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Rogério Barbosa da Silva


 


“O Achamento de Portugal” e sua geografia imaginária


 




Escultura Chapa de Ferro, Amilcar de Castro, Museu de Arte da Pampulha, BHZ, MG
 

Lançada recentemente em Belo Horizonte, a coletânea de poemas organizada e editada por Wilmar Silva, numa parceria entre a anomelivros e o Consulado de Portugal, põe em diálogo diversas vozes poéticas mineiras, tendo como contraponto à literatura portuguesa, representada pelo poeta e escritor contemporâneo José Luís Peixoto.

A partir da leitura do volume, percebe-se nitidamente duas dimensões de sua proposta: a primeira seria uma amostragem das vozes poéticas atuantes no cenário mineiro em que encontramos poéticas diferentes, mas não necessariamente dissonantes. Já a segunda é aquela explicitada no título da coletânea, isto é, um (re)encontro às avessas, na medida em que se propõe uma viagem reversa e alusiva à história, porém sem o impacto altissonante da idéia de “descoberta”.

Evidentemente, os poetas brasileiros não descobrem agora a literatura de além-mar; desde os anos 60, pelo menos, as novas gerações de poetas dos dois lados do atlântico mantêm-se atentas às produções de seus pares. A freqüência com que podemos atestar a passagem de poetas portugueses por Minas Gerais e a publicação de textos em inúmeras revistas e jornais mineiros evidenciam essa atenção, uma vez que, nesses veículos, encontramos nomes como Fernando Aguiar, E. M. de Melo e Castro, Alberto Pimenta, César Figueiredo e Ana Hatherly, para citar alguns que foram publicados em suplementos literários ou nas páginas da revista Dimensão, além de cadernos de cultura dos jornais diários. Por outro lado, os mineiros freqüentam publicações como a revista portuguesa Colóquio/Letras, Apeadeiro (Wilmar Silva e Milton César Pontes são exemplos), entre outras.

Também comparecem na correspondência com autores portugueses, em exposições de poesia visual, em especial organizadas desde os anos 80 por Fernando Aguiar, e em resenhas diversas. Noutras palavras, o contato existe. O que significa, então, esse “achamento” conduzido pelo projeto do poeta Wilmar Silva?

Desde o primeiro texto, “Ouro Preto na voz de minha mãe”, de José Luís Peixoto, sentimos confirmarem-se as palavras do organizador: “... mais do que pensar a origem da língua que tanto nos semelha e nos distancia, meeiros, o paraíso do sonho é o deserto do desejo, o arco-íris como bodoque de uma cartografia humana, últimos ágrafos, o mundo é todo o fluxo, boca, língua, poesia, linguagem, um é todos, minas é mundos e submersa irrompe rediviva, livre, falas, palavras, poesia, poemas, um balaio de pinturas rupestres, mutantes e ultramarinos...” (p.11).

Efetivamente, o poema do português José Luís Peixoto evidencia uma viagem feita por dentro, isto é, por baixo dos passos do viajante, ecoa a memória de uma voz que não se quer simplesmente ancestral, mas portadora de um particular acento maternal, afetivo. É a voz da mãe que oferece ao filho a singular experiência de uma terra estranha e familiar, o que o leva a dizer: “ouro preto. acabei de nascer no meio da praça. (...) ouro preto. chego pela primeira vez aonde/ sempre estive.”(p.23).

Este é um sinal claro de que o diálogo proposto por essa coletânea se processa no interior, na própria corrente sanguínea da linguagem e do poema. Portanto, tal como em José Luís Peixoto, os poetas mineiros evocam, com freqüência, a imagem do corpo para falar desse sonho luso-americano. Por exemplo, em “Porto (infinito)”, Adriano Menezes constrói imagens que trazem em amálgama o corpo, a alma, a terra firme e o fluir permanente das águas, com que metaforiza a contínua transformação do ser entre montanhas e seu dúbio desejo: do corpo que se “esvai em gomos”, isto é, um corpo/encosta, que sente o paradoxo de querer “ir por águas” e de querer ser, ao mesmo tempo, cais – ponto de chegada/ponto de partida. Dessa imagética, qual mônada, derivam os versos: “o morro fabricando/ umidades sensuais que/vão pelo mineral pétreo/ compor esse dia preso/ ao dúbio mar dos serranos” (p.26). Imagens como essas são recorrentes noutros poetas desta Coletânea, como podemos ver nestes versos de Milton César Pontes: “....sou este selvagem/ luso índio afro brasileiro que/ faz poemas e se arremessa atado/ a âncora com fios de cobre na artéria/ do fado que me canta o atlântico...” (p.66).

