaurar o reino da ficção, fazer valer os dragões de cinco cabeças, os guerreiros que matam exércitos de milhares de homens com uma só espada, donzelas voadoras, animais mitológicos com cornos e asas, sagas geográfica e historicamente impossíveis, bestas voadoras, príncipes imortais e toda sorte de bizarria imaginativa. A sua realidade imediata vive sob o signo da decadência moral e dos costumes, pervertida pela lassidão de ânimo que entorpece o espírito. Isso move nele a força da negação, que corresponde à supressão desses limites estreitos por uma lógica onde todas as coisas sejam possíveis. Mas ele já está na estrada há muito tempo. A sucessão de moinhos que não são gigantes, ovelhas que não são soldados, bacias que não são elmos e vítimas que não querem ser socorridas já serviu para minar boa parte de seu ímpeto. E até agora sequer pôde ter a honra de ver Dulcinéia de Toboso? Aos poucos a força furiosa das coisas vão vencendo o poder da palavra. Ao mesmo tempo em que o cansaço começa a despertar o que ainda resta de sua lucidez, dom Quixote também começa a se enredar nas histórias alheias e passa à condição de marionete nas mãos de outros personagens que entram em cena. E aqui voltamos à biografia de Cervantes.

Em 1605 era publicada a primeira parte do Quixote com relativa repercussão e sucesso. À exceção de um crítico ranzinza e selvagem como Lope de Vega, que considerava Cervantes um os piores poetas da Espanha – e no caso específico da poesia não estava totalmente destituído de razão – e que apenas um completo tolo acreditaria em um personagem como dom Quixote, pode-se dizer que ela teve uma acolhida considerável entre os homens de letras, só não mais marcante devido a um acidente que comprometeu a sua reputação. A história é mais ou menos a seguinte. Em 1585, aos 37 anos de idade, Cervantes tinha desposado Catalina de Palacios, jovem de 19 anos, de uma família relativamente bem situada. Porém um ano antes nasce Isabel, sua filha com Ana Franca de Rojas, que foi sua amante e da qual não se sabe praticamente nada. Ele só reconhecerá a filha mais tarde, quando a vida ao lado da esposa em Esquivias, pequena província para onde tinha se mudado, se torna insuportável e ele se separa em 1587. Rumou para Madrid e lá passou a dividir uma casa com as irmãs. Impedidas de se casar, nem por isso a sua vida sexual era menos ativa, o que gerava todo tipo de comentários de mau gosto. Mais tarde Catalina, depois de anos de separação, volta com o marido, e Isabel vêm se somar à família Cervantes Saavedra. Para coroar a situação, o azar quis que um ex-combatente da Coroa, Gaspar de Ezpeleta, briguento e beberrão, travasse um duelo à porta de sua casa. Ezpeleta foi ferido, e Cervantes o acolheu por alguns dias. Dada a sua reputação anterior, foi difícil provar diante da justiça que o autor não teve qualquer envolvimento no duelo, e mais difícil ainda reter a má fama que começou a correr e a comprometer a divulgação da primeira parte de sua obra que acabara de sair dos prelos de Madrid.

A publicação não serviu para dar um rumo ao desajuste financeiro em que se encontrava Miguel de Cervantes. Tanto que em 1609 ele entra para a Hermandad del Santíssimo Sacramento, uma ordem religiosa à qual suas irmãs também serão acolhidas depois. Em 1613 aparecem as Novelas Exemplares, e, naquele mesmo prólogo onde o autor nos pintou o seu retrato, a seguinte promessa: a segunda parte do dom Quixote de la Mancha apareceria em breve. O fato é que em 1614, um ano depois portanto, efetivamente aparece uma segunda parte do Quixote, mas apócrifa, assinada sob o pseudônimo de um tal Alonso Fernández de Avellaneda, pelo que consta procedente de Tarragona, na região de Aragão. À essa época, Cervantes já estava no capítulo LIX da segunda parte, e quando sabe do Quixote apócrifo fica furioso. Tanto que nesse mesmo capítulo, dom Quixote e Sancho chegam a uma estalagem e nela deflagram uma pessoa lendo o falso Quixote, o que é motivo de escárnios e ofensas por parte dos verdadeiros heróis, que não se reconhecem naquelas histórias e naqueles caracteres que a pessoa lhes diz estar lendo. E aqui está o nó de toda a mudança estilística e temática da primeira para a segunda parte, que é tão acentuada que alguns críticos chegaram a se referir às duas partes como dois Quixotes diferentes. Porque a grande alteração da segunda parte é que nela a primeira já corre impressa, e os personagens se relacionam com dom Quixote já tendo lido a sua vida pregressa e o seu passado imediato. Além do mais, circulam dentro do Quixote verdadeiro os comentários dos personagens e do narrador, tanto à primeira parte quanto ao Quixote falso de Avellaneda, diversas vezes desprezado e criticado impiedosamente. E eis que se embaralham todas as cartas e identificamos uma série de saídas que conduzem a lugar nenhum. E fica a pergunta: quem é o autor do falso Quixote? E uma pista, colhida em um personagem da primeira parte, pode explicar a vida, como as novelas de cavalaria explicam e dão forma ao mundo.

