Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Rodrigo Marques


 

Fragmento, Soares Feitosa
 

“O que mais impressiona no Poema verdadeiro, meu caro senhor Bibliotecário, é que sempre o conhecemos, embora jamais o tenhamos lido, sequer ouvido falar no título ou nome do poeta”.

(Soares Feitosa, Salomão)
 

I
 

Borges, em La flor de Coleridge[1], resenha alguns autores que afirmaram que uma obra literária é apenas um fragmento de um texto infinito e coletivo. Assim cita Paul Valéry, “La Historia de la literatura no deberia ser la historia de los autores y de los accidentes de su carrera o de la carrera de sus obras sino la Historia del Espiritu como productor o consumidor de literatura. Esa historia podria llevarse a término sin mencionar un solo escritor”. Antes, porém, em 1844, Emerson já havia comentado: “Diríase que uma sola persona há redactado cuantos libros ha em el mundo; tal unidad central hay em ellos que es innegable que son obra de um solo caballero omnisciente”. Shelley dissera que todos os poemas do passado, do presente e do amanhã são episódios de um só poema, erigido por todos os poetas do mundo.

No final do artigo, Jorge Luís Borges confessa: “Durante muchos años, yo creí que la casi infinita literatura estaba en un hombre. Ese hombre fue Carlyle, fue Johannes Becher, fue Whitman, fue Rafael Cansinos-Asséns, fue De Quincey”. Nem Whitman, nem Carlyle, mas a unidade do Verbo, a literatura impessoal, ecumênica.

A partir dessa idéia, pretendemos estudar os fragmentos de Soares Feitosa, sugerindo que sua obra acrescenta ou revela passagens até então não lidas de um texto sem margens.

Primeiramente, Soares Feitosa diz nunca ter composto um verso até o 19 de setembro de 1993, quando escreveu Siarah aos 49 anos. Anteriormente, funcionário e açougueiro. Este detalhe não amplia nem diminui o valor de sua poesia, pois exemplos assim são conhecidos na história. Porém, aquela confissão ganha sentido quando adentramos numa poesia pessoal e épica, como se estivéssemos diante de uma revelação. Daí o autor, nas notas de Siarah, narrar em terceira pessoa o momento em que viu pela primeira vez um verso: “Fruto de violenta explosão emocional, quando se dirigia à Estação Rodoviária do Recife, e escutava, pelo rádio, as notícias da construção do canal no Ceará. Ao mesmo tempo, o repórter abria paralelos de grande tristeza com o violento racionamento por que passava a cidade do Recife. Caruaru, em especial: 250.000 habitantes, um dia com água; nove, sem!.

O “fruto de violenta explosão emocional” assemelha-se, guardando as medidas e pesos devidos, ao arrebatamento com o qual “Maomé, então com 40 anos, viu o anjo Gabriel na sua frente. Ordenou o anjo: “Recita!” “Que recitarei?”, perguntou Maomé. “Recita!” repetiu o anjo. “Que recitarei?”, voltou Maomé a perguntar. “Recita!” disse o anjo pela terceira vez”[2], e aí recitou O Coágulo. Eram os primeiros versículos do Alcorão.

Nem anjo, nem transe ou voz do além, mas um locutor de rádio, no carro, documentando a seca do 93, o mote que o poeta esperava: “um dia com água; nove, sem!”; de posse da notícia, Soares Feitosa recita Siarah. Poema longo, de tom heróico, épico-condoreiro, a fiscalizar a Indústria da Seca Nordestina. O fato, repetimos, ganha força no contexto de uma obra de feição marcadamente pessoal, de referências biográficas muitas vezes indecifráveis para quem não convive com o poeta. Primeiro, porque ele toma a notícia para o improviso, à maneira dos cantadores de feira e sertão; segundo, porque retorna em pleno trânsito à Santa Quitéria, sertão do Ceará, terra da infância; e por fim, porque o canal de comunicação, o rádio, a tecnologia, irá recortar a identidade do autor e editor do Jornal de Poesia, espécie de biblioteca virtual, uma enciclopédia de poetas e críticos na Internet.

