Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Rodrigo Hésed


 



Amor e Liberdade: da crítica de mundo

à poética de Francisco Carvalho

 



 

O tempo passa ao seu ritmo, as estações mudam em ciclos espontâneos, o vento arrasta a areia dos desertos mudando a posição de cada monte, o claro torna-se escuro, voltando a alternar-se outras sucessivas vezes... a vida mostra a sua dança majestosa em magníficos atos de cores e dores. São quadros diversos de uma mesma realidade, que retratam histórias variadas em meio aos tantos contrastes mutantes e cheias de personagens instigantes. Como retratada nas intensas vivências dos poetas em seus contextos, a vida está repleta de histórias de vida que pouco conhecemos, mas que em conjuntos vários formam culturas diferentes. São as críticas dessas culturas que nos permitem entender a que direção a humanidade costuma andar em seus momentos, que me dão possibilidade de conferir algumas das tantas contradições e confusões do mundo contemporâneo e que me fazem entrar em profundas reflexões sobre o que percebo em tudo isso.

A história de vida de cada ser humano comumente é descrita pelas conquistas que cada mudança vivenciada proporciona. Conquistas de espaço no seu devido tempo, no seu mundo... mas que mundo é esse? O mundo do si-mesmo? O mundo que esconde o próprio sorriso atrás de sua máscara? O mundo do eu, tão desconhecido... de que liberdade pode vangloriar-se o homem que tanto almeja coisas e mais coisas para alimentar o próprio ego? Por acaso, não seriam todas essas coisas fontes de uma dependência a que esse mesmo homem, supostamente livre, está atrelado sem o (querer) perceber?

Ouve-se por aí que muitas pessoas querem dinheiro a todo custo, custe o que custar, e ainda bens materiais que valorizem o seu capital, mal sabendo (ou mesmo sabendo!) que uma vez conquistado um dado bem, outros surgirão numa cadeia infinita de pretensões consumistas. Querer sempre mais passou a fazer parte do homem de hoje. Ter sempre mais subestima o ser que tanto se fala em discursos inflamados também direcionados em torno do capital. Não faltam pessoas bem-intencionadas a promoverem tais discursos com palavras tão bonitas e eloqüentes em troca de grandes somas de dinheiro, aproveitando-se da ingenuidade dos que acham que ainda não alcançaram seus sonhos, ou dos que ainda não fizeram como eles. Ensinar como fazer para passar em concursos públicos, como ser um líder eficaz diante de grupos, como conseguir um emprego bom, como se para tais assuntos houvesse uma técnica certa, um manual ou uma receita de bolo, leva milhares de pessoas em todo o mundo a uma busca pelo retorno imediato daquilo que ouviram, como se a elas fosse acontecer do modo tal que lhes é ensinado. Percebe-se aí uma busca por um padrão entre as pessoas, por aquilo que seja certo ou errado, que parece desconsiderar a subjetividade escondida em cada ser humano. Então, qual o valor disso tudo? Por que as pessoas gostam tanto de dicas pretensiosas que as ensinam a buscar a felicidade, e até a se comportar diante das pessoas, como se isso fosse mercadoria? Por que preferem buscar respostas imediatas a questões pessoais a partir de referenciais externos que não respondem às suas próprias demandas? Para que precisam querer fazer as coisas exatamente como outros fazem? Por que essas mesmas pessoas, que buscam outros referenciais e que se encantam diante de descobertas subjetivas alheias não escrevem as suas próprias palavras e descobrem o seu próprio discurso para que possam vivê-lo? Como podem viver, enfim, com identidades tão esfaceladas?

“(...)
Olho o mundo de todos os ângulos possíveis
e tudo me parece oblíquo.
- É a civilização globalizada
a cultura de massa, a sagração do factóide
a fragmentação dos idiomas
(corta-se a palavra em frações microscópicas)
A vida, o amor, a morte, a realidade:
- tudo agora virou fast food.”
 

Devemos vender idéias para captar dinheiro, buscar produtos que satisfaçam ao máximo de pessoas (clientes em potencial) para supostamente ajudá-las em algo, como se todos estivessem ao alcance de tais vendas e de tais produtos. Uma das características da cultura contemporânea é o forte interesse pelo capital, que gera produtos de consumo de ordem material e até mesmo de ordem ideológica. Desse modo, o capital proporciona influências seja na arte, que tem seu valor substituído pelas necessidades de sobrevivência daquele que se diz artista, seja na política, que imbuída de interesses particulares de politiqueiros torna-se politicagem. Exercer uma profissão hoje, na lógica de mercado, só vale à pena se for rentável, ou melhor, se der dinheiro. Até os sentimentos entraram nos cardápios do dia-a-dia, existindo comunidades virtuais e outras invenções hodiernas que oferecem os mais diversos perfis de pessoas para namorar. Mesmo as mensagens de amor não mais são ditas pelos seresteiros apaixonados que iam tocar viola embaixo da janela da sua amada. Tudo pode ser consumido. O que nos faz queimar as pestanas nos dias atuais é a correria que tanto preocupa a sociedade-que-gosta-de-correr e não mais a labuta de inventar algo e de ter uma idéia genial a partir dos seus conhecimentos e de sua visão de mundo, como faziam nossos ancestrais. Talvez por isso eu possa agora entender porque dizem que o mundo de hoje é dos espertos: porque estes são os únicos que conseguem fazer algo por eles mesmos, os outros só olham...