Um dos episódios mais engraçados de toda a saga é o dos galeotes, no capítulo XXII da primeira parte. Nele o cavaleiro e seu escudeiro se deparam com uma fila de prisioneiros algemados que rumam em direção à galeras para trabalhos forçados. São bandidos, assassinos, prisioneiros de guerra e malfeitores de toda espécie. Claro que dom Quixote, que aguarda ansiosamente vítimas para as quais possa corrigir destinos e reparar danos, não vai deixar de ver nos tratamentos dispensados a essa nata social a síntese da opressão e da injustiça sobre a terra. Após desfilar com o cavalo interrogando cada um dos prisioneiros, que lhe narram as suas respectivas vidas e sucessos, Quixote consegue burlar a vigilância e arrebentar a corrente, livrando os pobres diabos que somem correndo e se embrenham na mata para o desespero dos guardas, que correm em busca da Irmandade Guerreira para recapturá-los. O preso mais ridicularizado pelo narrador, que tem uma das histórias mais anedóticas e engraçadas, é um tal Ginés de Pasamonte, criminoso cheio de piedade e comiseração. Por acaso ou não, um dos companheiros de guerra de Cervantes foi um soldado chamado Gerónimo de Pasamonte, homem letrado inclusive, que chegou até a deixar uma autobiografia publicada. A chance de deslindarmos o mistério da autoria do Quixote apócrifo sob o pseudônimo de Avellaneda está aqui, e é um consenso entre os biógrafos a possibilidade dessa relação. Gerónimo de Pasamonte, por motivos que desconhecemos, provavelmente instilou em Cervantes algum sentimento de rancor ou comicidade durante a guerra, a tal ponto que este usou traços de sua personalidade para pintar seu personagem, mudando levemente os nomes. O autor de Tarragona, irado por ter se reconhecido naquela caricatura e sendo homem instruído, tomou contato com o Prólogo onde se anuncia a segunda parte vindoura e se antecipou a seu verdadeiro autor.

Mais do que curiosidade biográfica ou exercícios de imitação e emulação artísticas, aqui entramos no coração da obra cervantina. Santo Agostino define o mundo como verdade revelada, e vê em cada evento humano e terreno uma manifestação divina e eterna que precisa ser decifrada para ser encarnada. O mundo seria um livro, e os fatos e as coisas em si mesmas já significam, são signos com os quais a Providência escreve a história dentro do tempo e dá sinais de sua inteligência infinita se movendo à luz das suas águas. Toda a concepção de história do Ocidente desde então seguirá essas premissas agostinianas, e a história sacra não consiste em nada mais do que trazer aos olhos e à inteligência os nexos existentes entre res e uerbum, entre as palavras e as coisas, e, mais que isso, demonstrar que as próprias coisas materiais que compõem o mundo sensível são signos que remetem à Coisa não predicável, dela emergindo e a ela regressando como um rio que regressasse à sua foz. Como herói de uma epopéia da negatividade, dom Quixote parte do princípio de que a prosa do mundo e a prosa que ele quer que o mundo narre estão em desequilíbrio e em contradição. Ele quer que o mundo signifique além do usual, que ele encarne a harmonia cósmica e a imaginação fabulosa dos romances de cavalaria, e o que esse mundo lhe devolve em troca é tão somente o real, sem nenhuma transcendência ou epifania. Já na primeira parte, logo que Quixote deixou o seu vilarejo para entrar para a vida da cavalaria, o Cura e o Barbeiro fazem uma devassa na sua biblioteca comida por traças, e queimam pilhas e pilhas de livros. Um dos poucos poupados é um livro do próprio Cervantes, La Galatea, que recebe alguns comentários ambíguos do Cura. Como diz o narrador – Cide Hamete Benengeli – a história de dom Quixote de la Mancha é na verdade um manuscrito árabe, encontrado e traduzido para o espanhol, e do qual ele, como narrador, nos faz uma reconstituição. Todos os aspectos e peças desse quebra-cabeça biográfico, literário, histórico e poético se desenvolvem na prosa do mundo e são catalisadas pela pena de Cervantes. Mas na segunda parte, há um elemento complicador e um veneno que se introduz no interior do próprio mecanismo da obra, e consiste no fato dos personagens já conhecerem dom Quixote de antemão por já serem leitores de sua vida. Aqui a negatividade assume requintes de crueldade, porque a criação literária vira uma metáfora da leitura e da própria vida. Restituir a idade de ouro da cavalaria equivale a recolocar em circulação o encantamento perdido das fábulas cavalheirescas, devolver ao mundo o sentido que já não é possível ler em suas entrelinhas e fazer valer a ordem implícita que a Providência ocultou sob a opacidade das coisas. É preciso devolver o Verbo a um mundo onde cada coisa é apenas uma entre outras, e não é mais insuflada por uma harmonia cósmica. Dom Quixote cria uma maneira artificial e artificiosa para isso – mas cria. Na medida em que todos já sabem de suas estratégias e que a sua loucura é conhecida por dentro, ele deixa de ser o protagonista dessa história e passa à condição de fantoche em mãos alheias. E eis que temos o episódio dos Duques, que vai do capítulo XXX ao LVII da segunda parte.