Portanto, aquela revelação vai deixando uma cicatriz por onde as palavras de Feitosa passam, de tal forma que o autor não mais que acrescenta outras partes, trechos, emendas ou remendos poéticos em Siarah, que já nasceu fragmentado; numa tentativa de costurar um capítulo ou mesmo um índice que sirva como prova de uma obra maior e inacabada. Daí o começo suspenso dos poemas, como se finalmente pudéssemos retomar uma leitura interrompida a muito tempo, e o final inconcluso, ansioso, como se faltasse a nota final da escala. Com isso, Soares Feitosa nos dá a impressão de escavar o seu canto interior a procura do livro perdido, mas de fácil reconhecimento, pois o “homem limpo de todas as coisas é a medida do homem”.[3] A isonomia do humano, este “idêntico bicho-de-dois-pés”, impulsiona o mergulho na casa e no rosto de dona Anísia, a mãe, “professora, parteira, mulher de todos os instrumentos.”; no rio Macacos, “tanto faz cheio, como seco”; no moinho marca Alexanderwick ou no “pilão preto de aroeira, cavado a fogo”; ou numa viagem de trem, “-Não vai bater, dá pa’passar? Terão medido direito?”; ou numa briga inusitada e histórica com uma raposa.

Daquele 19 de setembro de 1993 até o hoje, o autor publicou duas obras: Réquiem em Sol da Tarde (1995), verdadeiro almanaque feito à mão - “fiz questão de fazer tudo, pelo puro prazer de fazer” - livro de quase 600 páginas, que enfeixa, além de seus poemas iniciais, fotos da gaveta do poeta, recortes de jornal, a gravura de um quadro de Francisco Brennand, uma fortuna crítica numerosa, um pequeno envelope com sementes de imburana torradas e moídas, prontas para cheirar; e outras surpresas. O livro foi entregue a escritores e amigos, 257 exemplares. O arrojo gráfico fez o poeta dizer que “talvez o Réquiem, como volume completo, jamais venha ser editado. Os custos altos, as dificuldades, o tamanho massivo – um tijolaço, como se diz”; e Psi, a Penúltima (Editora Papel em Branco, 1997), de formatação menor, o livro reúne novos e velhos poemas, além do Manifesto do Jornal de poesia, do ensaio Os poemas da Besta, e de uma apreciação crítica cada vez mais significativa.

Porém a obra de Feitosa se encontra em maior volume no sítio www.jornaldepoesia.jot.br  Na realidade, o sítio é a própria escrivaninha do poeta. O leitor tem a oportunidade de acompanhar, quase que ao vivo, o pulso digital de suas criações. Vale ressaltar que este processo de certa forma democratiza a leitura e rompe com o bloqueio das grandes editoras, além de divulgar a poesia de Língua Portuguesa para os cantos do mundo. Aliás, foi sob o espanto de não ter encontrado poesia afrobrasilusa[4] na Internet que Soares Feitosa criou o Jornal de poesia, como nos relata em entrevista concedida a revista Arraia (nº1, nov/dez 2000. Fortaleza Ceará): “É que quando eu cheguei a Internet em 1996, e fui procurar poesia de Língua Portuguesa, inclusive nos sítios (...) brasileiros, não tinha nada vezes nada...”. E já no dia 13 de junho do mesmo ano, dia de Santo Antônio, nascia o espaço virtual que hoje abriga mais de 2000 poetas de Língua Portuguesa, sem contar com o aparato crítico com o qual ele é revestido.

O convívio com a informática permitiu ao autor uma exploração inusitada do espaço visual e gráfico do poema. Com razão, as palavras de seus textos ocupam um lugar estratégico no papel, não para realizar uma arte concreta, mas para facilitar e marcar a leitura. A clareza, por sinal, recorta a poesia desse autor cearense, que obedece a risca às normas da língua culta sem cair num artificialismo formal. Perceba a atualização tecnológica que Soares imprime em seus poemas e a correção vernacular com um trecho de No céu tem Prozac:

   ------- Tem mesmo, mãe, tem...
                         verdade,
                         lá,
                         no céu,
                         tem pão?

    (Em tom de ninar, em voz só de mãe):
    Desce gatinho,
   de cima do telhado,
   para ver o Francisquim
   dormir bem sossegado...

             Desce, gatinho,
             de cima do telhado,
             para ver o Francisquim
             dormir bem sosssegado...


Adormeceu ...................................... :

Dormiu.
 