Nessa onda consumista, é possível encontrar também quem venda discursos. Não é difícil encontrar quem ofereça fórmulas prontas para um sucesso pessoal. Há mesmo aqueles que dizem que as pessoas podem conseguir realizar seus próprios desejos. Assim, outra característica da cultura moderna é que todos podem sim ser felizes por si mesmos, desde que comprem um determinado discurso, que não é o seu. E aí, concentram-se nas bancas de jornais e nos auditórios olhos e ouvidos ávidos por compenetrar-se numa realidade construída por “pessoas de sucesso” que os ensinem como vencer na vida e alcançar tais desejos. Para enfeitar os discursos dos espertos e fomentar os desejos dos que desejam ser espertos um dia, inspiração não tem faltado. Desse modo, em busca de mais inspiração e ilustração para tais “negócios”, verifica-se ainda que o Ocidente importa cada vez mais o Oriente raptando pedaços de sua filosofia milenar: o que era fruto de vivências sublimes e interiores e vivido nas profundidades da alma e do espírito passa a ser consumido pelo desejo de ser mais do que se é e de ser livre sem o ser...

Olhando para realidades concretas possibilitadas pelo mundo de hoje através da tecnologia de ponta (cada vez mais afiada), parece que o mundo padece de uma necessidade de progresso e essa mesma tecnologia avança derrubando conceitos que davam suporte a idéias vagas e subjetivas, concretizando o que parecia tão distante séculos atrás. Esta outra característica da cultura moderna, todavia, também corrompe o que durou milhões de anos em espaços de tempo cada vez mais curtos, consumindo paulatinamente o que ainda sobra de nossa esfera azul e fazendo os matemáticos postularem verdadeiros apocalipses nas estatísticas que prescrevem o futuro. A água, a poluição e o desmatamento hoje são alguns dos problemas que se somam a outras inquietações acentuadas por este mundo moderno, assim como a miséria e a corrupção.

Neste mundo tão globalizado é possível verificar ainda uma grande artificialidade naquilo que é produzido e realizado. As aventuras ecológicas a que o homem contemporâneo se submete hoje, por exemplo, são oferecidas prontas apontando um alto nível de segurança. É, portanto, possível realizar trilhas em meio às matas e florestas com um aparato tecnológico avançado que dá um suporte suficiente, além de muitas dessas trilhas contar com guias e pessoal treinado para essas aventuras. Contudo, são poucas as pessoas que ousam criar suas próprias trilhas, descobrindo caminhos e percursos novos, estando a grande maioria a optar pelo que já está oferecido e já explorado. No mundo das artificialidades, um simples bolo fofo já pode ser comprado pronto, com todos os ingredientes, bastando depois mergulhá-lo na água e colocá-lo no forno com uma fôrma; outras diversas comidas industrializadas e padronizadas também são vistas nas prateleiras dos supermercados; compostos e complementos combinados que facilitam as coisas em pílulas e cápsulas também artificializam, com suas comodidades, práticas antigas de comer plantas das próprias plantas; fazer ginástica já não necessita de tanto esforço físico para as pessoas que aderem à “ginástica passiva”, cujos produtos estão sempre sendo expostos em vendas televisivas e outras mídias; e, há alguns anos, começaram a surgir os e-books que estão cada vez mais disponíveis na internet. Afora o que ainda pode surgir de hoje em diante. Quem duvidaria, por exemplo, que dentro de pouco tempo poderia surgir uma espécie de “micropelícula digital” especialmente para se colocar no olho e ler automaticamente todo e qualquer texto que vier codificado em algum sistema de rede? Hoje em dia, pouco se duvida da capacidade humana de providenciar tecnologias que artificializem o nosso meio. Não existem ainda geladeiras falantes e um carro ainda não pode voar, mas um dia ambos poderão estar concretizados. A era dos Jetsons parece estar chegando e o que era só imaginação poderá ser, dentro de algum tempo tempo, realidade.

“(...)
Enquanto os reinos desabam
e os mitos mudam de nome
as folhas estão caindo.”

 

Todas essas características, dentre outras tantas que não descrevi aqui, estão acontecendo, transformando e marcando neste momento a história da humanidade, que gira com o mundo no universo, seguindo o seu ritmo. Enquanto gira, o vasto e complexo espaço deste tão desconhecido eu precisa ser melhor evidenciado e descrito para a compreensão do nós que forma as culturas, mesmo se deveras impregnadas de um sistema avassalador. Este eu carece de ser desvendado e de tirar as suas máscaras para uma maior criticidade da realidade em que vive, aumentando em potência o trabalho produtivo de seus corpos, uma vez que mesmos os corpos que trabalham em cima das limitações e exigências do mundo, levando-se em conta as ideologias, a cultura e ainda meios de dominação, são capazes de perceber aquilo que é fugaz e efêmero.