Conhecendo todas as idiotias e aberrações da mente de Quixote e tendo lido todas as suas aventuras e desventuras, o duque e a duquesa acolhem-no em seu palácio como objeto de seu divertimento. Por intermédio deles, a condessa Trifaldi diz ter sido enfeitiçada pelo cavaleiro Malambruno, e persuade Quixote e Sancho a voarem pelos céus no cavalo de madeira Clavilenho para desfazer a magia do inimigo maligno. A jovem Altisidora vem cantar todas as noites canções de amor à janela de Quixote para testar a sua fidelidade a Dulcinéia. A mesma Trifaldi diz que dom Clavijo se encontra transformado em um macaco de metal, e roga ao cavaleiro que o salve. Realizam por fim um desfile mitológico em um carro que conta com demônios, anjos, animais e ninguém menos do que Dulcinéia de Toboso como seu corolário. E por fim os duques fazem de Sancho o governador da ilha Barataria, e o despacham para lá com dignidades de chefe de estado. Tudo isso não passa da mais sórdida gozação. O cavalo de madeira onde os dois heróis foram amarrados e vendados recebeu lufadas de ar quente para simular um vôo que nunca realizaram, Altisidora em nenhum momento se apaixonou por Quixote, o macaco de metal é apenas uma estátua, quem posa no carro alegórico disfarçado de Dulcinéia não é ninguém menos do que o mordomo dos Duques vestido de mulher e a ilha que Sancho governa não é uma ilha, mas um condado dos Duques, que por sua vez puseram como seu assistente um médico que, sob as desculpas de zelar por sua saúde, o impede de comer tudo o que ele quer comer na sua condição de glutão. Diante dessa dieta forçada, Sancho desiste de vez do governo da ilha logo depois de um assalto a suas fronteiras, forjado pelos próprios duques, e volta para o lado de seu amo, que já vagueia ébrio pelas dependências dos nobres em meio a simulacros de simulacros e a falsificações de falsificações que têm por única finalidade a diversão deles e de seus pares. Ambos se cansam daquelas aventuras sem ao menos desconfiarem de todo o teatro no qual se embrenharam, e partem de volta para a sua errância cavalheiresca.

Se dom Quixote elevou a poesia acima da história e a fantasia acima da realidade, foi para reinvestir as coisas à sua volta de sentido, para que elas voltassem a ser signos de uma escrita sagrada que Deus cifra no mundo e que com ela nos mostra a totalidade de sua criação. Mas mesmo assim há um descompasso entre o sentido profundo, porém ausente, dessas coisas, e aquilo que o herói quer lhes dar. Ao fim e ao cabo, barris de vinhos não são dragões, e querer que eles sejam é forjar em pinceladas grossas e borrões mal feitos uma dimensão sublime da vida que há muito já se tornou impossível. Mas agora há o efeito reversivo: não só o mundo está desinvestido de encanto e de sentidos ocultos, como ele é quem devora dom Quixote ao transformá-lo em ficção e personagem de uma diatribe infernal. A mentira da poesia encarnou em um homem e foi dada ao mundo: Alonso Quijano deixou de ser um fidalgo anônimo de um pequeno vilarejo da Mancha e se transformou em dom Quixote, ou seja, fez da fábula dos livros de cavalaria uma verdade. Agora esse mesmo mundo o devolve à ficção e o manipula, pagando a sua verdade com mais uma mentira: e ele se torna um boneco e objeto da manipulação de seus criadores, que são todos os seus contemporâneos, leitores do Quixote. Para Quixote todas as coisas do mundo, tal e qual as vemos, só existem como correlatas das coisas existentes nos livros de cavalaria, da mesma forma que para as pessoas que estão nesse mundo dom Quixote de carne e osso só existe como signo e homem de papel, como personagem das aventuras do engenhoso fidalgo, criado por Cervantes. Assim o desconcerto do mundo vai se dilatando e se aprofundando, e há uma completa inversão de todos os valores e sentidos. A contrafação da contrafação e a cópia da cópia se oferecem como a única verdade plausível, com tais ardis que dificilmente podemos provar o contrário. Porque sugerir que toda verdade só existe dentro dos limites da ficção e que há uma completa reversibilidade entre elas é o mesmo que dizer que nós, eu e você leitor, não existimos de fato. Somos tragados pelo livro e transformados pela pena maligna de Cervantes em um enunciado. Em outras palavras, e para falar com Borges, se os personagens são reais e existem – é possível que nós não existamos e não o sejamos. E aqui a tela As Meninas de Velázquez pode ilustrar plasticamente um conceito metafísico: a representação nos coloca do lado de dentro do espelho e conseqüentemente do lado de fora do mundo. Ela se oferece como verdadeira realidade, e só assim eterniza aquele instante delicado da vida da pequena princesa. Mas a sua eternidade custa a nossa vida e para saboreá-la pagamos o preço de nos tornarmos fantasmas.