A poesia de Soares Feitosa organiza-se em três blocos temáticos: heróica, telúrica e lírica. A divisão proposta pelo autor, embora consiga agrupar boa parte de sua obra, deixa escapar poemas importantes, como Format Cê Dois Pontos, que retrata uma pane infinita no computador do poeta, que vai apagando e recriando com clicks e comandos a história da humanidade; ou poemas que melhor se enquadrariam em circunstanciais, porque fotografam circunstâncias muito peculiares à História recente do país ou cumprimentam alguns amigos e poetas, bastam os exemplos de Thiago, de Ayrton e de Roma, uma história de índios; ficam ainda fora daquela classificação os textos poéticos feitos para os projetos dos artistas plásticos Valdir Rocha, sobre o quadro Fui eu, e Hélio Rola, com o projeto Sem Cabeça, e o ensaio poético O que o tempo há de querer? sobre fotografia de Steve McCurry, além do poema O Domador- “releitura” do quadro de Francisco Brennand.

A classificação, de qualquer maneira, delimita ou organiza o extenso tecido literário de Feitosa.

Os cortes ou a fragmentação nas peças poéticas representam, em outro plano, os vazios da memória do poeta, que tenta, ou num feito heróico, ou amassando a terra natal, ou ainda no corpo da amada, reconstruir o mito que ele via todos os dias molhar os pés no Rio Macacos -“Era um menino./ uma janela, cisterna, respingavam-lhe à face os elementos em fúria/ de céu e criação, céu. Céus!”. A infância. Daí Wilson Martins ter afirmado que “os motes gerais dessa poesia, nas suas próprias palavras, são a infância, o chão, os matos, as pedras, os céus, as águas, o sertão, os bichos grandes e miúdos, oficinas e tralhas, cheiros e sons! mofumbos & alecrins, perfumes — tudo expresso no idioma dos grandes poetas universais, ecos da poesia primeva, Homero e Saint-John Perse, Walt Whitman e Victor Hugo...”[5].

Como podemos perceber, o estudo que se faz aqui deve acompanhar o ritmo da memória e da fragmentação. Não iremos realizar a análise de um livro ou dos poemas expostos no Jornal de poesia, mas sim a leitura de um episódio que julgamos representativo e capaz de nos oferecer um índice: o poema Siarah.

 

II
 

Siarah foi o primeiro trabalho do autor, o tal fruto de violenta explosão emocional. E se é certa ou errada a sentença de Gerardo Mello Mourão de que “o vero e mero poeta repete sempre seu primeiro poema”[6], Soares Feitosa parece seguí-la com disciplina.

Espalhado em dez cantos[7], Siarah funciona como mote central da obra feitosiana. Lá estão os motivos com os quais irá trabalhar sempre, seja aprofundando-os em poemas maiores, seja fazendo um auto-referência direta do poema.

Mas o que se destaca é a entrada em cena da voz que recitará toda a obra do autor. Na realidade, a entrada do Poeta que vem percorrendo as estradas da humanidade, cantando os heróis e as tragédias do homem, um cavaleiro onisciente que de vez em quando afina a viola nordestina e se encarna num cego Aderaldo, num Gerardo Mello Mourão, num tocador de sanfona - Luis Gonzaga, num Ariano Suassuna, num João Cabral de Melo Neto ou num Patativa do Assaré. Este Poeta, que também podemos chamar de Homero, Shakespeare ou Dante, é o responsável pela literatura infinita, impessoal, que tentamos aqui projetar.

Siarah, grafia original - e mais bonita - do Estado de Iracema, traz esta voz única e comum, que se identifica com o povo nordestino por ser andarilho e descomunal:

Vem, vamos,
migrante eu sou, somos
de lá, eu e tu, Ceará.

...

Estilete de furar olho,
Assum-Preto do meu destino,
a flor...
da mata...
não abriu...
meu canto também secou.

As inúmeras referências literárias e históricas do poema já prenunciavam o modo de criação do autor, baseado na incorporação de fragmentos alheios. Semelhante processo foi descrito por Ivan Junqueira ao analisar a obra de T.S. Eliot: “Ao assimilar suas multiformes influências, Eliot desenvolve um sutilíssimo processo de globalização literária que, mediante complexas operações mimético-metamórficas, vai aos poucos revitalizando o material “tomado por empréstimo” a este ou àquele autor, de modo a torná-los “estranhamente eliotianos”, quando o oposto é que seria plausível”[8]. O raciocínio se ajusta ao nosso estudo.