Neste contexto, as profundas correntes da língua poética fazem vir à tona um canto amoroso, mas, nem por isso, ingênuo ou afetado. Seria correto dizer que, no conjunto, desponta desses poemas uma linguagem transitiva, porque não isenta do afeto e tensionada para o diálogo com o outro em si mesma, como diriam os versos de Edimilson de Almeida Pereira: “a língua para os assaltos devolve o anonimato a/ pessoa. podem fremi-la os gatos em olinda e/ luanda, os barcos em litígio no faro” (p.43). Esta língua, nos seus inúmeros desvios e intertextos, produz o ritmo intenso da procura e nos devolve, nos seus sobressaltos, as “gestas” de uma geografia imaginária, uma vez que as paisagens portuguesas e mineiras se mesclam e as almas se confundem. Talvez porque, como já disse o poeta português António Ramos Rosa, a palavra “nasce de um vazio perante outro vazio/ e tem de inventar o seu corpo em cada sílaba”. Portanto, são também diversos os itinerários dos poetas desta Coletânea ao fazerem delirar a sua lírica luso-brasileira, numa temática vária, mas afinada com a aventura que se propugna neste livro.



 

Feito este mini-percurso, cabe ainda ressaltar que o poeta e editor Wilmar Silva nos oferece um belo volume. A começar com a capa, um belíssimo trabalho da artista Mafi Espírito Santo, em técnica mista, passando pela excelente qualidade gráfica do miolo, o livro demonstra o zelo esmerado que Wilmar Silva tem demonstrado à frente das edições da anomelivros. Nesta Coletânea, a organização merece também destaque, pois seu editor, em primeiro lugar, realiza um trabalho de mapeamento das vozes poéticas mineiras, colocando-as em diálogo na sua multiplicidade e em sua coerência com o projeto proposto. Assim, o poema inicial, de José Luís Peixoto, registra em primeiro plano a voz do outro (isto é, o objeto do “encontro” neste caminho reverso).

Em seguida, um fragmento de Pero Vaz de Caminha confere ao volume a nota histórica, a senda para os trinta e um poetas brasileiros, curiosamente a idade do poeta português. Entre os nomes deste primeiro conjunto, muitos são já bem conhecidos no Brasil, como Edimilson de Almeida Pereira, Fabrício Marques, Guilherme Mansur, Maria Esther Maciel, Ricardo Aleixo, Ronald Polito e o próprio Wilmar Silva. Outros, nem tão bem conhecidos, já têm história na literatura mineira e uma produção que vem sendo desenvolvida desde meados da década de 1980, na maioria dos casos.

A seguir a este conjunto inicial, um verso “breve e imenso” de Gregório de Matos, conforme o editor, ilumina a poesia de outros sete poetas, a maioria ainda de estreantes, sem livros publicados, também eles navegantes nas confluências das tradições modernas e na busca do veio mais puro da lírica em língua portuguesa. Aqui se percebe a sensibilidade poética e editorial de Wilmar Silva, pois, ao mesmo tempo em que abre espaço para as novas vozes poéticas ainda inéditas, o editor sinaliza que a palavra poética renova-se a cada instante. Por isso, as três seções do volume simbolizam também o fluir permanente e a renovação. Assim, ao ciclo dos meses, representado pelo numero trinta e um, segue-se o “ciclo dos sete dias de um ciclo de semanas”, e o número um, a marca do dia a repetir-se sempre, representado pelo poema de Donizeti Rosa, morto em 2004 e homenageado no presente volume. Este último é antecedido pelos versos de Cláudio Manoel da Costa, com o qual se evidencia o “ruído” da memória, como forma de reviver o extinto, mas ativando também as fontes da lírica brasileira.

Para concluir, podemos dizer que os poemas desta coletânea nos fazem sentir, como nos versos de Fabrício Marques em “Esportes radicais (1. Tiro à língua), que uma “Certa draga/ retira do fundo do rio/ Uma língua em riste/ que diz (...)/ Muitas hão de ir/ Eu ficarei/ Eu à prova de mim” (45).


* Rogério Barbosa da Silva (Belo Horizonte/MG). Professor do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET/MG). Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

Poetas da antologia “O Achamento de Portugal”: José Luiz Peixoto, Adriana Versiani, Adriano Menezes, Alécio Cunha, Alexandre Rodrigues da Costa, Ana Elisa Ribeiro, Anízio Vianna, Camilo Lara, César Gilcevi, Edimilson de Almeida Pereira, Fabrício Marques, Flávia Craveiro, Guilherme Mansur, Guiomar de Grammont, Helton Gonçalves de Souza, José Aloise Bahia, Jovino Machado, Luiz Edmundo Alves, Marco Llobus, Maria Esther Maciel, Mário Alex Rosa, Milton César Pontes, Mônica de Aquino, Narciso Durães, Renato Negrão, Ricardo Aleixo, Ricardo Evangelista, Rodrigo Guimarães, Ronald Polito, Wagner Moreira, Wagner Rocha, Wilmar Silva, Bruna Piantino, Christian Guimarães, Eric Ponty, João Gabriel Morais, Jussara Sabino dos Santos, Leonardo Deleo Gama, Marcela Fellet e Donizeti Rosa.


 

 

 


 

16/11/2005