Na prosa do mundo a vida não é apenas um ingrediente do qual o autor lança mão para compor sua obra, mas é aquela força centrípeta que age no seu interior e estoura os limites da própria representação. No reino dos paradoxos, é o amor pela negatividade que funda mundos possíveis e desmancha outros que pareciam verdadeiros. E se os paradoxos são monstros da verdade, como quer Baltasar Gracián, é porque eles negam em si e na esfera humana a participação de qualquer Substância infalível. Se me contradigo é sinal de que estou vivo, e não a serviço de um sistema ou de uma estrutura abstrata de conceitos – diria Nietzsche. Tendo em vista essas questões, Northorp Frye defende a tese de que a obra de Cervantes inaugura uma visão de mundo totalmente profana. Nela as coisas não remetem mais a causas transcendentes e as linhas cifradas que Deus escreve no livro do mundo parecem se apagar. Tudo são enunciados que se complementam e se anulam mutuamente, um horizonte de eventos que remetem uns aos outros e só nesse processo criam seus sentidos provisórios. Seria a morte de Deus? Acho essa hipótese exagerada. Podemos dizer com segurança apenas que o Quixote representa o crepúsculo da Providência, o que é bem diferente, e com ele se tornará cada vez mais difícil explicar o mundo a partir de uma causa eficiente harmoniosa, derivada de uma causa formal una e a partir de uma Inteligência perfeita. Afinal, tudo é tropeço e acidente, tudo é falsidade e simulação, tudo é teatro e mentira, tudo é improvisação e mimetismo, tudo é pantomima e máscara. Mas ao mesmo tempo isso não exclui a presença manifesta de alguma coisa que nos transcende e ultrapassa, e muito menos anula a participação do mistério em todos os atos que não possamos domar ou explicar. No fundo de tudo e no coração do mais tácito silêncio haverá sempre algo que é indevassável pela argúcia das palavras e que é a origem e o fim de todas as coisas.

E assim prossegue a saga da completa negação, encarnada sob as pelancas e a compleição raquítica do caricato Cavaleiro da Triste Figura. E ela consiste em negar toda e qualquer estabilidade da Substância, e dizer que tudo só existe como um simulacro criado pela percepção sob diversas perspectivas e sob determinadas condições. Essa saga põe em choque duas grandes entidades: a idealidade da poesia e da ficção e a contingência da história e do real. Mas o resultado desse embate é a destruição das duas, bem como das correspondências amistosas entre as palavras e as coisas – e entre ambas e a Coisa transcendente e eterna que é Deus. Estabelece-se uma disjunção, uma fratura que desfaz as suas naturezas e as torna conversíveis umas nas outras. É sobre essa disjunção que se assenta a negação da negação, em uma vertigem destrutiva e auto-destrutiva que não deixa nenhuma verdade em pé. Ao fim, nos remete ao vazio, que pode ser tanto uma ascese pelas vias de uma curiosa teologia negativa, que afirma o Inominável pela recusa a todos os nomes, quanto aquele grau zero de sentido que parece ser o ponto de partido disso que se convencionou chamar de modernidade. E se é para falar em modernidade, a recepção posterior do Quixote é suas sucessivas interpretações não correm à larga da quantidade de sentidos que a obra oferece em sua estrutura.