Diante dessa realidade silenciadora também existem pessoas, em meio aos seus contextos peculiares, procuram descobrir o seu lugar no seu mundo, sem que para isso necessitem parar o que fazem em profundas reflexões sobre si. Dado que o auto-conhecimento também está vinculado na práxis diária de quem se lança na vida, parar para conhecer-se não é um ato único e isolado. A subjetividade humana é capaz de identificar suas ações e seus possíveis conflitos mesmo nas vivências cotidianas, precisando, para tanto, estar aberta e suscetível às suas apercepções. O sertanejo humilde que ainda cuida da sua terra, da sua família e de suas tradições e que sabe descrever com orgulho e prazer cada coisa que faz, bem como as pessoas de cidades grandes que conciliam com harmonia os seus afazeres e suas vivências são exemplos disso. O poeta, que cria suas imagens escrevendo as metáforas das vivências que o constituiu, descobre um mundo que carrega em si uma vastidão de sentidos, retratos do seu ser. Pessoas assim, mesmo que não o saibam, conduzem suas vidas tocando em frente seus ideais, ampliando e enriquecendo suas vivências, em consideração com suas histórias e seus contextos micro e macroecológicos. São pessoas que descobrem o “herói” que existe dentro de si e conquistam o seu mundo em seus segredos.

“(...)
- Herói é o que vai todas as tardes à padaria
mais próxima buscar o pão ainda morno
para testemunhar o mistério da vida.”

 

Lê-se em Francisco Carvalho uma poesia da própria raiz, que retrata o mundo em sentido mais amplo do que um simples descrever as coisas como-seus-olhos-a-vêem, mas com o seu próprio ser implícito no mundo. O poeta realiza-se ao contar o seu tempo, a arte subjacente em si. Como ele mesmo afirma em uma entrevista, “o poeta constrói o poema, a emoção desenha o ritmo” . A poesia em Centauros Urbanos segue esta linha e é bastante sugestiva em sua perspectiva de mundo, sugerindo-me a imagem de homem-mundo construtivo, com potenciais críticos e inovadores.

Mesmo em meio a tantas críticas ao sujeito contemporâneo, tantas vezes submisso a um contexto que dilacera o seu fazer-se homem, são notáveis as descrições desveladas no aflorar-se de cada um desses sujeitos, em suas descobertas de vida. Descrições que podem ser verificadas, entre outras, na poesia como um todo.

Se o poeta encontra-se na poesia que escreve, o eu é o mundo estando imediatamente implicado nele. Desse modo, a liberdade do eu está vinculada a uma demanda de amor natural, expresso como doação numa relação mútua e imediata, incondicional. Pressupõe-se uma dinâmica paradoxal de tudo e nada, que releva o sujeito que se doa e, simultaneamente, se descobre no seu fazer-se nada. Ser e nada, portanto, coincidem, tendo em vista que aquele que se doa vivencia o mundo em sua própria pele, sendo o seu mundo passível de vivências novas e significativas.

Observando desse modo, desprender-se do mundo não pode ser entendido como sinônimo de liberdade, uma vez que ela assim não seria possível em um mundo com os contextos atuais; por outro lado, se a liberdade pressupõe disposição para descobrir-se no seu mundo, então as barreiras eu-mundo estariam quebradas e a posição daquele que vive poderia ser verificada na sua espontaneidade e autenticidade. Fazer-se nada em uma demanda de amor vai além de um mero perder-se, vazio de sentido; significa, ao contrário, despojar-se para ser mais do que se cogita. Assim sendo, amar é colocar à prova a nossa subjetividade em nosso meio coletivo, descobrindo-nos pessoas para além de nós mesmos.

“A vida é uma diáspora de coisas pequeninas:
o cachorro com frio que ladra
a nossa porta, o gato que se diverte com a lagartixa
morta, as borboletas dialogando à beira do lago
mendigos bêbados à deriva do vento
o som das marés, o odor das barcas ancoradas
o clamor dos sinos na capela distante
a revoada das andorinhas nas tardes de novena.

Não ligues demais para os mistérios da vida.
Novelos que se desfazem por si mesmos.
- Pensa no mistério maior que nos espreita.”
 

Enquanto pensamos, nesta tela colorida apreciada de dentro dos nossos olhos, com seus diversos fundos e figuras, delineiam-se traços sutis e inacabados; e a impressão de mudanças no tempo, nas estações, na posição das areias nos desertos e das cores dos dias continuam a se repetir. Cada instante na vida de cada ser apresenta dados novos que são somados às suas identidades... e a natureza continua a transformar os seus e nossos destinos; dizendo quem é ela, na sua mais plausível naturalidade... nos seus mistérios.


Referências bibliográficas:

CARVALHO, F. Centauros Urbanos. Fortaleza: Imprece, 2003.
 



Francisco Carvalho
Leia a obra de Francisco Carvalho

 

 

 

 

 

28/09/2005