O poema confronta o Nordeste da literatura regional e neo-realista, “que compreende os modernos “ciclos” da ficção brasileira, (...): os ciclos da seca, do sertão, do cangaço, da cana-de-açúcar, do cacau, do café, com Raquel de Queirós, José Américo de Almeida, José Lins do Rêgo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Clóvis Amorim, Nestor Duarte”[9] , com um novo trom, uma nova maneira de falar as coisas do sertão, aliada muito mais às festas e às profecias: “Reinações de Gerardo,/ vinde ouvir um novo trom:/ um mísero riachinho, de piche, bem fraquinho,/ mas não tem outro mais bonito no lugar!. Esta passagem, impressa no sexto Canto, resume de maneira extraordinária a gênese da poesia do autor. Já no primeiro verso, paga um tributo ao poeta que ao lado de Castro Alves dialogará com freqüência em seus fragmentos, a saber, Gerardo Melo Mourão. O mísero riachinho de piche simboliza a revelação poética que lhe chegou no transe/trânsito de Recife no momento da inspiração de Siarah, e é também registro da esperança das cidades sitiadas pela sede[10]. O último carme - “mas não tem outro mais bonito no lugar!” - vem assim em negrito por se tratar da colagem de um verso de Boiadeiro, canção de Klecius Caldas e Armando Cavalcanti, reconhecida na voz de Luiz Gonzaga. A canção retrata uma vida diferente da d’O Quinze de Rachel de Queirós, por exemplo, pois canta uma paisagem otimista e cromática de um pequeno boiadeiro que abre a cancela da morada e reencontra a família. Em toda a obra de Soares, só visualizamos o retorno ao sertão, movimento inverso das migrações dos ciclos de estiagem. Este retorno demonstra a crença no semi-árido brasileiro, nas suas potencialidades, no homem e na beleza rústica da paisagem (o poema Antífona irá identificar bem o que dissemos); em outro plano, desta vez mais pessoal, o retorno à cancela da morada realiza também a volta àquele tempo em que se podia caçar passarim com os primos (Compadre primo); ou se estranhar com um macaco de circo (Macaco Caetano); ou ir de panos passados beber na cisterna de Dona Anísia (Panos Passados); enfim, a infância revivida na morada do ser. Aquele trecho, portanto, abriu espaços para a criação de vários poemas e definiu de forma profética as linhas gerais de uma obra que apenas se iniciava.

Ainda sobre o mísero riachinho, adentramos no objeto central do poema: a saga cearense na construção de um rio artificial, 120 Km, cortanto o Estado. O Canal foi construído em cem dias para levar à capital cearense as águas do açude Orós e assim evitar uma calamidade pública, pois Fortaleza bebia suas últimas reservas d’água naquele 1993. A façanha destoava de tudo o que haviam realizado os Governos anteriores, que promoveram com precisão o contrário: a Indústria da Seca, obras paliativas ou mesmo inócuas, como estas, mencionadas por Euclides da Cunha já em 1902: “As cisternas, poços artesianos e raros, ou longamente espaçados como o de Quixadá, têm um valor local, inapreciável. Visam de um modo geral, atenuar a última das conseqüências da seca - a sede; e o que há de combater e a debelar nos sertões do norte - é o deserto”.

O Canal viabilizaria irrigação por onde passasse, distribuindo o Orós. Se não resolvia o martírio da terra, o Canal do Trabalhador, como fora chamado, inspirava uma política de irrigação e desenvolvimento agrário no Estado, além de estimular outras obras de porte capazes de pôr um ponto conclusivo no atraso agrícola e tecnológico da Região Nordeste.

A sugestão serviu para que Soares Feitosa interligasse o feito do povo cearense à profecia de Antônio Conselheiro: “O Sertão vai virar Mar, e o Mar vai virar Sertão”. O poeta crê que o Canal e a união dos rios é a solução do enigma:
 

mote geral:
Uma cidade, belíssima, sitiada pela sede;
120 quilômetros d’água em cem dias;
a glória de um povo que soube libertar primeiro:



                              Ave, Libertas!
O arrojo: São Francisco. Tocantins - Amazonas,
se necessário - cuidem-se, vamos buscá-los!
A profecia decifrada,
príncipes, profetas e conselheiros!
Um povo que sabe e crê:
                                é possível!
 