Esses diversos níveis de leitura de um mesmo mito não se restringem ao percurso do personagem dom Quixote, mas estão marcados também pela trajetória errante do livro Quixote. Não seria de admirar que essa figura algo patética não reencarnasse no mundo sob a roupa de toda uma pletora de ideologias e de projetos políticos? Não seria de estranhar que um tal produto da fantasia não fosse revestido de idealismo e de utopia ao limite da alucinação e da própria loucura pelo mudo real? E foi isso mais ou menos o que aconteceu. Descarto aqui as interpretações mais vulgares e tendenciosas, que pretendem ver o mito cervantino como uma espécie de guerreiro socialista ou precursor de um hipotético e equívoco futuro utópico. Mas comecemos pelo fim, porque as coisas nascem do seu fim não de seu começo, e é aquilo que elas virão a ser na eternidade que define o valor do que elas foram e são, nos diria Vieira no engenhoso Sermão do Santíssimo Sacramento, ao defender a glória pregressa da encarnação de Jesus em Maria. Um dos primeiros críticos a lançar novos olhos sobre a saga do cavaleiro da Triste Figura foi Erich Auerbach. Sabemos da famosa história, segundo a qual ele escreveu sua obra Mimesis em Istambul, exilado por causa das perseguições advindas com a Segunda Guerra Mundial. Talvez isso tenha conferido o sabor estilístico especial que esses ensaios têm, escritos todos longe das bibliotecas e tendo como material apenas a memória do seu autor. Além disso, talvez essa condição tenha contribuído para a originalidade de sua abordagem, que vai se situar de maneira marcante entre os estudos literários das décadas de 40 e 50. Porque Auerbach será o primeiro intelectual, depois de muito tempo, a situar o Quixote exclusivamente como uma obra do gênero cômico. Com bastante propriedade, porque se pensarmos que uma das primeiras recepções críticas e criativas que o Quixote teve foi a paródia de Avellaneda, tudo se esclarece, e sabemos que não há nenhum teor trágico na história do cavaleiro manchego. Mas as coisas não são tão simples assim.

Um dos primeiros comentários ao Quixote saiu da pena incansável e torrencial de José Pellicer de Salas y Tovar. É além do mais um comentário oportuno para dirimir algumas dúvidas em relação à escrita de Los Trabajos de Persiles y Segismunda, publicada postumamente, e que trata de uma aventura espiritual em forma de peregrinação, obra das mais importantes e ambiciosas de Cervantes, mas inexplicavelmente relegada a um segundo plano de sua obra. Não se sabe quando começou a ser redigida, mas Pellicer diz que Cervantes já trabalhava nela durante a confecção dos últimos capítulos da primeira parte do Quixote – o que quer dizer que ambas são praticamente simultâneas e seria muito instrutivo pensá-las em conexão, uma com a outra. O fato é que o Quixote seguiu seu curso e foi sendo incorporado por cada um dos séculos que lhe sucedem, e sendo lido por cada um deles da maneira que melhor lhes aprouvesse. Tenho a hipótese, nem de todo confirmada, de que o romance de idéias francês do século XVIII, com Voltaire, Lesage e Diderot, entre outros, e seus correspondentes ingleses, o Tom Jones de Fielding, Defoe, Richardson e principalmente Laurence Sterne, são descendentes em linha reta de Swift, de Miguel de Cervantes e da prosa picaresca espanhola do século XVI e XVII. São também leituras desses autores, e no caso específico francês creio que uma leitura que valoriza mais o lado abstrato da narração de idéias e da dramatização de conceitos, do que o aspecto mais telúrico e um tanto quanto rústico, se podemos dizer assim, da arte de Cervantes. A comédia não chega a ceder a uma filosofia dialogal em forma de narrativa, já que o aspecto cômico está presente na maioria dos contos de Voltaire, por exemplo. Mas há uma predominância do elemento alegórico sobre o indicativo. O século XVIII transforma a arte de Cervantes em uma plataforma política de crítica ao providencialismo católico, disfarçada ou explicitamente colhida no percurso acidentado e pícaro de seus personagens, mas sem, contudo, abrir mão da universalidade subliminar que há sob cada uma dessas particularidades e eventos acidentais. Foi um casamento muito feliz, e sua base pode ser definida assim: o romance de idéias é um desdobramento da prosa espanhola no qual o caráter alegórico dos personagens prevalece sobre o elemento puramente narrativo e descritivo. O Quixote quer em primeiro lugar mostrar uma cena, um fato, um acontecimento, uma história, e assim a pensa de forma exemplar; o romance de idéias quer plasmar alguns conceitos nos caracteres de alguns personagens, e narrar a saga da inteligência rumo à libertação da idolatria e à tolerância em um percurso constante de emersão das trevas em direção à luz.