Como se vê, a matéria do texto é de essência épica, e o mote geral de certa forma funciona como a proposição, o que nos permitiria concluir, numa leitura apressada, que o poeta iria seguir o modelo de épica desenvolvido e fixado no decorrer dos séculos XVI e XVII: 1) proposição (enunciado do tema da obra); 2) invocação (apelo aos deuses para que auxiliem o poeta na sua empreitada criadora); 3) narração (parte central e mais extensa, que contém o relato minucioso da ação executada pelo herói); e 4) epílogo (fecho da ação, deve guardar um imprevisto, mas ser verossímil e coerente, além de conter um final feliz.)[11]. Somam-se a isto a extensão do poema, o impacto de forças sobrenaturais na ação e a magnitude da linguagem. Mas com o passar das páginas, o leitor perceberá que o modelo épico a pouco descrito não foi realizado, e que as forças sobrenaturais representam muito mais o espírito místico do povo sertanejo e a sua formação cultural que uma intervenção direta do divino na obra humana, e que a linguagem trágica do poema acomoda-se muito mais aos signos do homem nordestino que a alguma exigência formal do tema. Com efeito, Soares Feitosa em nenhum de seus escritos segue fielmente um modo poemático. Os modos poemáticos, por sua vez, auxiliam no desembaraço do texto, facilitando a comunicação. Portanto, os versos do autor possuem um ritmo e um formato que em certos momentos chegam a prejudicar o raciocínio poético do crítico e do leitor de poesia, pois se torna difícil acompanhar as regras do intrigado jogo de símbolos que compõem a malha textual em tela. Podermos afirmar que, a rigor, Soares Feitosa nunca escreveu um poema épico, ou um soneto, ou uma ode, ou um acalanto, ou uma balada, ou um rondó, ou uma canção etc. Mas se considerarmos cada poema como uma passagem de um texto maior, desvelaremos a construção de uma epopéia; no dizer de Hegel, “a epopéia, quando narra alguma coisa, tem por objeto uma ação que, por todas as circunstâncias que a acompanham e as condições nas quais se realiza, apresenta inumeráveis ramificações pelas quais contacta com o mundo total de uma nação ou de uma época. É portanto o conjunto de concepção do mundo e da vida de uma nação que, apresentado sob a forma objetiva de acontecimentos reais, constitui o conteúdo e determina a forma do épico propriamente dito.”[12] A ação escolhida por Feitosa, na realidade, jamais foi publicada em jornal, ou transmitida na Voz da América (poema Psi, a penúltima), muito menos se resume à construção do Canal cearense, mas é a ação anônima do menino de Santa Quitéria, pessoal, que se dilui com o contato da palavra poética, espelhando a cosmovisão do Brasil sertanejo. Talvez por isso Gerardo Mello Mourão tenha afirmado no prefácio de Psi, a penúltima que “o mundo de Soares Feitosa é o mundo inteiro, porque é o mundo das Ipueiras, das Novas-Russas, dos Inhamuns, o mundo dos vestidos de chita das comadres, da batina e dos escorregões e das virtudes e das bravatas do vigário da paróquia”. Daí, também, Fernando Py dizer que “sua poesia bem merece o epíteto de poesia épica, já que é um canto geral de cultura e civilização”.

Exemplo transparente do que falamos se encontra no poema A visão das formiguinhas. Uma fábula em que as formigas da casa de Feitosa se queixam de não poderem partilhar da rapadura do poeta como faziam na casa-fazenda da infância. Através de um inventário dos objetos da casa antiga (os dois pilões; o moinho marca Alexanderwick; o bule fumegante; a chapa quente; o fogão de lenha; a olorosa lenha de sabiá; a xícara vasta; o facão FM (Frota Mello);as gaiolas; os carrinhos de brincar; os pássaros e o gato sonolento) e do diálogo com os insetos, o poeta reconstrói o mundo, o vasto mundo pequeno das crianças e do lar sertanejos. A visão das formiguinhas vai além de um simples jogo infantil para espelhar algo que está enraizado na alma do povo nordestino, a saber, o respeito e a relação familiar com os animais e os objetos do dia-a-dia. Gilberto Freyre, em Casa-grande e senzala, nos conta que era hábito comum, no período açucareiro de nossa colonização, que se pedisse proteção aos santos contra o ataque das formigas à terrina dos doces. Veja: “E tinha-se tanta liberdade com os santos que era a eles que se confiava a guarda das terrinas de doce e de melado contra as formigas: Em louvor de São Bento / que não venham as formigas / cá dentro; escrevia-se num papel que se deixava à porta do guarda-comida. E em papéis que se grudavam às janelas e às portas: Jesus, Maria, José, / rogai por nós que recorremos a vós.[13] Vê-se como Feitosa se aproxima dos contornos do povo com uma ação banal, boba, retirada dos doces açucarados de nossas despensas.

Outro poema que demonstra o épico em Soares Feitosa se chama Menino do balde. Uma cena das mais comuns no trânsito das cidades brasileiras (os meninos limpadores de pára-brisas) explode em um canto heróico, retrato do descaso histórico com as crianças pobres do país: “É a guerra, é a vida,/ guerreiros, eu conto,/ guerreiros, eu vi:/ uma sala quebrada,/ uma aula vazia”. A referência a Gonçalves Dias faz com que o problema educacional e o abandono das crianças adquiram gosto antigo, a muito espalhado nas ruas e becos das cidades.

Em Siarah, o mundo nordestino vai sendo apresentado em sua relação econômica, política e cultural com o restante do Brasil. Num primeiro momento o autor faz referência ao ciclo da borracha, que levou milhares de cearenses à Amazônia em busca de látex e fortuna. Lá encontraram a malária (mais de 500 mil cearenses morreram em virtude da febre) e só alguns alcançaram riqueza. A sede da doença era ainda mais cruel que a sede da seca nordestina, pois o homem ardia em meio à lâmina d’água do Amazonas: “Para refrescar meu canto,/ terei de voltar ao Rio-Mar?/ Não foi lá que compadre meu, dentro d’água morreu de sede?/ Borracha, soldado,/ verga-me o lombo,/ desta vez/ não vou!”.

O espaço amazonense vai reaparecer no poema Thiago, num diálogo paisagístico entre os rios d’água do poeta Thiago de Mello e os rios de pó das terras de Feitosa.

A discriminação sofrida pelo nordestino no Sul do país é mencionada em Siarah, que a partir daí passa a enaltecer as glórias históricas e culturais que marcam esse povo. Tudo amarrado com o mote do Canal do Ceará e a conclusão da profecia de Antônio Conselheiro.

Aliás, este personagem surge com mais agitação na parte final do poema ao lado de Dom Sebastião, no momento mais teatral do texto, a lembrar as toscas encenações realizadas pelas comunidades sertanejas nos dias em que se comemoram a Paixão de Cristo:

Disse o Profeta,
o Santo Conselheiro
e se fazia companheiro,
de outro Cavaleiro,
um príncipe,
belíssimo!

Falou outra vez o Santo:

Este aguaceiro todo é a parte primeira!
Eu não falei!
Por que não creram?

Pois aí está:

O Sertão agora é Mar!

Siarah, portanto, insere-se, dentro da obra do editor do Jornal de Poesia, como o índice dos fragmentos que o poeta iria realizar ao longo desses poucos anos de atividade artística, documentando de forma surpreendente a gênese de poemas que só iriam brotar meses ou anos à frente. Resume também a sua maneira de compor com retalhos, ou seja, de incorporar versos e pensamentos já sedimentados na tradição, além de sugerir o traço épico que lhe marca. Outro ponto a ser evidenciado diz respeito a uma esperança corrente que rompe o pessimismo geralmente encontrado nas literaturas da seca e do Nordeste brasileiro. Por fim, realiza uma linguagem que por algumas vezes risca a pólvora da poesia:

Saberei de ti, terra minha!
Despenca sobre meus ombros
Os teus pássaros murchos
Como em terra e pó:
Qu’eu te cantarei murmúrio.

Algumas vezes porque o poeta escolheu pisar poemas longos, que exigem o prosaico e o poético para manter uma certa tensão literária.