Com a tradução do Quixote para o alemão levada a cabo por Tieck nas primeiras décadas do século XIX as coisas começam a mudar de figura. Afinal, em pleno clima de Sturm und Drang, o que esperar senão uma leitura das peripécias do cavaleiro que levasse em conta a sua hipotética profundidade humana em detrimento da sua natureza cômica inequívoca? E assim começou a nascer o mito de um dom Quixote trágico, forjado pelas mãos dos românticos, sobretudo pelos irmãos Schlegel, segundo o qual o descompasso entre o mundo e o indivíduo, e a conseqüente desarmonia dos sentidos daí advinda, só podiam resultar da inadequação entre aquela subjetividade intrínseca que, por meio do seu idealismo, mergulha em busca do Absoluto, e o movimento dialético de destruição e contradição que a Natureza implacável lhe devolve em troca. Essas serão as diretrizes do mito quixotesco romântico, baseado em primeiro lugar na convicção de uma inadequação entre o homem e o mundo, e, em segundo, no conflito entre um mundo ideal e perfeito, porque produto do sonho e da imaginação, e a sórdida crueza do real, que só pode ser habitado se for transformado dialeticamente. É desnecessário dizer que essa interpretação conferiu uma espessura ao mito cervantino até então desconhecida, e serviu também para embaralhar uma série de coisas. Entre elas, uma há que se destacar, e é das mais sérias: essa visão, ao identificar dom Quixote à própria encarnação das forças ideais em confronto com as contingências reais, movimento característico da evolução do Espírito, fez tudo o que não podia fazer com ele, ou seja, transformou-o em uma tola positividade. Com isso toda aquela dimensão transcendente de negação e o elemento genérico mesmo da representação (a paródia) vão por água abaixo, bem como as infinitas camadas de sentido que essa mesma negação gera quando tomada como o coração da própria obra e sob uma perspectiva retroflexa: quando se anuncia como uma negação da negação. E foi assim que a empobrecemos em troca de alguns enunciados filosóficos de gosto tão duvidoso quanto a idoneidade intelectual dos filósofos que os forjaram.

Essas sucessivas reencarnações do Quixote e as interpretações mais ou menos abstratas, tipológicas ou positivas da sua estrutura mítica, e aqui penso o mito no sentido em que Aristóteles o define, como o conjunto composto pela trama dos argumentos, caracteres e ações, começam a nos interessar de perto quando pensamos na teoria do romance desenvolvida por George Lukács. O crítico húngaro define o romance como sendo o desenvolvimento da natureza vertical da narrativa, em oposição à sua estrutura horizontal. Para ele o romance nasce quando o escritor começa a focalizar em profundidade os personagens dentro da cena e a trabalhar o conteúdo psicológico desses mesmos personagens, uns em relação aos outros. Para Lukács o Quixote é ainda o exemplo de narrativa onde há o predomínio do idealismo abstrato, ou seja, onde o mundo é vasto e cheio de peripécias e ações, mas no qual a interioridade dos personagens é restrita ou em alguns casos quase inexistente. É uma narrativa onde predomina o eixo sintagmático das escolhas e a multiplicidade de situações, locais e cenas. A essa prosa idealista abstrata se sucede um outro tipo, que é propriamente a forma romanesca, e que consiste no oposto dessas características: aprofundamento psicológico, unidade em detrimento de multiplicidade, escolha paradigmática, focalização fechada e densidade existencial em oposição ao movimento e à sobreposição de ações. É esse o tipo de narrativa romanesca que Lukács define como sendo uma narrativa do desencanto romântico. Ora, não é preciso ir muito longe, nem levar em conta o fato de Lukács ser um crítico marxista, para perceber que sua proposta é uma variação em torno da interpretação romântica. Se o romance é o gênero burguês par excellence, e é nele que se dá o drama dos indivíduos modernos e se encenam as relações de classes, como quer a crítica marxista, a definição de sua estrutura vai estar sempre a serviço desse desenvolvimento sociológico e em contraposição a um fator bem mais concreto, que é de ordem estilística e retórica, fator este que vez ou outra serve como mero argumento para endossar as premissas que essa crítica já traga de antemão na manga da camisa.

Esse demérito do idealismo abstrato em proveito do romantismo da desilusão é estratégico e malicioso. Tem em vista provar que somente este último pode levar a cabo a representação de uma sociedade burguesa em todas a suas faces, e só assim pode proceder a uma crítica de seus costumes. A partir dessas crenças também se isola toda produção que mantenha débito ou afinidade com a grande tradição alegórica que o crítico húngaro chama de idealista abstrata como sendo contraproducente e equívoca. E eis que estamos de novo às voltas com o positivismo mais cândido do século XIX. E é ele o instrumento que Lukács usa da maneira mais hesitante possível para diminuir autores da envergadura de Franz Kafka, James Joyce e Samuel Beckett, sob o pretexto pueril de que a dimensão alegórica da obra desses autores corresponderia a uma atitude evasiva em relação ao mundo, que apenas o sinaliza ao invés de mergulhar em sua estrutura e analisá-lo, como o faria um bom escritor à Zola, sendo que qualquer leitor sensato percebe justamente o contrário: que o aspecto alegórico da obra desses autores deita raízes em uma tradição secular infinitamente mais rica e ampla do que um pueril parti pris realista, e que ao referir indireta e alegoricamente eles estão exatamente elevando a negação dessas mesmas estruturas sociais a uma dimensão metafísica, e dando ao mundo uma espécie de teologia negativa que refaz e revira todas as suas instâncias sem ter que se imiscuir de maneira descritiva em seu funcionamento. Mas as contradições dessa divisão não param aqui, e podem ser rastreadas na própria arquitetura narrativa do Quixote, que Lukács reputa ser uma obra idealista abstrata.