 

III
 

Não podemos deixar escapar o registro de que nenhum crítico de maior bagagem debruçou-se de forma satisfatória sobre a obra em estudo. E como disse Thiago de Mello, o autor de Psi, a Penúltima criou um novo idioma que é só seu, o que já autoriza o esforço de qualquer leitor.

Soares Feitosa, como tentamos demonstrar aqui, revela uma consciência criadora exigível a qualquer artista autêntico da palavra. A sua obra deve ser encarada como um extenso fragmento que aos poucos vai sendo preenchido. E a cada estrofe, a cada verso, a cada palavra, Feitosa vai (re)construindo o sertão que habita a infância, a terra, e o gesto heróico de um povo: Siarah.


Rodrigo Marques, jul/2002
 



[1] Borges, Jorge Luis. Otras Inquisiciones. Obras Completas 1923-1972. Buenos Aires - Emece Editores. 1974. p. 639.

[2] Challita, Mansour. O que você deve saber para aproveitar plenamente a leitura do Alcorão in O Alcorão (trad. Mansour Challita; acigi)

[3] Feitosa, Soares. Gêmeas eram as senhas das torres gêmeas ou o homem limpo de todas as coisas é a medida do homem, in Literapia (Revista da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – sobrames- ce) nº 5, 12-2001).

[4] O termo foi criado pelo poeta cearense Roberto Pontes em Poesia Insubmissa afrobrasilusa (Oficina do Autor Editora e Edições UFC/ 1999). Neologismo que visa aglutinar as literaturas de Língua Portuguesa, “de modo que, em afrobrasilusa, deve vir em primeiro lugar o elemento morfológico que sugere a idéia de mais remoto historicamente; o segundo deve ser o que patrocina a idéia de liame, de ponte, e este só pode ser o referente ao Brasil, pois é neste país que a fusão das etnias se aperfeiçoa, visando a integração e o entendimento mútuo; a Portugal cabe o fecho fonológico-ortográfico deste neologismo porque, em qualquer ritual, são lugares de honra sempre o primeiro e o último, os quais cabem aqui respectivamente, aos africanos, que hoje reinventam a Língua Portuguesa, e aos lusitanos, que a modelaram a partir do Lácio.” (Roberto Pontes. Op. Cit. p.166).

[5] Martins, Wilson in O Globo, caderno de literatura Prosa & Verso, de 26.04.97.

[6] Mourão, Gerardo Mello in Poesia, poeta, poema. Coleção Mapa. Museu/Arquivo da poesia manuscrita. 1999. p. 4.

[7] O poema foi escrito no dia 19 de setembro de 1993. No entanto, foi revisitado quatro anos depois (19 de setembro de 1997), em outra seca, incorporando novos versos e assumindo uma estrutura diferente do original. Utilizamos neste estudo a versão mais recente, por ser a mais disponível ao público-leitor, já que a primeira se encontra apenas nos raros números de Réquiem em Sol da Tarde.

[8] Junqueira, Ivan. Eliot e a poética do fragmento in T.S. Eliot Poesia. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. 6ª edição. Editora Nova Fronteira. 1981. p. 18

[9] Coutinho, Afrânio in Introdução à Literatura no Brasil. 11ª. Edição, Civilização Brasileira - 1983. p. 302.

[10] Esta passagem tecemos por sugestão das notas explicativas de Siarah. “O poeta Soares Feitosa costuma acrescentar numerosas notas explicativas sobre o conteúdo alusivo de seus poemas. Essas explicações podem, eventualmente, parecer uma exibição desnecessária de eruditismo por parte do autor. Mas a verdade é que essas notas são de importância fundamental para o leitor compreender o alcance e o significado de alguns poemas; além de mostrarem que a poesia não é de ontem nem de hoje, mas de todos os tempos e de todas as latitudes, e que ao longo dos anos e dos séculos, como que se forma uma cadeia de signos e de estrofes, ligando o homem de agora ao primitivo homem das trevas.” (Francisco Carvalho in Sobre a Poesia de Soares Feitosa)

[11] Massaud, Moisés. Dicionário de Termos Literários, Editora. Cultrix - São Paulo. 6ª. Edição. p. 184.

[12] Hegel, Estética. Vol. IV, Poesia, tr. Port., 1964, p. 169.

[13] Freyre, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro. Record. 45ª edição. 2001. pp. 51-52.

 

Soares Feitosa

Leia obra poética de Soares Feitosa