Além das mudanças ocorridas na segunda parte, onde o mundo todo se torna um grande teatro, a vida vira uma metáfora da leitura e a escrita um espelho da própria criação do mundo, o que notamos é que há um afunilamento da ação e uma maior densidade dos diálogos e, portanto, dos personagens. Passamos da multiplicidade de episódios, entremeados de pequenas novelas literalmente interpoladas, ou seja, de uma estrutura aberta, porosa, que tende mais à ação do que à reflexão e cuja finalidade parece ser gerar o cômico por intermédio do virtuosismo que vira o mundo de cabeça para baixo, e entramos em uma outra atmosfera, onde a ação é mais retilínea, sem tantas vozes e sem tantas interrupções. A heterogeneidade cede à homogeneidade narrativa, a ponto do narrador da história Cide Hamete Benengeli a uma certa altura se demonstrar enfadado, porque já não tem mais a gama de opções estilísticas de que dispunha na primeira parte. Mas o faz com um propósito: cativar ainda mais os leitores da obra, que se interessavam, sobretudo pelo itinerário errante dos heróis, sendo os demais personagens e histórias paralelos de valor secundário nesse caso. Isso demonstra que a divisão entre uma narrativa baseada nos princípios de um idealismo abstrato, em oposição a uma outra, que estaria nas raízes do gênero romance propriamente dito, e que se baseia na desilusão romântica dos personagens que passam da crença à descrença e da ilusão à desilusão, é insuficiente, porque incapaz de dar conta de um close reading um pouco mais acentuada em uma obra como essa. Aliás, poderíamos lançar até uma questão, que consiste no seguinte: uma das tônicas de todas as letras quinhentistas e seiscentistas é o desengano. Ele consiste na passagem de um estado de natureza e de latência a um outro, onde as forças da civilização se mostram às claras e os personagens reconhecem a verdade que finalmente se lhes revela, mostrando o quanto eles estavam enganados, às voltas com sombras e equívocos e, mais do que isso, tomando-os como reais. Calderón de la Barca é um mestre nisso, mas podemos enfileirar uma quantidade copiosa de autores que dispensaram atenção considerável ao tema, entre eles Camões, Gracián, Sá de Miranda, Gregório de Matos, Quevedo, Vieira, os poetas metafísicos ingleses e tantas outras obras em prosa menos conhecidas que trabalharam esse lugar-comum à exaustão, que em última instância já se encontra nos antigos. E se for para pensar em termos filosóficos, basta analisar um apanhado de ensaios de Montaigne, onde ele propõe um Deus cuja indiferença infinita parece ser o corolário mesmo de sua divindade e a única maneira dele continuar sendo Deus, à revelia da falta de sentido da vida sobre a terra, ou analisar algumas sentenças de Pascal para se ter uma idéia de como o engano e o simulacro estavam arraigados a essa época, e forneciam a base de orientação estóica em um mundo onde a Providência vinha deixando de interceder em benefício do todo, vive alijada em uma espécie de redoma, e onde em última instância o homem está a sós com a solidão aterradora dos espaços infinitos.

É certo que essa última sugestão fica por conta de um âmbito jansenista. Mas as demais caem como uma luva ao contexto de Cervantes. E podemos muito bem nos perguntar até que ponto esse lugar-comum que narra o percurso do engano ao desengano pode ser lido como uma desilusão romântica. E aqui creio que a chave para compreender essa obra magnífica continue sendo o paradoxo, que é de extração estóica e vem ligada à doutrina da ataraxia, ou seja, a um ideal de distanciamento tão acentuado que chega a beirar o sadismo ou, em última análise e, por que não?, a loucura. Se o elogio da loucura que Cervantes leva a suas últimas conseqüências em seu mundo às avessas foi bebido em Erasmo de Rotterdam não resta a menor dúvida. E sendo o autor o leitor voraz que foi dificilmente não tenha tido oportunidade de conhecer a obra do grande moralista holandês. Harmonizando as peças do paradoxo sob uma falsa dialética e multiplicando o jogo dos sentidos ad nauseam temos a negatividade. Ela me parece ser o coração do Quixote. E é da sua condição irredutível a qualquer predicação definitiva e da sua recusa a quaisquer tipos de nomenclaturas que nascem as infinidades de suas leituras possíveis. E se o espírito se deleita na diversidade, como queriam Montaigne e Gracián, é dessa infinidade de leituras que nasce também o prazer intelectual inesgotável que essa obra nos proporciona. Dostoievski não estava exagerando ou criando uma mera frase de efeito quando disse que se alguém lhe perguntasse o que vem a ser a vida ele lhe entregaria um exemplar do Quixote. Nele o sentido é um devir em constante transformação e por isso mesmo inapreensível, uma disjunção permanente entre as palavras e as coisas e entre as substâncias e suas propriedades. Mas se nos diz que nunca estamos do lado da verdade, ao menos tempo não chega a dizer em nenhum momento que ela de fato não exista. E esse é o fio com o qual Cervantes manipula suas marionetes e ao fim e ao cabo nos manipula, com o cinismo de quem conhece os homens a tal ponto que é capaz de se fazer de tolo diante dos mesmos, fingindo uma completa ignorância em relação a tudo para que assim sua verdade seja cada vez mais preciosa no fundo dessas aparências ilusórias e opacas. E aqui qualquer relação com Machado de Assis é bem-vinda e mais do que oportuna. Um e outro são irmãos espirituais.

Em termos de amplitude temática e filosófica, de resolução formal e de significação filosófica, o único equivalente poético do Quixote que me ocorre é a Comédia de Dante. Embora a riqueza de caracterização de tipos humanos e de afetos, de situações e de conteúdos sociais e psicológicos, bem como sua inapelável e pulsante esfera vital em que se movem seus personagens o aproxime de Shakespeare, creio que haja uma unidade mítica subjacente a toda a estrutura da obra que só encontra correspondência na obra máxima do poeta florentino. E para ele também vale a famosa declaração de T. S. Eliot a respeito deste poema teológico: é um dos pontos mais altos que a prosa de ficção já conseguiu atingir e um acontecimento que dificilmente se repetirá. Muitos podem pensar que tudo na obra de Miguel de Cervantes seja um jogo que pretende restaurar um velho ceticismo. Nada contra os jogos, mas não sei se é possível fazer essa afirmação, mesmo tendo em conta as palavras do próprio escritor no diálogo de dom Quixote e do cônego, que se inicia no capítulo XLVII da primeira parte. Nele encontramos uma espécie de súmula das idéias artísticas cervantinas, e uma defesa da predominância do deleite sobre o ensinamento, segundo aquela tripartição retórica famosa dos antigos. Creio que aqui também estejamos diante daquele gênero híbrido e de um tipo curioso de comédia metafórica: aquela para qual o riso é sempre um índice de corrupção, fato que, se não chega a ser trágico, está longe de ser resolvido como uma manifestação puramente epidítica e festiva. Se quiserem, em outras palavras, estamos diante de um jogo no qual se está o tempo todo perdendo porque só é possível perder. E isso decanta e altera toda sua natureza afirmativa com tons de claro e escuro até então desconhecidos. A profundidade dessas águas só vai se revelando aos poucos, no decorrer da ação, episódio a episódio vai sendo construída por uma inteligência diabólica com uma pena impecável. Ambas as partes são circulares: a primeira começa e termina em seu vilarejo, após uma série de aventuras obviamente frustradas, e a segunda idem, e tem na cidade Zaragoza o seu destino não cumprido, pois o cavaleiro só chega a Barcelona. Entre dois fracassos, aqui entra outro aspecto interessante. No final da obra, dom Quixote volta vencido desta cidade para sua vila, após travar um duelo com o cavaleiro da Blanca Luna, no qual penhora nada mais nada menos do que o próprio exercício da cavalaria. Esse cavaleiro lhe é bastante familiar, embora esteja encapuzado e o herói não o reconheça. É seu vizinho e amigo, o licenciado Sansão Carrasco. Forjou essa mentira para devolvê-lo à sua sobrinha e tirá-lo de vez da vida perigosa da cavalaria andante à qual sua loucura o havia conduzido. Quixote volta para a casa menos confiante na sua missão do que saiu, e de certo modo desencantado e sem tanta convicção nos encantadores, em Dulcinéia, nos dragões e em tudo mais. Nós, seus leitores, pelo contrário, sofremos a sensação contrária: ao fechar o livro pouca coisa sobra ao redor que se mantenha íntegra e imune à corrosão cáustica de uma lucidez que não pode e não quer enxergar o mundo de outra forma. Desmonte após desmonte, desconstrução após desconstrução e máscaras que se sobrepõem a máscaras. Enfim somos donos de uma lucidez que nos possibilita ver o quanto o mundo ainda está aquém de si mesmo e o quanto a fantasia que lhe ultrapassa só serve como evasão e paliativo para a nossa mais gritante e inexorável miséria.